Para você ganhar belíssimo Ano Novo
Cor de arco-íris, ou da cor da sua paz
Ano Novo sem comparação
Como todo o tempo já vivido
(Mal vivido ou talvez sem sentido)
Não precisa fazer lista
De boas intenções
Para arquivá-las na gaveta
Não precisa chorar de arrependimento
Pelas besteiras consumadas
Para ganhar um Ano-Novo
Que mereça esse nome
Você, meu caro, tem de merecê-lo
Tem de fazê-lo de novo
Eu sei que não é fácil
Mas tente, experimente, consciente
É dentro de você que o ano novo
Cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
sábado, dezembro 31
Em dias assim, viro menino
Os dias passavam. Eu teimava, bancava o forte, mas no fundo do meu coração eu estava triste. Por toda essa semana de festas, as lembranças voltaram, enchendo meu peito de música distantes e de entes amados. Uma vez mais surgia-me a justeza da antiga lenda: o coração do homem é uma poça cheia de sangue; na borda dessa poça os seres amados se deitam para beber o sangue e se reanimar; e quanto mais lhe são caros, mais eles lhe bebem o sangue.
Vésperas do ano novo. Chegou até nosso barracão um bando de moleques da aldeia, trazendo um grande barco de papel.
Começaram, com suas vozes agudas e alegres, a cantar a calanda:
São Basílio chegou de sua terra natal, Cesareia.Ele lá está, diante dessa pequena praia cretense azul-índigo.Apoiava-se em seu bastão, o bastão logo se abriu de folhas e flores, e o canto do ano novo soou:Que sua casa, mestre, seja cheia de trigo, azeite, vinho;Que sua mulher sustente, como uma coluna de mármore, o teto de sua casa;Que sua filha se case e tenha nove filhos e uma filha;E que seus filhos libertem Constantinopla, a cidade de nossos Reis!Feliz ano novo, cristãos!
Zorba escutava, maravilhado; havia tomado o tamborim das crianças e o fazia ressoar freneticamente.
E olhava, escutava, sem dizer nada. Sentia cair de meu coração uma outra folha, um outro ano. Fazia um passo a mais em direção da poça negra.
— Que há com você, patrão? — perguntou Zorba que cantava a plenos pulmões com os moleques e batia no tamborim. — Que há com você? Você está com a pele escura, você envelheceu. Eu, em dias assim, viro menino, eu renasço como o cristo. Ele não nasce todos os anos? Comigo é igualzinho.
Estendi-me sobre minha cama e fechei os olhos. Essa noite estava de mau humor e não queria falar.
Não podia dormir, como se tivesse, essa noite, que prestar conta de meus atos, toda a minha vida subia, rápida, incoerente, incerta, como um sonho, e eu olhava desesperado. Como uma nuvem emplumada, batida pelos ventos das alturas, minha vida mudava de forma, se desfazia e se recompunha. Ela se metamorfoseava — cisne, cão, demônio, escorpião, macaco — e sem cessar a nuvem e esgarçava e se unia, cheia de arco-íris e de vento.
O dia nasceu. Não abri os olhos; eu me esforçava para concentrar meu desejo ardente, romper a carapaça do cérebro e entrar no obscuro e perigoso canal por onde cada gota humana vai se juntar ao grande oceano. Tinha pressa em rasgar esse véu para ver o que me trazia o ano novo...
— Bom dia, patrão, feliz ano novo!
A voz de Zorba jogou-me brutalmente em terra firme. Abri os olhos e ainda vi Zorba atirar sobre o chão da entrada do barracão uma romã enorme. Os frescos rubis saltaram até minha cama, apanhei alguns e comi, e minha garganta refrescou-se.
— Desejo que ganhemos muito e que sejamos raptados por belas moças! — gritou Zorba de bom humor.
Lavou-se, barbeou-se, vestiu suas melhores roupas — calças verdes de pano, casaco de burel grosso marrom e jaqueta de pele de cabra, já meio roçada. Botou também seu barrete russo de astracã, torceu os bigodes e disse:]
— Patrão, vou até a igreja, como representante da companhia.
Não perderei nada com isso, hein! E depois, fará passar o tempo.
Inclinou a cabeça e piscou o olho.
— Talvez eu veja também a viúva — murmurou.
Deus, os interesses da companhia e a viúva formavam uma mistura harmoniosa aos olhos de Zorba. Ouvi seus passos se afastarem, e pulei da cama.
O encantamento estava rompido, minha alma reencontrou-se trancada em sua prisão de carne.
Vesti-me e fui até a beira do mar. Andava depressa e estava alegre, como se estivesse escapado de um perigo ou de um pecado.
Meu desejo indiscreto da manhã de espionar e capturar o futuro antes que nascesse, apareceu-me subitamente como um sacrilégio.
Lembrei-me de uma manhã em que encontrei um casulo preso à casca de uma árvore, no momento em que a borboleta rompia o invólucro e se preparava para sair. Esperei algum tempo, mas estava com pressa e ela demorava muito.
Enervado, debrucei-me e comecei a esquentá-lo com meu sopro. Eu o esquentava, impaciente, e o milagre começou a desfiar diante de mim em ritmo mais rápido que o natural. Abriu-se o invólucro e a borboleta saiu se arrastando. Não esquecerei jamais o horror que tive então: suas asas ainda não se haviam formado, e com todo o seu pequeno corpo trêmulo ela se esforçava para desdobrá-las. Debruçado sobre ela, eu ajudava com meu sopro. Em vão. Um paciente amadurecimento era necessário e o crescimento das asas devia se fazer lentamente ao sol; agora era muito tarde. Meu sopro havia obrigado a borboleta a se mostrar, toda enrugada, antes do tempo. Ela se agitou, desesperada, e alguns
segundo depois morreu na palma de minha mão.
Creio que esse pequeno cadáver é o maior peso que tenho na consciência. Pois, compreendo atualmente, é um pecado mortal violar as leis da natureza. Não devemos apressar, nem nos impacientar, mas seguir com confiança o ritmo eterno.
Sentei-me sobre um rochedo para assimilar com toda tranquilidade esse pensamento no ano novo. Ah! Se essa borboleta pudesse esvoaçar sempre diante de mim, e me mostrar o caminho.
Nikos Kazantzakis, "Zorba, o Grego"
Divagando sobre tolices
Depois de esporádicas e perplexas meditações sobre o cosmos, cheguei a várias conclusões óbvias (o óbvio é muito importante: garante certa veracidade). Em primeiro lugar concluí que há o infinito, isto é, o infinito não é uma abstração matemática, mas algo que existe. Nós estamos tão longe de compreender o mundo que nossa cabeça não consegue raciocinar senão à base de finitos. Depois me ocorreu que se o cosmos fosse finito, eu de novo teria um problema nas mãos: pois, depois do finito, o que começaria? Depois cheguei à conclusão, muito humilde minha, de que Deus é o infinito. Nessas minhas divagações também me dei conta do pouco que sabia, e isso resultou numa alegria: a da esperança. Explico-me: o pouco que sei não dá para compreender a vida, então a explicação está no que desconheço e que tenho a esperança de poder vir a conhecer um pouco mais.
O belo do infinito é que não existe um adjetivo sequer que se possa usar para defini-lo. Ele é, apenas isso: é. Nós nos ligamos ao infinito através do inconsciente. Nosso inconsciente é infinito.
O infinito não esmaga, pois em relação a ele não se pode sequer falar em grandeza ou mesmo em incomensurabilidade. O que se pode fazer é aderir ao infinito. Sei o que é o absoluto porque existo e sou relativa. Minha ignorância é realmente a minha esperança: não sei adjetivar. O que é uma segurança. A adjetivação é uma qualidade, e o inconsciente, como o infinito, não tem qualidades nem quantidades. Eu respiro o infinito. Olhando para o céu, fico tonta de mim mesma.
O absoluto é de uma beleza indescritível e inimaginável pela mente humana. Nós aspiramos a essa beleza. O sentimento de beleza é o nosso elo com o infinito. É o modo como podemos aderir a ele. Há momentos, embora raros, em que a existência do infinito é tão presente que temos uma sensação de vertigem. O infinito é um vir a ser. É sempre o presente, indivisível pelo tempo. Infinito é o tempo. Espaço e tempo são a mesma coisa. Que pena eu não entender de física e de matemática para poder, nessa minha divagação gratuita, pensar melhor e ter o vocabulário adequado para a transmissão do que sinto.
Espanta-me a nossa fertilidade: o homem chegou com os séculos a dividir o tempo em estações do ano. Chegou mesmo a tentar dividir o infinito em dias, meses, anos, pois o infinito pode constranger muito e confranger o coração. E, diante da angústia, trazemos o infinito até o âmbito de nossa consciência e o organizamos em forma humana simplificada. Sem essa forma ou outra qualquer de organização, nosso consciente teria uma vertigem perigosa como a loucura. Ao mesmo tempo, para a mente humana, é uma fonte de prazer a eternidade do infinito: nós, sem entendê-lo, compreendemos. E, sem entender, vivemos. Nossa vida é apenas um modo do infinito. Ou melhor: o infinito não tem modos. Qual a forma mais adequada para que o consciente açambarque o infinito? Pois quanto ao inconsciente, como já foi dito, este o admite pela simples razão de também sê-lo. Será que entenderíamos melhor o infinito se desenhássemos um círculo? Errei. O círculo é uma forma perfeita, mas que pertence à nossa mente humana, restrita pela sua própria natureza. Pois na verdade até o círculo seria um adjetivo inútil para o infinito. Um dos equívocos naturais nossos é achar que, a partir de nós, é o infinito. Nós não conseguimos pensar no existo sem tomarmos como ponto de vista o a partir de nós.
Para falar a verdade, já me perdi e nem sei mais do que estou falando. Bem, tenho mais o que fazer do que escrever tolices sobre o infinito. É, por exemplo, hora do almoço e a empregada avisou que já está servido. Era mesmo tempo de parar.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
O belo do infinito é que não existe um adjetivo sequer que se possa usar para defini-lo. Ele é, apenas isso: é. Nós nos ligamos ao infinito através do inconsciente. Nosso inconsciente é infinito.
O infinito não esmaga, pois em relação a ele não se pode sequer falar em grandeza ou mesmo em incomensurabilidade. O que se pode fazer é aderir ao infinito. Sei o que é o absoluto porque existo e sou relativa. Minha ignorância é realmente a minha esperança: não sei adjetivar. O que é uma segurança. A adjetivação é uma qualidade, e o inconsciente, como o infinito, não tem qualidades nem quantidades. Eu respiro o infinito. Olhando para o céu, fico tonta de mim mesma.
O absoluto é de uma beleza indescritível e inimaginável pela mente humana. Nós aspiramos a essa beleza. O sentimento de beleza é o nosso elo com o infinito. É o modo como podemos aderir a ele. Há momentos, embora raros, em que a existência do infinito é tão presente que temos uma sensação de vertigem. O infinito é um vir a ser. É sempre o presente, indivisível pelo tempo. Infinito é o tempo. Espaço e tempo são a mesma coisa. Que pena eu não entender de física e de matemática para poder, nessa minha divagação gratuita, pensar melhor e ter o vocabulário adequado para a transmissão do que sinto.
Espanta-me a nossa fertilidade: o homem chegou com os séculos a dividir o tempo em estações do ano. Chegou mesmo a tentar dividir o infinito em dias, meses, anos, pois o infinito pode constranger muito e confranger o coração. E, diante da angústia, trazemos o infinito até o âmbito de nossa consciência e o organizamos em forma humana simplificada. Sem essa forma ou outra qualquer de organização, nosso consciente teria uma vertigem perigosa como a loucura. Ao mesmo tempo, para a mente humana, é uma fonte de prazer a eternidade do infinito: nós, sem entendê-lo, compreendemos. E, sem entender, vivemos. Nossa vida é apenas um modo do infinito. Ou melhor: o infinito não tem modos. Qual a forma mais adequada para que o consciente açambarque o infinito? Pois quanto ao inconsciente, como já foi dito, este o admite pela simples razão de também sê-lo. Será que entenderíamos melhor o infinito se desenhássemos um círculo? Errei. O círculo é uma forma perfeita, mas que pertence à nossa mente humana, restrita pela sua própria natureza. Pois na verdade até o círculo seria um adjetivo inútil para o infinito. Um dos equívocos naturais nossos é achar que, a partir de nós, é o infinito. Nós não conseguimos pensar no existo sem tomarmos como ponto de vista o a partir de nós.
Para falar a verdade, já me perdi e nem sei mais do que estou falando. Bem, tenho mais o que fazer do que escrever tolices sobre o infinito. É, por exemplo, hora do almoço e a empregada avisou que já está servido. Era mesmo tempo de parar.
Clarice Lispector, "Todas as crônicas"
sexta-feira, dezembro 30
Os livros que quero ler em 2023
Esta podia ser uma coluna com os melhores livros que li em 2022, e eles foram muitos. Mas isso me faz lembrar de tudo o que eu quis ler e não consegui. Por falta de tempo, pela conjuntura, porque outro furou a fila.
Por exemplo, eu queria ter lido todos os livros da Natalia Ginzburg da estante porque ela foi uma das melhores descobertas do ano. Consegui dois: As Pequenas Virtudes e Caro Michele.
Queria ter lido Deus, O Que Quer de Nós?, o novo romance de Ignácio de Loyola Brandão. E Só Prosa, do poeta Armando Freitas Filho. E também Humanos Exemplares, de Juliana Leite. Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt, estava na minha lista desde antes de ele ficar pronto, mas o Sergio Augusto, meu colega de caderno, foi mais rápido em escrever sobre ele e o livro foi parar na pilha de leituras pendentes, com Elizabeth Finch. Eu sempre leio tudo do Julian Barnes quando sai, mas vou levar esse para 2023 – e tantos outros.
Um livro por semana. Sem contar os infantis. Às vezes mais, ou menos. E seguimos.
Vendo a lista de lançamentos para o ano que se aproxima, anoto, aqui e ali, o que eu gostaria de ler. E eis a primeira lista de desejos para o ano.
Cara Paz, de Lisa Ginzburg. Neta da Natalia. Filha do Carlo – italiano que, anos atrás, ouvi falar sobre micro-história numa enorme tenda de circo na Jornada de Passo Fundo. A história, sobre duas irmãs, sobre o amadurecimento de uma delas e a sensação de paz que isso traz, parece bonita. Sai pela Nós.
De ficção brasileira, Vento de Queimada, romance de André de Leones que se passa no centro-oeste, em 1983, e é protagonizado por uma historiadora que se torna matadora profissional e se envolve com políticos e policiais. Sai pela Record. E Dor Fantasma, de Rafael Gallo, vencedor do Prêmio Saramago e no prelo da Globo – sobre um pianista perfeccionista e sua relação com o filho e com ele próprio após um acidente.
Ainda entre os brasileiros, Quando me Descobri Negra, de Bianca Santana, que ganhará reedição pela Fósforo.
À L’est Des Rêves, de Nastassja Martin. O segundo da antropóloga francesa no catálogo da 34 e no Brasil. Autora de Escute as Feras, ela se aprofunda, no novo livro, na questão do sonho – que, para ela, pode ser tão perigoso quanto o urso que a atacou, tema do primeiro.
E, misturando boa literatura e autobiografia, Ioga, de Emmanuel Carrère, que sairá pela Alfaguara. É sobre ioga e meditação, sobre depressão e terrorismo, e sobre um homem que luta para viver em harmonia com o mundo e consigo.
Maria Fernanda Rodrigues
Por exemplo, eu queria ter lido todos os livros da Natalia Ginzburg da estante porque ela foi uma das melhores descobertas do ano. Consegui dois: As Pequenas Virtudes e Caro Michele.
Queria ter lido Deus, O Que Quer de Nós?, o novo romance de Ignácio de Loyola Brandão. E Só Prosa, do poeta Armando Freitas Filho. E também Humanos Exemplares, de Juliana Leite. Sonhos no Terceiro Reich, de Charlotte Beradt, estava na minha lista desde antes de ele ficar pronto, mas o Sergio Augusto, meu colega de caderno, foi mais rápido em escrever sobre ele e o livro foi parar na pilha de leituras pendentes, com Elizabeth Finch. Eu sempre leio tudo do Julian Barnes quando sai, mas vou levar esse para 2023 – e tantos outros.
Um livro por semana. Sem contar os infantis. Às vezes mais, ou menos. E seguimos.
Vendo a lista de lançamentos para o ano que se aproxima, anoto, aqui e ali, o que eu gostaria de ler. E eis a primeira lista de desejos para o ano.
Cara Paz, de Lisa Ginzburg. Neta da Natalia. Filha do Carlo – italiano que, anos atrás, ouvi falar sobre micro-história numa enorme tenda de circo na Jornada de Passo Fundo. A história, sobre duas irmãs, sobre o amadurecimento de uma delas e a sensação de paz que isso traz, parece bonita. Sai pela Nós.
De ficção brasileira, Vento de Queimada, romance de André de Leones que se passa no centro-oeste, em 1983, e é protagonizado por uma historiadora que se torna matadora profissional e se envolve com políticos e policiais. Sai pela Record. E Dor Fantasma, de Rafael Gallo, vencedor do Prêmio Saramago e no prelo da Globo – sobre um pianista perfeccionista e sua relação com o filho e com ele próprio após um acidente.
Ainda entre os brasileiros, Quando me Descobri Negra, de Bianca Santana, que ganhará reedição pela Fósforo.
À L’est Des Rêves, de Nastassja Martin. O segundo da antropóloga francesa no catálogo da 34 e no Brasil. Autora de Escute as Feras, ela se aprofunda, no novo livro, na questão do sonho – que, para ela, pode ser tão perigoso quanto o urso que a atacou, tema do primeiro.
E, misturando boa literatura e autobiografia, Ioga, de Emmanuel Carrère, que sairá pela Alfaguara. É sobre ioga e meditação, sobre depressão e terrorismo, e sobre um homem que luta para viver em harmonia com o mundo e consigo.
Maria Fernanda Rodrigues
A Realeza de Pelé
Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade [Albert] Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu.” Insistiram: — ”Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: — “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage, e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompeia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para a frente, e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompeia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente, que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas de pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.
Nelson Rodrigues, Manchete Esportiva, 8 de março de 1958
quarta-feira, dezembro 28
Cosmogonia
O hotel aqui não é grande coisa, mas tem uma privada de primeira. Defequei esplendidamente, como não o fazia há muito tempo — depois, acendi um charuto e saí a rodar discretamente pelo bairro, para tomar posição e ver se descobria em que país afinal me encontro, já que não me ficaria bem perguntar essas coisas ao dono do hotel ou ao primeiro transeunte que encontrasse. A língua oficial, ao que tudo indica, é a língua portuguesa, mas isso não adianta grande coisa na solução do mistério, pois tanto posso estar em Portugal como no Brasil, para não dizer nas ilhas dos Açores ou numa das muitas possessões que Portugal mantém na África ou na Ásia, se é que ainda as mantém. Ouvi também um pouco de espanhol — mas foi num rádio do bar da esquina, e pode ser que se tratasse apenas de um programa de boleros ou de tangos, como os que se ouvem em qualquer cidade da China ou na Bessarábia. A solução será mesmo comprar um jornal da tarde e ler no cabeçalho o nome da cidade em que é editado, pois não é admissível que os jornais aqui venham de outra cidade ou deixem de lembrar diariamente aos seus leitores que o nome da sua capital é X e não Y, como lhes lembra que hoje é quinta-feira e não sexta e que estamos nos meados do século XX e não do XIX.
Serenados os ânimos, não sem uma polpuda esmola de minha parte ao pequeno maltrapilho, dirijo-me em alemão ao meu vizinho da esquerda e, em tom amabilíssimo, cheio de sorrisos, mando-o para o inferno e para outros lugares ainda menos recomendáveis, o que provoca de sua parte um gesto amigável e algumas palavras, em português, do mais puro reconhecimento.
Quando dou por mim, muito tempo depois, estou sentado num banco de praça, ao lado de uma mulher gorda que não sei se ali está levada por mim ou se por conta própria, pois de fato não me lembro bem nem do meu nome nem do país ou do planeta em que estou, de tal forma me gira a cabeça e com ela todo o resto do corpo. A mulher gorda, seja ou não minha amante, não me dá a mínima importância e continua a fitar o vácuo à sua frente com o ar mais hierático deste mundo, como se fora um boneco de cera ou a própria estátua da Prostituta Desconhecida.
Afinal, após um vômito breve, consigo levantar-me com relativa facilidade — e, já senhor do meu pensamento, convido a respeitável matrona a passar comigo aquela noite, mostrando-lhe uma nota de mil francos e por conseguinte minhas boas intenções a seu respeito. A caminho do hotel, percebo que a mulher manca horrivelmente da perna esquerda e que é muito mais feia do que eu pensava, além de ter um hálito capaz de provocar verdadeira guerra bacteriológica num raio de dez quilômetros. Mas, como estou lírico e ainda não tenha vomitado toda a minha alma, levo-a assim mesmo para o quarto e ali a possuo por três vezes seguidas — duas por minha conta e uma em nome do meu irmão gêmeo e sepulto em mim — o que a faz lamentar ser tão pequena a minha família e tão avaro o meu espírito de fraternidade.
Finda a bacanal bacteriológica, levo o meu monstro coxo até um restaurante próximo, onde jantamos furiosamente e, entre uma garfada e outra, nos tratamos pelos nomes mais carinhosos possíveis, sob o espanto visível do garçom vesgo que nos serve. Quando ganhamos a rua já passa da meia-noite (pelo relógio do enforcado) e, após acordar toda a vizinhança com os nossos gritos obscenos, despedimo-nos como dois líricos namorados, não sem antes copularmos mais uma vez, em plena rua, ao som da uma valsa vienense que vem de dentro de um palacete feericamente iluminado.
Chegado ao hotel, verifico com espanto que fui roubado em minha carteira pela infame megera, certamente por ocasião da última cópula ao som do Danúbio Azul, o que me faz sair às pressas em busca do meu prestimoso enforcado, a ver se consigo arrancar-lhe a roupa, os sapatos e algum outro bem que porventura me tenha escapado por ocasião do primeiro saque. Na rua da Liberdade, porém, a madrugada reina impassível e sem fantasmas, e o corpo do meu amigo já não balouça mais como uma lanterna chinesa à luz fosca do lampião, certamente por já ter sido descoberto pela polícia e pela família inconsolável. Sento-me no meio-fio e, como um desesperado, choro pela madrugada adentro, tendo por única companhia a lua cheia sobre a cabeça e a sombra do meu irmão refletida numa poça d’água sob os meus pés.
Campos de Carvalho, "A Lua vem da Ásia"
Mas, enquanto persiste o mistério, sento-me à mesa de um bar e peço de uma vez oito copos de cerveja gelada, que vou emborcando silenciosamente sob o olhar atento de um menino maltrapilho, que certamente nunca viu ninguém tão rico quanto eu. (E se eu lhe perguntasse pelo nome da cidade, será que ele não perderia o respeito por mim, o grande respeito que advém dos oito copos de cerveja formados em fila indiana e que vou sorvendo com a calma sabedoria de um Buda?) Deixo-o fitar-me enquanto me embebedo, e, uma vez bêbado, atiro-lhe com um copo na cara e ameaço corrê-lo a pontapés, o que provoca a intromissão indébita do meu truculento vizinho da esquerda, que a viva força quer expulsar-me do bar e talvez do país.
Serenados os ânimos, não sem uma polpuda esmola de minha parte ao pequeno maltrapilho, dirijo-me em alemão ao meu vizinho da esquerda e, em tom amabilíssimo, cheio de sorrisos, mando-o para o inferno e para outros lugares ainda menos recomendáveis, o que provoca de sua parte um gesto amigável e algumas palavras, em português, do mais puro reconhecimento.
Quando dou por mim, muito tempo depois, estou sentado num banco de praça, ao lado de uma mulher gorda que não sei se ali está levada por mim ou se por conta própria, pois de fato não me lembro bem nem do meu nome nem do país ou do planeta em que estou, de tal forma me gira a cabeça e com ela todo o resto do corpo. A mulher gorda, seja ou não minha amante, não me dá a mínima importância e continua a fitar o vácuo à sua frente com o ar mais hierático deste mundo, como se fora um boneco de cera ou a própria estátua da Prostituta Desconhecida.
Afinal, após um vômito breve, consigo levantar-me com relativa facilidade — e, já senhor do meu pensamento, convido a respeitável matrona a passar comigo aquela noite, mostrando-lhe uma nota de mil francos e por conseguinte minhas boas intenções a seu respeito. A caminho do hotel, percebo que a mulher manca horrivelmente da perna esquerda e que é muito mais feia do que eu pensava, além de ter um hálito capaz de provocar verdadeira guerra bacteriológica num raio de dez quilômetros. Mas, como estou lírico e ainda não tenha vomitado toda a minha alma, levo-a assim mesmo para o quarto e ali a possuo por três vezes seguidas — duas por minha conta e uma em nome do meu irmão gêmeo e sepulto em mim — o que a faz lamentar ser tão pequena a minha família e tão avaro o meu espírito de fraternidade.
Finda a bacanal bacteriológica, levo o meu monstro coxo até um restaurante próximo, onde jantamos furiosamente e, entre uma garfada e outra, nos tratamos pelos nomes mais carinhosos possíveis, sob o espanto visível do garçom vesgo que nos serve. Quando ganhamos a rua já passa da meia-noite (pelo relógio do enforcado) e, após acordar toda a vizinhança com os nossos gritos obscenos, despedimo-nos como dois líricos namorados, não sem antes copularmos mais uma vez, em plena rua, ao som da uma valsa vienense que vem de dentro de um palacete feericamente iluminado.
Chegado ao hotel, verifico com espanto que fui roubado em minha carteira pela infame megera, certamente por ocasião da última cópula ao som do Danúbio Azul, o que me faz sair às pressas em busca do meu prestimoso enforcado, a ver se consigo arrancar-lhe a roupa, os sapatos e algum outro bem que porventura me tenha escapado por ocasião do primeiro saque. Na rua da Liberdade, porém, a madrugada reina impassível e sem fantasmas, e o corpo do meu amigo já não balouça mais como uma lanterna chinesa à luz fosca do lampião, certamente por já ter sido descoberto pela polícia e pela família inconsolável. Sento-me no meio-fio e, como um desesperado, choro pela madrugada adentro, tendo por única companhia a lua cheia sobre a cabeça e a sombra do meu irmão refletida numa poça d’água sob os meus pés.
Campos de Carvalho, "A Lua vem da Ásia"
Pequeno Manual da Escrita Manual
Escrevo à mão. Quando digo isto, em especial a millenniums, ficam me olhando como se eu fosse um idoso – e eles têm razão em me olhar assim. Mas também deviam me enxergar como quem tem milhares de anos a seu favor. Justamente por usar caneta e papel para produzir garatujas.
A escrita refinada começou com os papiros. Aqueles caras que viviam de perfil passaram a redigir usando penas de pássaros e tintas mais customizadas que as da Mont Blanc. Eram tempos analógicos pra valer. Se o escriba errava uma letra não havia borracha ou caneta corretora, ele precisava usar um facão pra raspar a tinta do pergaminho. Arrisco dizer que, em função disso, produziam-se textos bem melhores que os atuais, consumados com o auxílio de teclados, mouses wireless e aplicativos que corrigem até pensamento.
A escrita refinada começou com os papiros. Aqueles caras que viviam de perfil passaram a redigir usando penas de pássaros e tintas mais customizadas que as da Mont Blanc. Eram tempos analógicos pra valer. Se o escriba errava uma letra não havia borracha ou caneta corretora, ele precisava usar um facão pra raspar a tinta do pergaminho. Arrisco dizer que, em função disso, produziam-se textos bem melhores que os atuais, consumados com o auxílio de teclados, mouses wireless e aplicativos que corrigem até pensamento.
Sem falar na beleza do material; os dos egípcios era decorados com iluminuras, os de hoje com emojis…
Adquiri o hábito de escrever à caneta por causa da leitura. Sempre gostei de deixar em meus livros uma marginália comentando o que havia digerido, marcando palavras que não conhecia ou, por vezes, discordando de alguma passagem do texto. Quando passei a ler no Ipad – sim, não sou nada desconectado, antes pelo contrário – prossegui com o hábito, só que usando a Apple Pencil.
Tenho meus rituais, obviamente. Uma vez li que um certo escritor europeu, não me recordo mais o nome, escrevia usando a Pilot G-Tec-C4, de cor azul. Fiquei curioso e fui atrás do objeto. Não existia no Brasil. Pedi a um amigo, que vinha sempre dos Estados Unidos, que me trouxesse algumas na bagagem.
A Pilot 0.4 milímetros realmente deu uma química muito boa comigo. A delicadeza e suavidade do traço, a cor da tinta, o toque sobre o papel, tudo isto veio muito a calhar no meu processo. Desde sempre uso a azul clara para textos literários e a azul escura para o restante, assim diferencio os repertórios.
Em certas ocasiões, para dar umas férias às minhas Pilot, trabalho com a Pentel Slicci 0.7mm ou a Pentel Energel 0.5mm. Também são excelentes penas. Pena que não existam as 0.4mm da Slicci no Bananão, esse deserto de canetas premium.
Uma outro fetiche é usar canetas marca-texto (minhas favoritas são as da marca japonesa Mildliner). Crio um espécie de vinheta colorida para determinados assuntos. Se é algo ligado a crônicas, por exemplo, faço um retângulo púrpura; se o tema é trabalho o retângulo é laranja. Separo ainda as anotações com um traço de marcador verde. Isso dá uma melhor visão dos trabalhos no Moleskine.
Mas é melhor eu parar por aqui porque blocos de anotações já são tema para uma outra crônica.
Tenho meus rituais, obviamente. Uma vez li que um certo escritor europeu, não me recordo mais o nome, escrevia usando a Pilot G-Tec-C4, de cor azul. Fiquei curioso e fui atrás do objeto. Não existia no Brasil. Pedi a um amigo, que vinha sempre dos Estados Unidos, que me trouxesse algumas na bagagem.
A Pilot 0.4 milímetros realmente deu uma química muito boa comigo. A delicadeza e suavidade do traço, a cor da tinta, o toque sobre o papel, tudo isto veio muito a calhar no meu processo. Desde sempre uso a azul clara para textos literários e a azul escura para o restante, assim diferencio os repertórios.
Em certas ocasiões, para dar umas férias às minhas Pilot, trabalho com a Pentel Slicci 0.7mm ou a Pentel Energel 0.5mm. Também são excelentes penas. Pena que não existam as 0.4mm da Slicci no Bananão, esse deserto de canetas premium.
Uma outro fetiche é usar canetas marca-texto (minhas favoritas são as da marca japonesa Mildliner). Crio um espécie de vinheta colorida para determinados assuntos. Se é algo ligado a crônicas, por exemplo, faço um retângulo púrpura; se o tema é trabalho o retângulo é laranja. Separo ainda as anotações com um traço de marcador verde. Isso dá uma melhor visão dos trabalhos no Moleskine.
Mas é melhor eu parar por aqui porque blocos de anotações já são tema para uma outra crônica.
terça-feira, dezembro 27
Eu conheço o mestre
Quando eu era jovem, era um escritor que passava fome. O fato de que a fome poderia me levar à morte não me incomodava muito, uma vez que a vida não me parecia interessante, e morrer não parecia uma má perspectiva – talvez uma nova embaralhada nas cartas? Laborei, de tempos em tempos, como um trabalhador comum, mas por curtos períodos. Um ou dois contracheques e eu pulava fora, mantendo-me afastado de empregos o quanto fosse possível. Tudo o que eu precisava era de dinheiro para o aluguel e para comprar bebidas, e também para os selos, os envelopes e uma máquina de escrever. Escrevia de dois a seis contos por semana e todos eram recusados pela Atlantic Monthly, Harper’s e The New Yorker. Para mim isso era difícil de entender porque os contos que eu lia nessas revistas eram escritos com cuidado, bem-trabalhados talvez seja o termo. Mas, em essência, os contos eram inermes e chatos, e o pior de tudo: não tinham humor. Era como se tudo não passasse de uma mentira e quanto mais trabalhada fosse essa mentira mais você era aceito.
Eu escrevia e bebia à noite. Durante o dia eu ficava na Biblioteca Pública de LA e lia todos os escritores e era uma leitura difícil, os escritores usavam parágrafos longos e páginas de descrição, construindo a trama e desenvolvendo os personagens, mas os personagens não eram nada interessantes e o que as histórias finalmente revelavam não era lá grande coisa. Pouco se dizia das vidas desperdiçadas da maioria das pessoas, da tristeza, de toda tristeza, da loucura, da risada vencedora da dor. Boa parte dos escritores escrevia sobre as experiências da vida da alta classe média. Precisava ler algo que me ajudasse a atravessar o dia, a rua, algo em que pudesse me agarrar. Precisava me embebedar de palavras, em vez disso me via obrigado a apelar à garrafa. Eu sentia, suponho, como todos os escritores fracassados sentem, que eu realmente podia escrever e que as circunstâncias e os que governam e a política estavam contra mim. Às vezes estão; outras vezes você apenas acha que pode escrever quando na verdade não pode.
Eu passava fome e escrevia. Baixei de 95 para 65 quilos. Meus dentes ficaram frouxos na boca. Podia empurrar meus incisivos com os dedos para a frente e para trás. Estavam frouxos na gengiva. Certa noite, enquanto dava uma volta, senti que algo se desprendia e logo estava com um dente na mão. Lá estava ele: virado para cima. Coloquei-o sobre a mesa e bebi em sua homenagem.
E, claro, quando se está comprando tempo com um salário de trabalhador de meio turno há outras coisas das quais você abre mão além da comida. Refiro-me a mulheres jovens e carros. Você caminha, acaba por encontrar uma puta de ocasião. Além disso, você usa os mesmos sapatos por tanto tempo que as solas se enchem de furos e você é obrigado a forrá-los com papelão; além disso, as unhas encravam de uma maneira tão feia que quase já não se pode calçar os sapatos. E também não sobrou, a essa altura, nem um traje domingueiro, nem convites para jantares gratuitos de Ação de Graças e de Natal. Escritores famintos levam uma vida pior do que a dos vagabundos da favela. E isto porque há duas coisas de que precisam: quatro paredes, e estar sozinhos.
...Mas numa tarde na Biblioteca Pública de LA alguma coisa aconteceu. Quanto a ser uma pessoa lida, eu já estava estufado, ao extremo: D. H. Lawrence, todos os russos, Huxley, Thurber, Chesterton, Dante, Shakespeare, Villon, todos os Shaws, O’Neil, Blake, Dos Passos, Hem, por que seguir? Centenas de escritores conhecidos e centenas de desconhecidos... E todos eles me feriam porque eram ótimos por um tempo, mas por breves instantes, em lampejos, para depois retornarem à sua pesada monotonia literária. Isto era mais do que desencorajador, pois significava que séculos, SÉCULOS de literatura e escritores não podiam me ajudar. No mínimo, falharam em me oferecer o que eu precisava para me virar no mundo das palavras.
Mas, como eu estava dizendo, nessa tarde eu matava o meu dia com o costumeiro baixar de livros das prateleiras, o abrir de páginas, ler uma ou duas de cada volume, devolvê-los aos seus lugares. Bem, peguei mais um Sporting Times? Yeah?, de um tal John Bante. Abri numa das páginas, esperando o de sempre, mas as palavras, sim, as palavras pularam sobre mim, assim mesmo. Saíram do papel e me perfuraram. As palavras eram simples, concisas, e falavam de alguma coisa que estava acontecendo agora! Até mesmo a fonte parecia diferente. As palavras eram legíveis. Havia alguns espaços e então mais palavras. As palavras eram quase como uma voz na sala. Peguei o livro e fui me sentar a uma mesa. Cada página era poderosa. Não podia acreditar naquilo. Era como se as páginas fossem pular do livro e começar a caminhar por ali, voar ao meu redor. Possuíam uma força notável, um realismo total. Por que esse homem nunca tinha sido mencionado antes? Eu também estava lendo crítica literária, Winters, todos aqueles vigaristas, os queridinhos da Kenyon Review e da Sewanee Review, e nunca haviam mencionado este homem. O mesmo ocorreu nos meus dois anos de coma profundo no LA City College, nem uma menção sequer. Ergui os olhos da minha mesa. Bem, não era minha, pertencia à cidade, aos contribuintes, e eu não podia me enquadrar propriamente nessa categoria. Mas eu tinha o livro de John Bante diante de mim e eu olhava para as pessoas nas outras mesas, para as pessoas que caminhavam por ali ou que estavam apenas sentadas, muitos vagabundos como eu e nenhum deles sabia sobre John Bante... ou teriam começado a brilhar, a se sentir melhor, não teriam se importado em ser o que eram ou que deveriam ser.
Eu tinha um cartão da biblioteca e tirei John Bante de lá. Levei-o comigo de volta para meu quarto e comecei a ler do início. Ele chegava a ser engraçado às vezes, mas era um tipo estranho e calmo de humor, como um homem queimado até a morte que ainda assim acena com um piscar de olhos para o primeiro homem que ateou as chamas ou Para O Homem Que Está Lá Em Cima. Bante possuía uma inclinação religiosa mesmo que fosse coroada por um estranho sorriso. Eu não tinha qualquer inclinação, mas eu gostava da dele. E ele escrevia sobre um escritor que passava fome e que circulava pela Biblioteca Pública de LA e pelo Grande Mercado Central, que era o que eu fazia. Jesus Cristo. Mas mais do que essa similaridade de vidas, o que me tocava era o modo como expressava as ocorrências mais tolas da existência. Reparei que ele vivia de laranjas. Minha dieta era outra: batatas, pepinos e tomates. Quando podia me dar a esse luxo. Batatas primeiro. Contando grama a grama, as batatas me pareciam mais baratas e mais satisfatórias. Mas Bante viera do Colorado. Sendo californiano, eu sempre olhara as laranjas quase como pulgas no pelo de um gato. Mas isso é má escrita. Bante nunca escrevia mal: cada palavra estava no seu devido lugar e cada palavra expressava o que devia com perfeição.
Ele havia sido descoberto pelo grande editor L. H. Renkin, que dirigia a revista The American Calamity. Renkin também trabalhou como editor para uma das editoras de Nova York, além de ser um escritor bem razoável. Eu acabaria por voltar à biblioteca para retirar todos os livros de John Bante. Havia mais três outros, mas Sporting Times? Yeah? continuava sendo meu favorito.
Acabei por memorizar todas as descrições da vizinhança em Sporting Times. Eu morava num barraco de tapume nos fundos de uma pensão por dois dólares a semana. A vizinhança se chamava Bunker Hill. E fui em busca do lugar onde Bante tinha morado. Segui a Angel’s Flight e descobri o local exato do hotel que ele tinha descrito e fiquei ali do lado de fora, olhando-o. Senti correr por mim uma das sensações mais poderosas de toda a minha vida. Eu estava, de fato, pasmado. Era o hotel. Aquela era a janela pela qual sua estranha namorada, Carmen, havia escalado para entrar. Estranha e trágica Carmen.
Fiquei ali parado, olhando para a janela. Era cedo da tarde e o quarto estava escuro. A persiana estava a meio palmo e uma leve brisa a balançava levemente. Ali Bante escrevera Sporting Times. Tudo havia saído daquele quarto, um quarto pelo qual eu tinha passado por meses no meu caminho até o Grande Mercado Central, até o meu bar verde preferido ou mesmo a caminho das minhas pernadas pelo centro. Fiquei ali parado, me perguntando quem ocuparia o quarto naquele momento. Talvez Bante ainda estivesse ali! Quem sabe eu não pudesse dar um pulo ali e bater à porta?
Olá, sr. Bante? Eu também escrevo. Não tão bem quanto o senhor. Só gostaria de dizer o quanto suas palavras estão vivas dentro de mim e ao meu redor e que tive muita sorte de ler o senhor. Bem, agora já estou de saída, adeus...
Mas eu sabia que jamais poderia perturbar um deus. Os deuses tinham seus afazeres. Mesmo quando estavam dormindo, dormiam de um modo diferente. Além disso, eu sabia que Bante não estava lá. No seu último livro de contos, ele mencionara em uma das histórias que vivia num quarto em Hollywood, que o aluguel era sete dólares por semana e a senhoria estava pronta para lhe dar um chute na bunda, e ele só fazia rezar para a Virgem Maria. Não era do meu perfil adorar heróis. Bante era o primeiro. Eram suas palavras, a simplicidade e a clareza delas. Faziam com que eu quisesse chorar, mas, ao mesmo tempo, me davam a impressão de ser capaz de atravessar as paredes.
Decidi que queria ver o quarto de qualquer jeito, o quarto onde o livro fora escrito. Apanhei o trem funicular até a rua de cima, dei uma soltada nas pernas e desci na calçada mais próxima ao hotel. Caminhei em frente à fachada e entrei. Ali estava o saguão, exatamente como descrito por ele. E ali estava a pequena mesa de centro, sobre a qual ele espalhara diversas cópias de The American Calamity, que trazia publicado o primeiro conto de sua autoria, O cachorrinho riu com força e de verdade. Caminhei pelo corredor, peguei a esquerda e parei junto ao quarto cuja janela dava para a Angel’s Flight.
Quarto 3. Ergui minha mão para bater, hesitei, e então bati. Três golpes curtos. Esperei. Nada. Bati outra vez, com mais força, golpes fortes, mas, ainda assim, batidas cheias de reverência. Ouvi algum som no quarto. Então a porta se abriu. Houve uma lufada de calor – era o Inferno de Dante. Era uma tarde quente de junho, mas havia uma estufa a gás acesa a todo vapor. Uma velha parou ali, enrolada num cobertor. Era muito pequena e quase careca, mas vários fios de cabelo branco continuavam crescendo, longos, descendo ao redor de seus ouvidos e queixo.
– Sim? – ela disse.
– Com licença, mas estou procurando por um amigo que costumava viver aqui, John Bante...?
– Não – disse a velha.
Tinha olhos incrivelmente lindos, como se tudo mais que fora consumido tivesse se concentrado ali, a esperar pelo fim.
– Ele era escritor...
A velha ficou apenas me olhando. Ficamos assim por um tempo.
Então ela disse:
– Vá à merda!
E bateu a porta…
Eu escrevia e bebia à noite. Durante o dia eu ficava na Biblioteca Pública de LA e lia todos os escritores e era uma leitura difícil, os escritores usavam parágrafos longos e páginas de descrição, construindo a trama e desenvolvendo os personagens, mas os personagens não eram nada interessantes e o que as histórias finalmente revelavam não era lá grande coisa. Pouco se dizia das vidas desperdiçadas da maioria das pessoas, da tristeza, de toda tristeza, da loucura, da risada vencedora da dor. Boa parte dos escritores escrevia sobre as experiências da vida da alta classe média. Precisava ler algo que me ajudasse a atravessar o dia, a rua, algo em que pudesse me agarrar. Precisava me embebedar de palavras, em vez disso me via obrigado a apelar à garrafa. Eu sentia, suponho, como todos os escritores fracassados sentem, que eu realmente podia escrever e que as circunstâncias e os que governam e a política estavam contra mim. Às vezes estão; outras vezes você apenas acha que pode escrever quando na verdade não pode.
Eu passava fome e escrevia. Baixei de 95 para 65 quilos. Meus dentes ficaram frouxos na boca. Podia empurrar meus incisivos com os dedos para a frente e para trás. Estavam frouxos na gengiva. Certa noite, enquanto dava uma volta, senti que algo se desprendia e logo estava com um dente na mão. Lá estava ele: virado para cima. Coloquei-o sobre a mesa e bebi em sua homenagem.
E, claro, quando se está comprando tempo com um salário de trabalhador de meio turno há outras coisas das quais você abre mão além da comida. Refiro-me a mulheres jovens e carros. Você caminha, acaba por encontrar uma puta de ocasião. Além disso, você usa os mesmos sapatos por tanto tempo que as solas se enchem de furos e você é obrigado a forrá-los com papelão; além disso, as unhas encravam de uma maneira tão feia que quase já não se pode calçar os sapatos. E também não sobrou, a essa altura, nem um traje domingueiro, nem convites para jantares gratuitos de Ação de Graças e de Natal. Escritores famintos levam uma vida pior do que a dos vagabundos da favela. E isto porque há duas coisas de que precisam: quatro paredes, e estar sozinhos.
...Mas numa tarde na Biblioteca Pública de LA alguma coisa aconteceu. Quanto a ser uma pessoa lida, eu já estava estufado, ao extremo: D. H. Lawrence, todos os russos, Huxley, Thurber, Chesterton, Dante, Shakespeare, Villon, todos os Shaws, O’Neil, Blake, Dos Passos, Hem, por que seguir? Centenas de escritores conhecidos e centenas de desconhecidos... E todos eles me feriam porque eram ótimos por um tempo, mas por breves instantes, em lampejos, para depois retornarem à sua pesada monotonia literária. Isto era mais do que desencorajador, pois significava que séculos, SÉCULOS de literatura e escritores não podiam me ajudar. No mínimo, falharam em me oferecer o que eu precisava para me virar no mundo das palavras.
Mas, como eu estava dizendo, nessa tarde eu matava o meu dia com o costumeiro baixar de livros das prateleiras, o abrir de páginas, ler uma ou duas de cada volume, devolvê-los aos seus lugares. Bem, peguei mais um Sporting Times? Yeah?, de um tal John Bante. Abri numa das páginas, esperando o de sempre, mas as palavras, sim, as palavras pularam sobre mim, assim mesmo. Saíram do papel e me perfuraram. As palavras eram simples, concisas, e falavam de alguma coisa que estava acontecendo agora! Até mesmo a fonte parecia diferente. As palavras eram legíveis. Havia alguns espaços e então mais palavras. As palavras eram quase como uma voz na sala. Peguei o livro e fui me sentar a uma mesa. Cada página era poderosa. Não podia acreditar naquilo. Era como se as páginas fossem pular do livro e começar a caminhar por ali, voar ao meu redor. Possuíam uma força notável, um realismo total. Por que esse homem nunca tinha sido mencionado antes? Eu também estava lendo crítica literária, Winters, todos aqueles vigaristas, os queridinhos da Kenyon Review e da Sewanee Review, e nunca haviam mencionado este homem. O mesmo ocorreu nos meus dois anos de coma profundo no LA City College, nem uma menção sequer. Ergui os olhos da minha mesa. Bem, não era minha, pertencia à cidade, aos contribuintes, e eu não podia me enquadrar propriamente nessa categoria. Mas eu tinha o livro de John Bante diante de mim e eu olhava para as pessoas nas outras mesas, para as pessoas que caminhavam por ali ou que estavam apenas sentadas, muitos vagabundos como eu e nenhum deles sabia sobre John Bante... ou teriam começado a brilhar, a se sentir melhor, não teriam se importado em ser o que eram ou que deveriam ser.
Eu tinha um cartão da biblioteca e tirei John Bante de lá. Levei-o comigo de volta para meu quarto e comecei a ler do início. Ele chegava a ser engraçado às vezes, mas era um tipo estranho e calmo de humor, como um homem queimado até a morte que ainda assim acena com um piscar de olhos para o primeiro homem que ateou as chamas ou Para O Homem Que Está Lá Em Cima. Bante possuía uma inclinação religiosa mesmo que fosse coroada por um estranho sorriso. Eu não tinha qualquer inclinação, mas eu gostava da dele. E ele escrevia sobre um escritor que passava fome e que circulava pela Biblioteca Pública de LA e pelo Grande Mercado Central, que era o que eu fazia. Jesus Cristo. Mas mais do que essa similaridade de vidas, o que me tocava era o modo como expressava as ocorrências mais tolas da existência. Reparei que ele vivia de laranjas. Minha dieta era outra: batatas, pepinos e tomates. Quando podia me dar a esse luxo. Batatas primeiro. Contando grama a grama, as batatas me pareciam mais baratas e mais satisfatórias. Mas Bante viera do Colorado. Sendo californiano, eu sempre olhara as laranjas quase como pulgas no pelo de um gato. Mas isso é má escrita. Bante nunca escrevia mal: cada palavra estava no seu devido lugar e cada palavra expressava o que devia com perfeição.
Ele havia sido descoberto pelo grande editor L. H. Renkin, que dirigia a revista The American Calamity. Renkin também trabalhou como editor para uma das editoras de Nova York, além de ser um escritor bem razoável. Eu acabaria por voltar à biblioteca para retirar todos os livros de John Bante. Havia mais três outros, mas Sporting Times? Yeah? continuava sendo meu favorito.
Acabei por memorizar todas as descrições da vizinhança em Sporting Times. Eu morava num barraco de tapume nos fundos de uma pensão por dois dólares a semana. A vizinhança se chamava Bunker Hill. E fui em busca do lugar onde Bante tinha morado. Segui a Angel’s Flight e descobri o local exato do hotel que ele tinha descrito e fiquei ali do lado de fora, olhando-o. Senti correr por mim uma das sensações mais poderosas de toda a minha vida. Eu estava, de fato, pasmado. Era o hotel. Aquela era a janela pela qual sua estranha namorada, Carmen, havia escalado para entrar. Estranha e trágica Carmen.
Fiquei ali parado, olhando para a janela. Era cedo da tarde e o quarto estava escuro. A persiana estava a meio palmo e uma leve brisa a balançava levemente. Ali Bante escrevera Sporting Times. Tudo havia saído daquele quarto, um quarto pelo qual eu tinha passado por meses no meu caminho até o Grande Mercado Central, até o meu bar verde preferido ou mesmo a caminho das minhas pernadas pelo centro. Fiquei ali parado, me perguntando quem ocuparia o quarto naquele momento. Talvez Bante ainda estivesse ali! Quem sabe eu não pudesse dar um pulo ali e bater à porta?
Olá, sr. Bante? Eu também escrevo. Não tão bem quanto o senhor. Só gostaria de dizer o quanto suas palavras estão vivas dentro de mim e ao meu redor e que tive muita sorte de ler o senhor. Bem, agora já estou de saída, adeus...
Mas eu sabia que jamais poderia perturbar um deus. Os deuses tinham seus afazeres. Mesmo quando estavam dormindo, dormiam de um modo diferente. Além disso, eu sabia que Bante não estava lá. No seu último livro de contos, ele mencionara em uma das histórias que vivia num quarto em Hollywood, que o aluguel era sete dólares por semana e a senhoria estava pronta para lhe dar um chute na bunda, e ele só fazia rezar para a Virgem Maria. Não era do meu perfil adorar heróis. Bante era o primeiro. Eram suas palavras, a simplicidade e a clareza delas. Faziam com que eu quisesse chorar, mas, ao mesmo tempo, me davam a impressão de ser capaz de atravessar as paredes.
Decidi que queria ver o quarto de qualquer jeito, o quarto onde o livro fora escrito. Apanhei o trem funicular até a rua de cima, dei uma soltada nas pernas e desci na calçada mais próxima ao hotel. Caminhei em frente à fachada e entrei. Ali estava o saguão, exatamente como descrito por ele. E ali estava a pequena mesa de centro, sobre a qual ele espalhara diversas cópias de The American Calamity, que trazia publicado o primeiro conto de sua autoria, O cachorrinho riu com força e de verdade. Caminhei pelo corredor, peguei a esquerda e parei junto ao quarto cuja janela dava para a Angel’s Flight.
Quarto 3. Ergui minha mão para bater, hesitei, e então bati. Três golpes curtos. Esperei. Nada. Bati outra vez, com mais força, golpes fortes, mas, ainda assim, batidas cheias de reverência. Ouvi algum som no quarto. Então a porta se abriu. Houve uma lufada de calor – era o Inferno de Dante. Era uma tarde quente de junho, mas havia uma estufa a gás acesa a todo vapor. Uma velha parou ali, enrolada num cobertor. Era muito pequena e quase careca, mas vários fios de cabelo branco continuavam crescendo, longos, descendo ao redor de seus ouvidos e queixo.
– Sim? – ela disse.
– Com licença, mas estou procurando por um amigo que costumava viver aqui, John Bante...?
– Não – disse a velha.
Tinha olhos incrivelmente lindos, como se tudo mais que fora consumido tivesse se concentrado ali, a esperar pelo fim.
– Ele era escritor...
A velha ficou apenas me olhando. Ficamos assim por um tempo.
Então ela disse:
– Vá à merda!
E bateu a porta…
Charles Bukowski, "Pedaços de um caderno manchado de vinhos"
O Limpa-Palavras
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.
No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
Álvaro Magalhães, "O Limpa-Palavras e outros poemas"
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.
Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.
A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papeis no ar
e é preciso fechá-la na arrecadação.
No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.
A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.
Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão para apanhares
a palavra barco ou a palavra amor.
Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.
Álvaro Magalhães, "O Limpa-Palavras e outros poemas"
A máscara do meu rosto
Estou prestes a sair de casa. Abro o armário. Urge escolher a máscara, das muitas que eu tenho, para ir à rua. Com ela enfrentarei os dissabores e as aventuras do meu cotidiano. Afinal, ela é a ponte que cruzo para alcançar os demais seres.
Minhas máscaras acomodam-se na prateleira, em meio às bolsas. Todas parecidas, elas diferenciam-se entre si apenas em detalhes imperceptíveis aos olhos alheios. São raros aqueles que surpreendem a natureza da minha máscara. Reconhecem que rio, choro ou encontro-me na iminência de velejar para um hemisfério longínquo, de onde, quem sabe, não regresso tão cedo.
Enquanto muitos confessam, em consonância, com triste adágio, que suas vidas são um livro aberto, nada tenho a esconder dos homens, sou justo o contrário, não sei viver sem as máscaras, que me protegem, são a salvaguarda da minha liberdade. E ainda que se provem elas em muitos momentos incapazes de me proteger, não importa. Afinal, a vida não permite previsões, lances antecipados. Para enfrentar certos conflitos, seria necessário revestir-se da máscara de ferro, que traz consigo o sopro da morte.
Duvido que alguém prescinda do uso da máscara. Ande inadvertido pelo mundo, oferecendo o rosto cru dos seus sentimentos. Desajeitado e pobre, quando poderia dispor, a qualquer hora, de mais de mil máscaras, capazes todas de impulsionar o espetáculo humano, de corresponder à natureza do seu dono, de encharcar de vinagre e esperança qualquer coração.
As máscaras que levo pelas manhãs coladas à pele têm recursos múltiplos. Fogem ao meu controle. Fazem-se de gestos, do franzir da testa, das rugas em torno dos olhos, dos sulcos próximos à comissura dos lábios. Integram um sistema que esconde e revela ao mesmo tempo quem sou. Desgovernada, inescrupulosa, cheia de razão e de fúria, padecendo, como os demais, da enfermidade dos sentimentos. E que embora esteja sob a guarda das máscaras, não está a salvo dos que nos observam com luneta. Donos de um olhar que semeia, a respeito de quem seja, uma versão contrária à que queríamos.
As máscaras, sem dúvida, ajudam-me a viver. Levam-me às cerimônias solenes, onde confirmo a educação recebida. Acompanham-me nos momentos em que sangro, a despeito da minha aparente indiferença. E são elas ainda que me perguntam qual das máscaras usar em determinada festa. Acaso a máscara que engendrei ao longo dos anos, e que me serve como um chinelo velho? Aquela que é dissimulada, cujo desassombro assusta-me, pois revela aos vizinhos o que eu mantinha sob resguardo? Ou a outra, que aspira sobrepor-se à tirania das convenções, quer rasgar o véu da hipocrisia, emitir as palavras acomodadas no baú dos enigmas? Será a máscara que alardeia arrogância, ansiosa por deixar consignada nas paredes do mundo uma única mensagem que justifique sua existência?
Olho-me ao espelho. Estarei usando máscara mesmo quando estou sozinha? Acaso já não vivo sem ela, só respiro por meio de artifícios? É ela que me deixa ser alada e terrestre, me permite voar e contornar seres e objetos de cristal? É a máscara que pousa desajeitada no meu próprio rosto, onde há de ficar para sempre, até derreter um dia como se fora feita de cera?
Minhas máscaras acomodam-se na prateleira, em meio às bolsas. Todas parecidas, elas diferenciam-se entre si apenas em detalhes imperceptíveis aos olhos alheios. São raros aqueles que surpreendem a natureza da minha máscara. Reconhecem que rio, choro ou encontro-me na iminência de velejar para um hemisfério longínquo, de onde, quem sabe, não regresso tão cedo.
Enquanto muitos confessam, em consonância, com triste adágio, que suas vidas são um livro aberto, nada tenho a esconder dos homens, sou justo o contrário, não sei viver sem as máscaras, que me protegem, são a salvaguarda da minha liberdade. E ainda que se provem elas em muitos momentos incapazes de me proteger, não importa. Afinal, a vida não permite previsões, lances antecipados. Para enfrentar certos conflitos, seria necessário revestir-se da máscara de ferro, que traz consigo o sopro da morte.
Pablo Picasso |
Duvido que alguém prescinda do uso da máscara. Ande inadvertido pelo mundo, oferecendo o rosto cru dos seus sentimentos. Desajeitado e pobre, quando poderia dispor, a qualquer hora, de mais de mil máscaras, capazes todas de impulsionar o espetáculo humano, de corresponder à natureza do seu dono, de encharcar de vinagre e esperança qualquer coração.
As máscaras que levo pelas manhãs coladas à pele têm recursos múltiplos. Fogem ao meu controle. Fazem-se de gestos, do franzir da testa, das rugas em torno dos olhos, dos sulcos próximos à comissura dos lábios. Integram um sistema que esconde e revela ao mesmo tempo quem sou. Desgovernada, inescrupulosa, cheia de razão e de fúria, padecendo, como os demais, da enfermidade dos sentimentos. E que embora esteja sob a guarda das máscaras, não está a salvo dos que nos observam com luneta. Donos de um olhar que semeia, a respeito de quem seja, uma versão contrária à que queríamos.
As máscaras, sem dúvida, ajudam-me a viver. Levam-me às cerimônias solenes, onde confirmo a educação recebida. Acompanham-me nos momentos em que sangro, a despeito da minha aparente indiferença. E são elas ainda que me perguntam qual das máscaras usar em determinada festa. Acaso a máscara que engendrei ao longo dos anos, e que me serve como um chinelo velho? Aquela que é dissimulada, cujo desassombro assusta-me, pois revela aos vizinhos o que eu mantinha sob resguardo? Ou a outra, que aspira sobrepor-se à tirania das convenções, quer rasgar o véu da hipocrisia, emitir as palavras acomodadas no baú dos enigmas? Será a máscara que alardeia arrogância, ansiosa por deixar consignada nas paredes do mundo uma única mensagem que justifique sua existência?
Olho-me ao espelho. Estarei usando máscara mesmo quando estou sozinha? Acaso já não vivo sem ela, só respiro por meio de artifícios? É ela que me deixa ser alada e terrestre, me permite voar e contornar seres e objetos de cristal? É a máscara que pousa desajeitada no meu próprio rosto, onde há de ficar para sempre, até derreter um dia como se fora feita de cera?
Nélida Piñon, "Até amanhã, outra vez"
segunda-feira, dezembro 26
Livros e caracóis
Um bibliófilo pobre tem infinitas ocasiões de sofrer. Os livros não lhe fogem das mãos mas, em compensação, passam pelo ar, a voo de pássaro, a voo de preços.
No entanto, entre muitas explorações, surge a pérola.
Lembro-me da surpresa do livreiro Garcia Rico, em Madri, em 1934, quando propus comprar dele uma antiga edição de Góngora que custava apenas 100 pesetas, em mensalidades de 20. Era bem pouco dinheiro mas eu não o tinha. Paguei pontualmente ao longo daquele semestre. Era a edição de Foppens, editor flamengo do século XVII que imprimiu em incomparáveis e magníficos caracteres as obras dos mestres espanhóis do Século de Ouro.
Não gosto de ler Quevedo senão naquelas edições onde os sonetos se desdobram em linha de combate com férreos navios. Depois me internei na selva das livrarias, pelos desvãos suburbanos das de segunda mão ou pelas naves catedralícias das grandiosas livrarias da França e da Inglaterra. Saía com as mãos empoeiradas mas de vez em quando obtive algum tesouro – ou pelo menos a alegria de pensar que assim fora.
Prêmios literários marcantes e sonantes me ajudaram a adquirir certos exemplares de preços extravagantes. Minha biblioteca passou a ser considerável. Os antigos livros de poesia relampejavam nela e minha inclinação para a história natural encheu-a de grandiosos livros de botânica com iluminuras coloridas; e livros de pássaros, de insetos ou de peixes. Encontrei pelo mundo milagroso livros de viagens, Quixotes incríveis, impressos por Ibarra, infólios de Dante com os maravilhosos tipos bodôni. Até alguns Molières em edições limitadas, “Ad usum delphini”, para o filho do rei da França.
Alguns destes troféus poderiam ser históricos. Lembro que no Museu de Pequim abriram a caixa mais sagrada dos moluscos do mar da China para me fazer presente do segundo dos dois únicos exemplares da Thatcheria Mirabilis. E assim pude arrebanhar o tesouro dessa inacreditável obra com que o oceano presenteou a China no estilo de templos e pagodes que perduram naquelas latitudes.
Demorei trinta anos para juntar tantos livros. Minhas prateleiras guardavam incunábulos e outros volumes que me comoviam; Quevedo, Cervantes e Góngora, em edições originais, assim como Laforgue, Rimbaud e Lautréamont. Estas páginas me pareciam conservar o tato dos poetas amados. Tinha manuscritos de Rimbaud. Paul Éluard me deu de presente em Paris, por meu aniversário, as duas cartas de Isabelle Rimbaud para sua mãe, escritas no hospital de Marselha onde o nômade teve uma perna amputada. Eram tesouros ambicionados pela Biblioteca Nacional de Paris e pelos vorazes bibliófilos de Chicago.
Tanto corria eu pelo mundo que minha biblioteca cresceu desmedidamente, ultrapassando as condições de uma biblioteca particular. Certo dia presenteei a grande coleção de caracóis que levei vinte anos para juntar e aqueles cinco mil volumes escolhidos por mim com o maior amor em todos os países. Presenteei-os à universidade de minha pátria. Foram recebidos como dádiva cintilante pelas bonitas palavras de um reitor.
Qualquer homem esclarecido pensará no regozijo com que receberiam no Chile essa doação minha. Mas existem também homens não esclarecidos. Um crítico oficial escreveu artigos furiosos. Protestava com veemência contra meu gesto. Quando se poderá interceptar o comunismo internacional?, proclamava. Outro senhor fez no parlamento um discurso inflamado contra a universidade por ter aceito meus maravilhosos cunábulos e incunábulos, ameaçando cortar os subsídios que ela recebia do Instituto Nacional. O articulista e o parlamentar lançaram uma onda de gelo sobre o pequeno mundo chileno. O reitor da universidade ia e vinha pelos corredores do congresso. desarvorado.
No entanto, entre muitas explorações, surge a pérola.
Lembro-me da surpresa do livreiro Garcia Rico, em Madri, em 1934, quando propus comprar dele uma antiga edição de Góngora que custava apenas 100 pesetas, em mensalidades de 20. Era bem pouco dinheiro mas eu não o tinha. Paguei pontualmente ao longo daquele semestre. Era a edição de Foppens, editor flamengo do século XVII que imprimiu em incomparáveis e magníficos caracteres as obras dos mestres espanhóis do Século de Ouro.
Não gosto de ler Quevedo senão naquelas edições onde os sonetos se desdobram em linha de combate com férreos navios. Depois me internei na selva das livrarias, pelos desvãos suburbanos das de segunda mão ou pelas naves catedralícias das grandiosas livrarias da França e da Inglaterra. Saía com as mãos empoeiradas mas de vez em quando obtive algum tesouro – ou pelo menos a alegria de pensar que assim fora.
Prêmios literários marcantes e sonantes me ajudaram a adquirir certos exemplares de preços extravagantes. Minha biblioteca passou a ser considerável. Os antigos livros de poesia relampejavam nela e minha inclinação para a história natural encheu-a de grandiosos livros de botânica com iluminuras coloridas; e livros de pássaros, de insetos ou de peixes. Encontrei pelo mundo milagroso livros de viagens, Quixotes incríveis, impressos por Ibarra, infólios de Dante com os maravilhosos tipos bodôni. Até alguns Molières em edições limitadas, “Ad usum delphini”, para o filho do rei da França.
Mas em realidade o melhor que colecionei em minha vida foram meus caracóis. Deram-me o prazer de sua prodigiosa estrutura: a pureza lunar de uma porcelana misteriosa agregada à multiplicidade das formas, táteis, góticas, funcionais.
Milhares de pequenas portas submarinas se abriram para meu conhecimento desde aquele dia em que D. Carlos de la Torre, ilustre malacólogo de Cuba, me presenteou com os melhores exemplares de sua coleção. Desde então e ao acaso de minhas viagens, percorri os sete mares espreitando-os e buscando-os. Mas devo reconhecer que foi o mar de Paris que, entre uma onda e outra, descobriu para mim mais caracóis. Paris havia transmigrado todo o nácar dos oceanos para suas lojas naturalistas, para seus “mercados de pulgas”. Mais fácil que meter as mãos nas rochas de Veracruz ou Baja California foi encontrar sob o sargaço urbano, entre lâmpadas rotas e sapatos velhos, a delicada silhueta da Oliva Textil. Ou surpreender a lança de quartzo que se alonga, como um verso de água, na Rosellaria Fusus. Ninguém me tirará o deslumbramento de ter tirado do mar o Espondylus Roseo, grande ostra tacheada de espinhos de coral. E mais adiante entreabrir o Espondylus Blanco, de espinhos nevados como estalagmites de uma gruta gongórica.
Alguns destes troféus poderiam ser históricos. Lembro que no Museu de Pequim abriram a caixa mais sagrada dos moluscos do mar da China para me fazer presente do segundo dos dois únicos exemplares da Thatcheria Mirabilis. E assim pude arrebanhar o tesouro dessa inacreditável obra com que o oceano presenteou a China no estilo de templos e pagodes que perduram naquelas latitudes.
Demorei trinta anos para juntar tantos livros. Minhas prateleiras guardavam incunábulos e outros volumes que me comoviam; Quevedo, Cervantes e Góngora, em edições originais, assim como Laforgue, Rimbaud e Lautréamont. Estas páginas me pareciam conservar o tato dos poetas amados. Tinha manuscritos de Rimbaud. Paul Éluard me deu de presente em Paris, por meu aniversário, as duas cartas de Isabelle Rimbaud para sua mãe, escritas no hospital de Marselha onde o nômade teve uma perna amputada. Eram tesouros ambicionados pela Biblioteca Nacional de Paris e pelos vorazes bibliófilos de Chicago.
Tanto corria eu pelo mundo que minha biblioteca cresceu desmedidamente, ultrapassando as condições de uma biblioteca particular. Certo dia presenteei a grande coleção de caracóis que levei vinte anos para juntar e aqueles cinco mil volumes escolhidos por mim com o maior amor em todos os países. Presenteei-os à universidade de minha pátria. Foram recebidos como dádiva cintilante pelas bonitas palavras de um reitor.
Qualquer homem esclarecido pensará no regozijo com que receberiam no Chile essa doação minha. Mas existem também homens não esclarecidos. Um crítico oficial escreveu artigos furiosos. Protestava com veemência contra meu gesto. Quando se poderá interceptar o comunismo internacional?, proclamava. Outro senhor fez no parlamento um discurso inflamado contra a universidade por ter aceito meus maravilhosos cunábulos e incunábulos, ameaçando cortar os subsídios que ela recebia do Instituto Nacional. O articulista e o parlamentar lançaram uma onda de gelo sobre o pequeno mundo chileno. O reitor da universidade ia e vinha pelos corredores do congresso. desarvorado.
O certo é que se passaram vinte anos do fato e ninguém tornou a ver nem meus livros nem meus caracóis. É como se houvessem retornado às livrarias e ao oceano.
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"
Mais um Natal
Aviso num restaurante de Brighton, que o dono fez imprimir no cardápio, à revelia dos garçons: “Somos seus amigos e lhe desejamos um Feliz Natal. Por favor, não nos ofenda, dando-nos gorjetas.” Junto à porta de saída, entretanto, os garçons fizeram dependurar uma caixinha sob o letreiro: “Ofensas”.
E no dia de Natal, como sempre, todos os bares de Londres permanecem fechados. Mas consegui realizar o milagre de encontrar em Chelsea um bar aberto, lá para as dez horas da noite. Meio desconfiado, fui entrando — logo um dos fregueses se adiantou, copo de cerveja na mão:
— Perdão, cavalheiro, mas o senhor já foi à igreja hoje?
E se justificou estendendo o braço ao redor, para apontar os demais fregueses, que bebiam cerveja em silêncio.
— Porque aqui dentro, nós todos já fomos.
E sem esperar resposta, passou-me o seu copo de cerveja, pedindo ao barman outro para si.
Festejou-se o Natal, já se festeja o Ano Novo. Há, porém, muita gente na triste perspectiva de passar ambas as festas em completa solidão. Como é o caso de Ethel Denham, uma velhinha com mais de oitenta anos de idade.
Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca chegou a se casar. Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria. Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de necessidade.
Na noite de Natal esta necessidade veio, mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não aguentava a ideia de estar sozinha e passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos.
— Fique um pouquinho — pediu ela. — Vamos conversar um pouco.
O guarda teve pena e resolveu ficar. Para não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá, aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu uma arrumação na casa.
Para quê! Há gestos de solidariedade e compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer. Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em pouco surgia outro guarda, para saber o que havia.
— Fique um pouquinho — pediu ela: — O senhor não aceita uma xícara de chá?
Mas este estava de serviço mesmo, não era mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora.
Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar — aquele sim, tão bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um capote, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um dedinho de prosa, para uma xícara de chá.
Outros, cuja necessidade material é mais imperiosa ainda que o convívio, tiveram quem apelasse em nome deles durante o Natal. O vigário da minha paróquia, em West Hampstead, resolveu perder a cerimônia, durante a prédica:
— Vou ser claro e quem tiver ouvidos para ouvir, ouça: estamos nas vésperas do Natal, é preciso ser generoso, proporcionarmos aos pobres um fim de ano decente. Eles também têm direito. Quero hoje uma coleta mais abundante que nos outros domingos. Falei claro? Pois vou lançar mão de uma parábola, para não perder o hábito, e porque fica mais bonito. Já usei essa parábola em outros Natais, e com grande sucesso. Lá vai ela, prestem atenção.
E pôs-se a contar a história daquele inglês que estava passeando pelo campo, como só os ingleses costumam fazer, quando de repente caiu uma chuvarada. Ele, naquele descampado, não tinha onde se esconder. Avistou ao longe uma árvore solitária, correu para lá — mas era uma árvore desgalhada e desfolhada, quase que só tinha tronco. No tronco havia um oco — o homem não teve dúvida: meteu-se no oco da árvore, para se esconder da chuva.
Vai daí, no que a chuva amainou, o homem quis sair do oco da árvore, não houve jeito: a água tinha feito inchar a madeira e a passagem, já estreita, estreitara-se ainda mais. Ali estava ele, prisioneiro da árvore, sozinho no meio do campo, jamais sairia dali, certamente morreria entalado. Então começou a meditar na estupidez que fora sua vida, sempre preocupado com o próprio bem-estar, sem jamais pensar em seus semelhantes. Nunca lhe ocorrera dar uma esmola para os pobres no Natal, por exemplo. Se frequentasse a igreja da sua paróquia (e aqui o vigário fazia um parêntese: “que certamente podia ser esta aqui mesmo, ele podia ser um dos senhores que estão me ouvindo”), ele seria sensível a este apelo à sua generosidade. Mas não: gastava dinheiro à toa, com bobagem, nunca abrira mão de um mínimo que fosse para atender à necessidade de alguém. E foi-se sentindo cada vez mais ínfimo, diminuindo diante de si mesmo, com a consciência da sua própria iniquidade. Deu-se então o milagre: tanto diminuiu, ficou tão pequenino, que conseguiu sair do oco da árvore.
E o vigário arremata:
— Vamos ter uma estação bem chuvosa este fim de ano! Cuidado com o oco da árvore em que se meterem! Lembrem-se da própria pequenez! Dêem esmolas aos meus pobres!
Já o dono de uma área de estacionamento de automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o seguinte aviso ali afixado:
E no dia de Natal, como sempre, todos os bares de Londres permanecem fechados. Mas consegui realizar o milagre de encontrar em Chelsea um bar aberto, lá para as dez horas da noite. Meio desconfiado, fui entrando — logo um dos fregueses se adiantou, copo de cerveja na mão:
— Perdão, cavalheiro, mas o senhor já foi à igreja hoje?
E se justificou estendendo o braço ao redor, para apontar os demais fregueses, que bebiam cerveja em silêncio.
— Porque aqui dentro, nós todos já fomos.
E sem esperar resposta, passou-me o seu copo de cerveja, pedindo ao barman outro para si.
Festejou-se o Natal, já se festeja o Ano Novo. Há, porém, muita gente na triste perspectiva de passar ambas as festas em completa solidão. Como é o caso de Ethel Denham, uma velhinha com mais de oitenta anos de idade.
Dona Ethel não tem filhos nem marido: nunca chegou a se casar. Mora sozinha numa pequena casa de Exeter, fruto de sua aposentadoria. Para que não lhe aconteça alguma coisa sem ter a quem apelar, foi instalada à porta de sua casinha uma luz vermelha, que ela pode acender para pedir socorro, em caso de necessidade.
Na noite de Natal esta necessidade veio, mais imperiosa do que nunca. A boa velhinha não aguentava a ideia de estar sozinha e passar o Natal sem ninguém. Então acendeu luz de socorro e aguardou os acontecimentos.
Em pouco chegava um guarda de serviço, para ver o que tinha acontecido. E viu que não tinha acontecido nada.
— Fique um pouquinho — pediu ela. — Vamos conversar um pouco.
O guarda teve pena e resolveu ficar. Para não estar sem fazer nada, enquanto conversava fiado com a velhinha, fez um chá, aproveitou e lavou a louça, limpou a cozinha, deu uma arrumação na casa.
Para quê! Há gestos de solidariedade e compreensão que exigem outros, pois acostumam mal. Ou acostumam bem, ainda que na simples necessidade de participar da humana convivência. A dona da casa, encantada, na noite seguinte, depois de fazer o jantar, ficou esperando o seu Papai Noel tornar a aparecer. Como ele nunca mais viesse, não teve dúvida: acendeu a luz do pedido de socorro. Em pouco surgia outro guarda, para saber o que havia.
— Fique um pouquinho — pediu ela: — O senhor não aceita uma xícara de chá?
Mas este estava de serviço mesmo, não era mais noite de Natal nem nada. Então confortou a velhinha como pôde e caiu fora.
Ela, desde então, está esperando o primeiro guarda voltar — aquele sim, tão bonzinho que ele é. Não se conformando mais, depois de três noites de espera, vestiu um capote, enrolou-se num chale e saiu para o frio da rua até a guarnição local, a fim de saber onde andava o seu amigo. Mas não lhe guardara o nome, de modo que o comandante da guarnição, apesar de sua boa vontade, não conseguiu localizá-lo. Agora, a velhinha apela através do jornal, pedindo ao próprio que apareça uma noite dessas, para um dedinho de prosa, para uma xícara de chá.
Outros, cuja necessidade material é mais imperiosa ainda que o convívio, tiveram quem apelasse em nome deles durante o Natal. O vigário da minha paróquia, em West Hampstead, resolveu perder a cerimônia, durante a prédica:
— Vou ser claro e quem tiver ouvidos para ouvir, ouça: estamos nas vésperas do Natal, é preciso ser generoso, proporcionarmos aos pobres um fim de ano decente. Eles também têm direito. Quero hoje uma coleta mais abundante que nos outros domingos. Falei claro? Pois vou lançar mão de uma parábola, para não perder o hábito, e porque fica mais bonito. Já usei essa parábola em outros Natais, e com grande sucesso. Lá vai ela, prestem atenção.
E pôs-se a contar a história daquele inglês que estava passeando pelo campo, como só os ingleses costumam fazer, quando de repente caiu uma chuvarada. Ele, naquele descampado, não tinha onde se esconder. Avistou ao longe uma árvore solitária, correu para lá — mas era uma árvore desgalhada e desfolhada, quase que só tinha tronco. No tronco havia um oco — o homem não teve dúvida: meteu-se no oco da árvore, para se esconder da chuva.
Vai daí, no que a chuva amainou, o homem quis sair do oco da árvore, não houve jeito: a água tinha feito inchar a madeira e a passagem, já estreita, estreitara-se ainda mais. Ali estava ele, prisioneiro da árvore, sozinho no meio do campo, jamais sairia dali, certamente morreria entalado. Então começou a meditar na estupidez que fora sua vida, sempre preocupado com o próprio bem-estar, sem jamais pensar em seus semelhantes. Nunca lhe ocorrera dar uma esmola para os pobres no Natal, por exemplo. Se frequentasse a igreja da sua paróquia (e aqui o vigário fazia um parêntese: “que certamente podia ser esta aqui mesmo, ele podia ser um dos senhores que estão me ouvindo”), ele seria sensível a este apelo à sua generosidade. Mas não: gastava dinheiro à toa, com bobagem, nunca abrira mão de um mínimo que fosse para atender à necessidade de alguém. E foi-se sentindo cada vez mais ínfimo, diminuindo diante de si mesmo, com a consciência da sua própria iniquidade. Deu-se então o milagre: tanto diminuiu, ficou tão pequenino, que conseguiu sair do oco da árvore.
E o vigário arremata:
— Vamos ter uma estação bem chuvosa este fim de ano! Cuidado com o oco da árvore em que se meterem! Lembrem-se da própria pequenez! Dêem esmolas aos meus pobres!
Já o dono de uma área de estacionamento de automóveis onde costumo parar o meu carro, em pleno centro de Londres, deixa-se impregnar à sua maneira do espírito de generosidade reinante no Natal. Tanto assim, que dei com o seguinte aviso ali afixado:
“Feliz Natal! Hoje o estacionamento aqui é gratuito.
Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.
Em tempo: a paz na terra aos homens de boa vontade termina impreterivelmente à meia-noite.”
Fernando Sabino, "Livro Aberto"sábado, dezembro 24
Presepe
Todos foram à vila, para missa-do-galo e Natal, deixando na fazenda Tio Bola, por achaques de velhice, com o terreireiro Anjão, imbecil, e a cardíaca cozinheira Nhota. Tio Bola aceitara ficar, de boa graça, dando visíveis sinais de paciência. Tão magro, tão fraco: nem piolhos tinha mais. Tudo cabendo no possível, teve uma ideia.
Não de primeira e súbita invenção.
Apreciara antes a ausência de meninos e adultos, que o atormentavam, tratando-o de menos; dos outros convém é a gente se livrar. Logo, porém, casa vazia, os parentes figuravam ainda mais hostis e próximos. A gente precisa também da importunação dos outros. Tio Bola, desestimado, cumpria mazelas diversas, seus oitenta anos; mas afobado e azafamoso. Quis ver visões.
Seu espírito pulou tãoquanto à vila, a Natal e missa, aquela merafusa. Topava era tristeza — isto é, falta de continuação. Por que é que a gente necessita, de todo jeito, dos outros? Velho sacode facilmente a cabeça. A ideia lhe chegou então, fantasia, passo de extravagância.
— “Mecê não mije na cama!” — intimara a Nhota, quando, comido o leite com farinha, ele fingia recolher-se. Não cabia no quarto. Natal era noite nova de antiguidade. Tomou aviso e voltou-se: estafermado, no corredor, o Anjão fazia-lhe pelas costas gesto obsceno. Ordenou-lhe então — trouxesse ao curral um boi, qualquer!
Saiu o Anjão a obedecer, gostava do que parecesse feitiço ou maldade. E no pequeno cercado estava já o burro chumbo, de que os outros não tinham carecido. Sem excogitamento, o burrinho dera a Tio Bola o remate da ideia.
Lá fora o escuro fechava. O Anjão no pátio acendera fogo, acocorava-se ante chama e brasa. Esse se ria do sossego. Também botara milho e sal no cocho, mandado. Natal era animação para surpresas, tintins tilintos, laldas e loas! O burro e o boi — à manjedoura — como quando os bichos falavam e os homens se calavam.
Nhota, em seus cantos, rezava para tomar ar, não baixando minuto, e tudo condenava. Tio Bola esperava que o Anjão se fosse, que Nhota não tossisse mas adormecesse. Estava de alpercatas, de camisolão e sem carapuça, esticando à janela pescoço e nariz, muito compridos. Os currais todos ermos, menos aquele... Tremia de verdade.
Veio, enfim, à sorrelfa; a horas. Pelas dez horas. Queria ver. Devagar descera, com Deus, a escada. Burro e boi diferençavam-se, puxados da sombra, quase claros. Paz. Sem brusquidão nem bulir: de longe o reconheciam.
Por um tempo, acostumava a vista.
Nhota dormia, agora, decerto; até o Anjão. Os outros, no Natal, na vila, semelhavam sempre fugidos... Quem vinha rebater-lhe o ato, fazer-lhe irrisão? De anos, só isto, hoje somente, tinha ele resolvido e em seu poder: a Noite, o curralete, cheiro de estercos, céu aberto, os dois dredemente — gado e cavalgadura. Boi grosso, baixo, tostado, quase rapé. Burro cor de rato. Tão com ele, no meio espaço, de-junto. Caduco de maluco não estava. Não embargando que em espírito da gente ninguém intruge. Apoiou-se no topo do cocho. Bicho não é limpo nem sujo. Ia demorar lá um tanto. Só o viço da noite — o som confuso?
Tão gordo fora; e, assim, como era, tinha só de deixar de fora seus rústicos cotovelos. Agora, o comichar, uma coceira seca. Viu o boi deitar-se também — riscando primeiro com a pata uma cruz no chão, e ajoelhando-se — como eles procedem. O mundo perdeu seu tique-taque. Tombou no quiquiri de um cochilo. Relentava. Ouviu. O Anjão estava ali, no segundo curral, havia coisa de um instante.
Que se aquietasse, pelo prazo de três credos.
Manteve-se. A hora dobrou de escura. Meia-noite já bateu? Abriu olhos de caçador. Dessurdo, escutou, já atilando. Um abecê, o reportório. Essas estrelas prosseguiam o caminhar, levantadas de um peso. Fazia futuro. O contrário do aqui não é ali... — achou. O boi — testo lento, olhos redondos. O burrinho, orelhas, fofas ventas. Da noite era um brotar, de plantação, do fundo. A noite era o dia ainda não gastado. Vez de espertar-se, viver esta vida aos átimos... Soporava. Dormiu reto. Dormindo de pés postos.
Acordou, no tremeclarear. Orvalhava. A Nhota dormia também, ali, sentada no chão, sem um rezungo. O Anjão, agachado, acendera um foguinho. Conchegados, com o boi amarelão e o burro rato, permaneciam; tão tanto ouvindo-se passarinhos em incerta entonação.
A estrela-d’alva se tirou. Já mais clareava. As pretas árvores nos azulados... O Anjão se riu para o sol. Nhota entoava o Bendito, não tinha morrido. Cantando o galo, em arrebato: a última estrelinha se pingou para dentro.
Tio Bola levantou-se — o corpo todo tinha dor-de-cabeça. Deu ordens, de manhã, dia: o Anjão soltasse burro e boi aos campos, a Nhota indo coar café. Os outros vinham voltar, da vila, de Natal e missa-do-galo. Tio Bola subiu a escada, de camisolão e alpercatas, sarabambo, repetia: — “Amém, Jesus!”
Guimarães Rosa, "Tutameia"
Não de primeira e súbita invenção.
Apreciara antes a ausência de meninos e adultos, que o atormentavam, tratando-o de menos; dos outros convém é a gente se livrar. Logo, porém, casa vazia, os parentes figuravam ainda mais hostis e próximos. A gente precisa também da importunação dos outros. Tio Bola, desestimado, cumpria mazelas diversas, seus oitenta anos; mas afobado e azafamoso. Quis ver visões.
Seu espírito pulou tãoquanto à vila, a Natal e missa, aquela merafusa. Topava era tristeza — isto é, falta de continuação. Por que é que a gente necessita, de todo jeito, dos outros? Velho sacode facilmente a cabeça. A ideia lhe chegou então, fantasia, passo de extravagância.
— “Mecê não mije na cama!” — intimara a Nhota, quando, comido o leite com farinha, ele fingia recolher-se. Não cabia no quarto. Natal era noite nova de antiguidade. Tomou aviso e voltou-se: estafermado, no corredor, o Anjão fazia-lhe pelas costas gesto obsceno. Ordenou-lhe então — trouxesse ao curral um boi, qualquer!
Saiu o Anjão a obedecer, gostava do que parecesse feitiço ou maldade. E no pequeno cercado estava já o burro chumbo, de que os outros não tinham carecido. Sem excogitamento, o burrinho dera a Tio Bola o remate da ideia.
Lá fora o escuro fechava. O Anjão no pátio acendera fogo, acocorava-se ante chama e brasa. Esse se ria do sossego. Também botara milho e sal no cocho, mandado. Natal era animação para surpresas, tintins tilintos, laldas e loas! O burro e o boi — à manjedoura — como quando os bichos falavam e os homens se calavam.
Nhota, em seus cantos, rezava para tomar ar, não baixando minuto, e tudo condenava. Tio Bola esperava que o Anjão se fosse, que Nhota não tossisse mas adormecesse. Estava de alpercatas, de camisolão e sem carapuça, esticando à janela pescoço e nariz, muito compridos. Os currais todos ermos, menos aquele... Tremia de verdade.
Veio, enfim, à sorrelfa; a horas. Pelas dez horas. Queria ver. Devagar descera, com Deus, a escada. Burro e boi diferençavam-se, puxados da sombra, quase claros. Paz. Sem brusquidão nem bulir: de longe o reconheciam.
Os olhos oferecidos lustravam. Guarani, boi de carro, severo brando. Jacatirão, prezado burrinho de sela. Tio Bola tateou o cocho: limpo, úmido de línguas. Empinou olhar: a umas estrelas miudinhas. Espiou o redor — caruca — que nem o esquecido, em vivido. Tio Bola devia de distrair saudades, a velhice entristecia-o só um pouco. Riu do que não sentiu; riu e não cuspiu. Estava ali a não imaginar o mundo.
Por um tempo, acostumava a vista.
Nhota dormia, agora, decerto; até o Anjão. Os outros, no Natal, na vila, semelhavam sempre fugidos... Quem vinha rebater-lhe o ato, fazer-lhe irrisão? De anos, só isto, hoje somente, tinha ele resolvido e em seu poder: a Noite, o curralete, cheiro de estercos, céu aberto, os dois dredemente — gado e cavalgadura. Boi grosso, baixo, tostado, quase rapé. Burro cor de rato. Tão com ele, no meio espaço, de-junto. Caduco de maluco não estava. Não embargando que em espírito da gente ninguém intruge. Apoiou-se no topo do cocho. Bicho não é limpo nem sujo. Ia demorar lá um tanto. Só o viço da noite — o som confuso?
O Anjão, rondava. Nhota, também, com luz em castiçal, corria a casa; não chamava alto, porque lá a doença não lhe dava fôlego. Turro, o boi ainda não se deitara, como eles fazem — havia de sentir falta do Guaraná, par seu de junta. Burro não deita: come sempre, ou para em pé, as horas todas. A gente podia esperar, assim como eles, ocultado num ponto do curral. Tudo era prazo.
Deitava-se no cocho? Não como o Menino, na pura nueza... O voo de serafins, a sumidez daquilo. Mas, pecador, numa solidão sem sala. E um tiquinho de claro-escuro. Teve para si que podia — não era indino — até o vir da aurora. Que o achassem sem tino perfeito, com algum desarranjo do juízo!
Tão gordo fora; e, assim, como era, tinha só de deixar de fora seus rústicos cotovelos. Agora, o comichar, uma coceira seca. Viu o boi deitar-se também — riscando primeiro com a pata uma cruz no chão, e ajoelhando-se — como eles procedem. O mundo perdeu seu tique-taque. Tombou no quiquiri de um cochilo. Relentava. Ouviu. O Anjão estava ali, no segundo curral, havia coisa de um instante.
Que se aquietasse, pelo prazo de três credos.
Manteve-se. A hora dobrou de escura. Meia-noite já bateu? Abriu olhos de caçador. Dessurdo, escutou, já atilando. Um abecê, o reportório. Essas estrelas prosseguiam o caminhar, levantadas de um peso. Fazia futuro. O contrário do aqui não é ali... — achou. O boi — testo lento, olhos redondos. O burrinho, orelhas, fofas ventas. Da noite era um brotar, de plantação, do fundo. A noite era o dia ainda não gastado. Vez de espertar-se, viver esta vida aos átimos... Soporava. Dormiu reto. Dormindo de pés postos.
Acordou, no tremeclarear. Orvalhava. A Nhota dormia também, ali, sentada no chão, sem um rezungo. O Anjão, agachado, acendera um foguinho. Conchegados, com o boi amarelão e o burro rato, permaneciam; tão tanto ouvindo-se passarinhos em incerta entonação.
A estrela-d’alva se tirou. Já mais clareava. As pretas árvores nos azulados... O Anjão se riu para o sol. Nhota entoava o Bendito, não tinha morrido. Cantando o galo, em arrebato: a última estrelinha se pingou para dentro.
Tio Bola levantou-se — o corpo todo tinha dor-de-cabeça. Deu ordens, de manhã, dia: o Anjão soltasse burro e boi aos campos, a Nhota indo coar café. Os outros vinham voltar, da vila, de Natal e missa-do-galo. Tio Bola subiu a escada, de camisolão e alpercatas, sarabambo, repetia: — “Amém, Jesus!”
Guimarães Rosa, "Tutameia"
O Natal que está dentro de nós
O saudoso Rubem Alves, que teve educação religiosa protestante, confessava que, quando menino, lá nas Minas Gerais, tinha uma única inveja dos católicos: o presépio, armado no Natal. A cabaninha coberta de sapé, Maria, José, os pastores, ovelhas, vacas, burros, misturados com reis, anjos e estrelas, numa mansa fraternidade, contemplando uma criancinha, mexiam com o pequeno Rubem. Também lhe comovia a alegria dos católicos mais humildes ao transformarem pobres salas de visitas em lugares sagrados.
Acho que todos nós, católicos ou não, sempre nos sentimos fascinados pelo presépio de Natal. Se não tanto pela cena, ao menos pela singeleza da representação. Rubem Alves dizia sentir uma tranquila beleza triste diante dela. Que fazia acordar uma ausência na alma dele, a lembrança de algo que teve e perdeu. A essa ausência, ele chamava de “saudade”. Mas, com precisão poética, fazia questão de advertir: “Eu não tenho saudade. É a saudade que me tem”. E, como Drummond, Rubem queria aconchegar a saudade nos seus braços. “Porque saudade é um estar em mim” – justificava, rogando que, assim, não o consolassem.
Ah, meu querido amigo Rubem! Quanta falta você nos faz!
Pouco importa se o presépio encerra uma verdade ou não. Se aconteceu efetivamente ou se é mero símbolo criado pela teologia católica passa a ser irrelevante. O que vale é que, com ele, as crianças do mundo todo são transportadas a um outro mundo, que não sabem bem o que é, mas que as encanta e lhes faz muito bem. Esqueçamo-nos da correria dos shopping centers e da volúpia comercial. Ainda que existentes, elas, na verdade, não fazem parte do verdadeiro Natal.
Rubem Alves lembrava um texto de Octávio Paz, que tinha como um de seus favoritos e que aconselhava ler devagar, “como quem rumina”:
“Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, onde nunca estivemos, já estava o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados… Adivinhamos que somos de um outro mundo”.
O presépio era capaz de fazer isso com Rubem Alves. E, com certeza, faz com todos nós. Mexe com a criança que habita em nós. Por isso, não tem necessidade de explicações. “Na manjedoura, dorme uma criança” – sublinhava Rubem –, “e não existe nada mais comovente do que uma criança adormecida. Quem contempla uma criança adormecida, fica manso”. Até porque – concluía –, “uma criança adormecida não pede festas; pede silêncio e tranquilidade”.
Narra a tradição que o presépio foi recriado por São Francisco de Assis, no século XIII, e desde então passou a simbolizar a união dos mundos, dos animais e dos seres humanos com o divino. Na opinião de Francisco, além de marcar o nascimento do pequeno Jesus de Nazaré, o presépio é um elogio à humildade e à simplicidade. Tão bom se assim fosse…
Acho que todos nós, católicos ou não, sempre nos sentimos fascinados pelo presépio de Natal. Se não tanto pela cena, ao menos pela singeleza da representação. Rubem Alves dizia sentir uma tranquila beleza triste diante dela. Que fazia acordar uma ausência na alma dele, a lembrança de algo que teve e perdeu. A essa ausência, ele chamava de “saudade”. Mas, com precisão poética, fazia questão de advertir: “Eu não tenho saudade. É a saudade que me tem”. E, como Drummond, Rubem queria aconchegar a saudade nos seus braços. “Porque saudade é um estar em mim” – justificava, rogando que, assim, não o consolassem.
Ah, meu querido amigo Rubem! Quanta falta você nos faz!
Pouco importa se o presépio encerra uma verdade ou não. Se aconteceu efetivamente ou se é mero símbolo criado pela teologia católica passa a ser irrelevante. O que vale é que, com ele, as crianças do mundo todo são transportadas a um outro mundo, que não sabem bem o que é, mas que as encanta e lhes faz muito bem. Esqueçamo-nos da correria dos shopping centers e da volúpia comercial. Ainda que existentes, elas, na verdade, não fazem parte do verdadeiro Natal.
Rubem Alves lembrava um texto de Octávio Paz, que tinha como um de seus favoritos e que aconselhava ler devagar, “como quem rumina”:
“Todos os dias atravessamos a mesma rua ou o mesmo jardim; todas as tardes nossos olhos batem no mesmo muro avermelhado feito de tijolos e tempo urbano. De repente, num dia qualquer, a rua dá para um outro mundo, o jardim acaba de nascer, o muro fatigado se cobre de signos. Nunca os tínhamos visto e agora ficamos espantados por eles serem assim: tanto e tão esmagadoramente reais. Não, isso que estamos vendo pela primeira vez, já havíamos visto antes. Em algum lugar, onde nunca estivemos, já estava o muro, a rua, o jardim. E à surpresa segue-se a nostalgia. Parece que recordamos e quereríamos voltar para lá, para esse lugar onde as coisas são sempre assim, banhadas por uma luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer. Nós também somos de lá. Um sopro nos golpeia a fronte. Estamos encantados… Adivinhamos que somos de um outro mundo”.
O presépio era capaz de fazer isso com Rubem Alves. E, com certeza, faz com todos nós. Mexe com a criança que habita em nós. Por isso, não tem necessidade de explicações. “Na manjedoura, dorme uma criança” – sublinhava Rubem –, “e não existe nada mais comovente do que uma criança adormecida. Quem contempla uma criança adormecida, fica manso”. Até porque – concluía –, “uma criança adormecida não pede festas; pede silêncio e tranquilidade”.
Narra a tradição que o presépio foi recriado por São Francisco de Assis, no século XIII, e desde então passou a simbolizar a união dos mundos, dos animais e dos seres humanos com o divino. Na opinião de Francisco, além de marcar o nascimento do pequeno Jesus de Nazaré, o presépio é um elogio à humildade e à simplicidade. Tão bom se assim fosse…
Célio Heitor Guimarães
sexta-feira, dezembro 23
Natal, digamos…
Que Natal é este, que sabe a morte,
a destruição, a estupro e frio?
É isto promessa, é isto sorte?
Valerá mesmo o curso deste rio?
O Natal foi então feito para isto?
Prometer, em vez dum começo, um fim?
Em vez de Jesus Cristo, um Mefisto?
E ter, no fim, um toque de clarim?
Mas que música ouvir, nesse fim?
A sinfonia selvagem do vento?
Os raios que presidem ao festim?
O horror visitado com espavento?
Um furacão, com música de Wagner,
e concebido por fino designer?
Eugénio Lisboa
a destruição, a estupro e frio?
É isto promessa, é isto sorte?
Valerá mesmo o curso deste rio?
O Natal foi então feito para isto?
Prometer, em vez dum começo, um fim?
Em vez de Jesus Cristo, um Mefisto?
E ter, no fim, um toque de clarim?
Mas que música ouvir, nesse fim?
A sinfonia selvagem do vento?
Os raios que presidem ao festim?
O horror visitado com espavento?
Um furacão, com música de Wagner,
e concebido por fino designer?
Eugénio Lisboa
Uma certa americana
Muito me inibia o cortante nome de Hélice, minha ternura do Natal de 1944 durante a guerra, na Itália.
Hélice era como ela pronunciava e queria que eu pronunciasse o seu nome de Alice. Como era enfermeira e tinha divisas de tenente eu às vezes a chamava de lieutenant, o que é muito normal na vida militar, mas impossível em momentos de maior aconchego.
Falei no Natal de 1944; foi para mim um Natal especialmente triste. É verdade que recebi notícia de que o 48th Evacuation Hospital tinha avançado para perto de nosso acantonamento. A notícia me deixou sonhador; vejam o que é um homem que ama: eu repetia com delícia: “48th Evacuation Hospital”...
Havia coisa. A coisa era um coronel-cirurgião louro e calvo que logo depois saía da barraca. Alice saiu atrás dele, e eu atrás dela. O homem estava sentado em um caixote de munição vazio, no escuro, os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos na cara. Não me viu; fiquei atrás dele enquanto Alice insistia para que ele fosse para dentro, ali estava terrivelmente frio, a neve caía em sua careca — don't be silly, darling, repetia ela docemente; ele murmurou coisas que eu não entendia, ela insistia para que ele entrasse, please...
Enfim, havia um lieutenant-colonel no Natal de minha lieutenant. A certa altura ele foi chamado a uma enfermaria, para alguma providência urgente, e eu quis raptar Alice, mas para onde, naquele descampado de neve, sem condução? Nem ela queria ir, dizia que não podia deixar a festa; tivemos um clinch amoroso (o que chamamos pega em português) atrás de uma barraca de material, mas emergiram da escuridão dois feridos de guerra com seus roupões bordeaux deixando entrever ataduras; e Alice, que estava fraquejando, repeliu-me para reconduzir os feridos a seus leitos.
O “48th Evacuation Hospital” mudou de pouso novamente e só voltei a ter notícias dela em abril do ano seguinte, no fim da guerra: Alice casara-se com o doutor tenente-coronel, por sinal um dos mais conhecidos cirurgiões de Nova York, e, através de um capitão brasileiro que me conhecia, me mandara um bilhete circunspectamente carinhoso participando suas núpcias e me desejava as felicidades que eu merecia.
Não merecia, com certeza; não as tive. Também, para dizer a verdade, não cheguei a ficar infeliz; guerra é guerra; apenas guardei uma lembrança um pouco amarga daquele Natal distante. Santo Deus, mais de 20 anos! Feliz Natal onde estiveres, Hélice ingrata!
Rubem Braga, "A traição das elegantes"
Hélice era como ela pronunciava e queria que eu pronunciasse o seu nome de Alice. Como era enfermeira e tinha divisas de tenente eu às vezes a chamava de lieutenant, o que é muito normal na vida militar, mas impossível em momentos de maior aconchego.
Falei no Natal de 1944; foi para mim um Natal especialmente triste. É verdade que recebi notícia de que o 48th Evacuation Hospital tinha avançado para perto de nosso acantonamento. A notícia me deixou sonhador; vejam o que é um homem que ama: eu repetia com delícia: “48th Evacuation Hospital”...
“Evacuation” é um nome bem pouco lírico para alguém de língua portuguesa, e nem “48th” nem “Hospital” parecem muito poéticos; mas era o hospital em que trabalhava Alice, e isso me alegrava. A alegria aumentou quando um correspondente de guerra americano, acho que o Bagley, me avisou de que haveria uma festa de Natal no 48, e eu estava convidado, Era inverno duro, a guerra estava paralisada nas trincheiras e foxholes, caía neve aos montes. Cheguei da frente, tomei banho, fiz a barba, limpei as botas, meti o capote, subi em um jipe, lá fui eu. No bolso do capote, por que não confessar, ia uma garrafinha de um horrível conhaque de contrabando que eu arranjara em Pistoia.
A festa era em uma grande barraca de lona armada um pouco distante das outras barracas que serviam de enfermarias. Naquela escuridão branca e fria da noite de neve, era um lugar quente, iluminado, com música, onde Alice me esperava...
Não, não me esperava. Teve um “oh” de surpresa quando me viu; e como abri os braços veio a mim abrindo também seus belos braços, gritando meu nome, e dizendo votos de Feliz Natal; como, porém, me demorei um pouco no abraço e lhe beijava a face e o lóbulo da orelha esquerda com certa ânsia, murmurou alguma coisa e se afastou com um ar de mistério, me chamando de darling, mas me empurrando suavemente.
Não, não me esperava. Teve um “oh” de surpresa quando me viu; e como abri os braços veio a mim abrindo também seus belos braços, gritando meu nome, e dizendo votos de Feliz Natal; como, porém, me demorei um pouco no abraço e lhe beijava a face e o lóbulo da orelha esquerda com certa ânsia, murmurou alguma coisa e se afastou com um ar de mistério, me chamando de darling, mas me empurrando suavemente.
Havia coisa. A coisa era um coronel-cirurgião louro e calvo que logo depois saía da barraca. Alice saiu atrás dele, e eu atrás dela. O homem estava sentado em um caixote de munição vazio, no escuro, os cotovelos apoiados nos joelhos e as mãos na cara. Não me viu; fiquei atrás dele enquanto Alice insistia para que ele fosse para dentro, ali estava terrivelmente frio, a neve caía em sua careca — don't be silly, darling, repetia ela docemente; ele murmurou coisas que eu não entendia, ela insistia para que ele entrasse, please...
Enfim, havia um lieutenant-colonel no Natal de minha lieutenant. A certa altura ele foi chamado a uma enfermaria, para alguma providência urgente, e eu quis raptar Alice, mas para onde, naquele descampado de neve, sem condução? Nem ela queria ir, dizia que não podia deixar a festa; tivemos um clinch amoroso (o que chamamos pega em português) atrás de uma barraca de material, mas emergiram da escuridão dois feridos de guerra com seus roupões bordeaux deixando entrever ataduras; e Alice, que estava fraquejando, repeliu-me para reconduzir os feridos a seus leitos.
O “48th Evacuation Hospital” mudou de pouso novamente e só voltei a ter notícias dela em abril do ano seguinte, no fim da guerra: Alice casara-se com o doutor tenente-coronel, por sinal um dos mais conhecidos cirurgiões de Nova York, e, através de um capitão brasileiro que me conhecia, me mandara um bilhete circunspectamente carinhoso participando suas núpcias e me desejava as felicidades que eu merecia.
Não merecia, com certeza; não as tive. Também, para dizer a verdade, não cheguei a ficar infeliz; guerra é guerra; apenas guardei uma lembrança um pouco amarga daquele Natal distante. Santo Deus, mais de 20 anos! Feliz Natal onde estiveres, Hélice ingrata!
Rubem Braga, "A traição das elegantes"
Papai Noel no trópico
Meu avô era aquilo que os vencedores na batalha pela vida costumam denominar de um perdedor. Nada do que fazia dava certo, nada. Ainda jovem havia jogado fora a pequena fortuna que recebera de herança; fizera um investimento maluco qualquer e perdera todo o dinheiro. A partir daí, tentou de tudo para sobreviver; foi comerciante, foi corretor de imóveis, foi vendedor de seguros, foi motorista ... Até a astrologia experimentou, mas teve de encerrar a carreira depois que uma cliente, indignada com suas previsões erradas, deu-lhe uns tapas em plena rua. De desastre em desastre os anos iam passando; mesmo sem dinheiro, ele casou. Com a mulher ideal, aliás: minha avó, Isabel, era de uma paciência admirável, e encarava com bom humor as extravagâncias e os insucessos do marido. Tiveram oito filhos porque meu avô, além de tudo, considerava-se um patriarca e olhava com satisfação a sua tribo crescer. A família sobrevivia, principalmente porque vovó era boa costureira e tinha numerosas clientes na alta sociedade, o que lhe dava certa renda. Quanto a vovô, continuava arranjando um bico aqui outro ali.
E se saiu muito bem. Porque era muito parecido com o Papai Noel: gordo, rechonchudo, faces rubicundas. Nem precisava usar barba postiça; a bela barba, precocemente branca, tornava desnecessário tal disfarce. Mais: seu riso era igualzinho ao Ho-ho-ho que, segundo a lenda, é característico do Papai Noel. Só lhe faltava o trenó com as renas, porque o resto todo ele tinha.
Esta semelhança logo o tornou conhecido. Shoppings passaram a contratá-lo, e clubes, e também uma emissora de tevê. Orientado por um amigo, marqueteiro esperto, cobrava bons cachês. Ao menos no fim do ano ele tinha assegurada uma fonte de renda — e um bom final de ano para a família. A ceia de Natal (sempre realizada no dia 25, porque no dia 24 ele trabalhava até tarde) era magnífica; e os caros presentes junto à árvore de Natal provocavam admiração (e inveja) nos vizinhos.
Ninguém lhe perguntava se ele gostava de bancar Papai Noel; nem vovô falava a respeito. Mas para a mulher abria seu coração: odiava aquilo. Não tanto por causa da encenação; o que lhe incomodava era a roupa. Ridícula e, pior, quente: na cidade do Nordeste em que viviam a temperatura nunca baixava de 25 graus. E vovô era particularmente calorento; quando o termômetro subia, ele sofria. Normalmente andava só em mangas de camisa, de bermuda e chinelo. Via a fantasia de Papai Noel como verdadeiro suplício. Não sei por que tenho de vestir essa coisa, reclamava. Vovó ponderava que, na lenda, Papai Noel vinha do Polo Norte; teria, portanto, de usar roupas quentes.
— Mas eu sou um Papai Noel brasileiro! — bradava vovô. — Não podia fazer esse papel só de camiseta?
Pergunta retórica. Ele sabia que uma versão tropical da roupa natalina jamais seria aceita. O Brasil, resmungava, sempre imitou a Europa e os Estados Unidos, não será agora que as coisas mudarão.
Vovó tentava consolá-lo como podia. Tratou, inclusive, de confeccionar para o marido uma fantasia de Papai Noel bem mais leve, mais arejada; mas vovô, talvez por causa da irritação, continuava suando em bicas. Este aborrecimento começou a lhe envenenar a vida. À medida que se aproximava o fim do ano, ia ficando mais irritadiço. Na semana do Natal ninguém podia chegar perto dele; explodia por qualquer coisa. Lá pelas tantas vovó começou a ficar preocupada.
Mas os temores de vovó se confirmavam. Dez dias antes do Natal vovô teve um acidente vascular cerebral. Às pressas, foi levado para o hospital. Seu estado era grave; uma pneumonia complicava o quadro. Com febre, vovô delirava, dizia coisas sem sentido. No fim daquela semana, melhorou, recuperou um pouco a lucidez. Olhou a mulher, reconheceu-a:
— Que dia é hoje? — perguntou, em voz fraca.
Era a véspera de Natal, mas vovó, inquieta, não sabia se lhe dizia isso ou não: afinal, era a primeira vez que, nessa época, ele não estava cumprindo seu papel. Por fim disse que era a noite de 24 de dezembro.
— Então o Papai Noel deve andar por aí — disse vovô. E, depois de uma pausa, continuou:
— Eu queria falar com o velhinho. Queria lhe fazer um pedido. Sem saber o que responder, e alarmada com a estranha conversa, vovó decidiu chamar o filho mais velho — meu pai. Contou o que tinha sucedido, perguntou o que deveriam fazer.
— Se o velho quer ver o Papai Noel, verá o Papai Noel. Foi para casa, trouxe a fantasia que vovô usava (acrescida de uma barba postiça, de algodão branco) e, pouco depois, entrava no quarto do hospital vestido como Papai Noel. Vovô abriu os olhos, viu aquela figura e não estranhou; pelo contrário, esboçou um débil sorriso.
— Eu sabia que você viria, meu amigo. Tenho um pedido a lhe fazer.
Meu pai limitou-se a acenar com a cabeça: tinha medo de que vovô o identificasse pela voz, se disse qualquer coisa. Mas aparentemente o ancião achava que estava falando com o Papai Noel. Soerguendo-se a custo, fez o seu pedido:
— Eu não quero ser mais o Papai Noel, amigo. Ouviu?
Não quero ser mais o Papai Noel. Não aguento aquela roupa, sabe? Não aguento. Você, que é o verdadeiro Papai Noel, ficará no meu lugar para sempre. As pessoas gostarão disso. E eu poderei morrer em paz.
Calou-se, exausto, deixou-se cair sobre os travesseiros. Vovó chorava baixinho; papai a custo continha o pranto. Mas tinha de levar a encenação até o fim, e assim fez para vovô um sinal de positivo, apertou-lhe a mão e saiu.
A melhora de vovô revelou-se enganosa. Ele voltou a piorar e uma semana depois faleceu.
A consternação foi geral. O velho era conhecido e estimado em toda a cidade e os jornais anunciaram o seu falecimento. O Natal não será mais o mesmo, dizia uma das notícias. Outra: Papai Noel nos deixou.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.
O pedido tinha fundamento. Papai era parecidíssimo com vovô, grande e gordo como ele. E tinha o mesmo vozeirão, o mesmo riso em Ho-ho-ho. Ou seja, era a figura talhada para o papel. Esse tipo de sucessão, aliás, não era excepcional. O cargo de Rei Momo do Carnaval estava há décadas com uma mesma família — uma família de gordinhos carnavalescos. E o cachê continuava polpudo. Detalhe importante: papai, como vovô, nunca tivera emprego fixo. Mamãe, que, à semelhança de vovó, era uma mulher prática (e sabia o esforço que lhe custava manter a casa com orçamento apertado), disse que ele tinha de aceitar. Papai aceitou. E foi um sucesso. A cidade toda se comoveu: as pessoas choravam ao vê-lo na mesma roupa de vovô.
Agora, já faz vinte anos que ele é Papai Noel. Eu era um menininho então, tornei-me homem (e, seguindo a tradição familiar, não tenho emprego fixo; sou músico, mas preciso lutar muito para ganhar algum dinheirinho). O tempo passou e, o tempo passando, papai foi ficando cada vez mais parecido com vovô. Ele já nem precisa usar barba postiça; a sua própria barba quebra o galho, embora não esteja ainda inteiramente branca.
Como vovô, papai foi progressivamente detestando a tarefa de bancar Papai Noel. E pela mesma razão: a roupa é quente demais. Queixa-se, mas vai em frente. A fantasia das crianças é mais importante que meu desconforto, diz. Uma frase que, de algum modo, me serve como lição de vida. Papai Noel não é aquele que dá presentes, é aquele que traz alegria e conforto. Pensarei nisto quando chegar a minha vez de vestir a velha roupa vermelha, quando chegar a minha vez de anunciar a todos o Natal. Será uma experiência estranha. Mas irei em frente. Embora já esteja até sentindo o calor.
Moacyr Scliar
Um dia recebeu uma oferta inesperada. Um de seus muitos amigos, comerciante relativamente próspero, convidou-o para trabalhar como Papai Noel: ficaria diante da loja, com o traje vermelho característico, convidando os transeuntes a entrar no estabelecimento. A princípio, vovô rejeitou a proposta, com indignação, inclusive: o que é que você pensa que sou, posso ser pobre mas tenho minha dignidade, não vou bancar Papai Noel coisa nenhuma. Mas aí o homem mencionou uma cifra, que não era pequena. Vovô engoliu em seco. Era mais do que lhe tinham pago por qualquer trabalho. Um dinheiro que lhe permitiria oferecer um Natal decente à tribo. Aceitou.
E se saiu muito bem. Porque era muito parecido com o Papai Noel: gordo, rechonchudo, faces rubicundas. Nem precisava usar barba postiça; a bela barba, precocemente branca, tornava desnecessário tal disfarce. Mais: seu riso era igualzinho ao Ho-ho-ho que, segundo a lenda, é característico do Papai Noel. Só lhe faltava o trenó com as renas, porque o resto todo ele tinha.
Esta semelhança logo o tornou conhecido. Shoppings passaram a contratá-lo, e clubes, e também uma emissora de tevê. Orientado por um amigo, marqueteiro esperto, cobrava bons cachês. Ao menos no fim do ano ele tinha assegurada uma fonte de renda — e um bom final de ano para a família. A ceia de Natal (sempre realizada no dia 25, porque no dia 24 ele trabalhava até tarde) era magnífica; e os caros presentes junto à árvore de Natal provocavam admiração (e inveja) nos vizinhos.
Ninguém lhe perguntava se ele gostava de bancar Papai Noel; nem vovô falava a respeito. Mas para a mulher abria seu coração: odiava aquilo. Não tanto por causa da encenação; o que lhe incomodava era a roupa. Ridícula e, pior, quente: na cidade do Nordeste em que viviam a temperatura nunca baixava de 25 graus. E vovô era particularmente calorento; quando o termômetro subia, ele sofria. Normalmente andava só em mangas de camisa, de bermuda e chinelo. Via a fantasia de Papai Noel como verdadeiro suplício. Não sei por que tenho de vestir essa coisa, reclamava. Vovó ponderava que, na lenda, Papai Noel vinha do Polo Norte; teria, portanto, de usar roupas quentes.
— Mas eu sou um Papai Noel brasileiro! — bradava vovô. — Não podia fazer esse papel só de camiseta?
Pergunta retórica. Ele sabia que uma versão tropical da roupa natalina jamais seria aceita. O Brasil, resmungava, sempre imitou a Europa e os Estados Unidos, não será agora que as coisas mudarão.
Vovó tentava consolá-lo como podia. Tratou, inclusive, de confeccionar para o marido uma fantasia de Papai Noel bem mais leve, mais arejada; mas vovô, talvez por causa da irritação, continuava suando em bicas. Este aborrecimento começou a lhe envenenar a vida. À medida que se aproximava o fim do ano, ia ficando mais irritadiço. Na semana do Natal ninguém podia chegar perto dele; explodia por qualquer coisa. Lá pelas tantas vovó começou a ficar preocupada.
Vovô já era um homem idoso, beirava os setenta, e a sua saúde não era das melhores; ela temia que aquilo acabasse prejudicando o homem. Chegou a sugerir que ele parasse de vez; afinal, tanta gente se aposenta, por que não podem se aposentar as pessoas que fazem o papel de Papai Noel? Uma ideia que vovô repelia, indignado. Não era homem de abandonar a luta.
Mas os temores de vovó se confirmavam. Dez dias antes do Natal vovô teve um acidente vascular cerebral. Às pressas, foi levado para o hospital. Seu estado era grave; uma pneumonia complicava o quadro. Com febre, vovô delirava, dizia coisas sem sentido. No fim daquela semana, melhorou, recuperou um pouco a lucidez. Olhou a mulher, reconheceu-a:
— Que dia é hoje? — perguntou, em voz fraca.
Era a véspera de Natal, mas vovó, inquieta, não sabia se lhe dizia isso ou não: afinal, era a primeira vez que, nessa época, ele não estava cumprindo seu papel. Por fim disse que era a noite de 24 de dezembro.
— Então o Papai Noel deve andar por aí — disse vovô. E, depois de uma pausa, continuou:
— Eu queria falar com o velhinho. Queria lhe fazer um pedido. Sem saber o que responder, e alarmada com a estranha conversa, vovó decidiu chamar o filho mais velho — meu pai. Contou o que tinha sucedido, perguntou o que deveriam fazer.
Meu pai pensou um pouco. Ele era jovem, ainda, e, como vovô, tinha um temperamento fantasioso. De modo que não hesitou:
— Se o velho quer ver o Papai Noel, verá o Papai Noel. Foi para casa, trouxe a fantasia que vovô usava (acrescida de uma barba postiça, de algodão branco) e, pouco depois, entrava no quarto do hospital vestido como Papai Noel. Vovô abriu os olhos, viu aquela figura e não estranhou; pelo contrário, esboçou um débil sorriso.
— Eu sabia que você viria, meu amigo. Tenho um pedido a lhe fazer.
Meu pai limitou-se a acenar com a cabeça: tinha medo de que vovô o identificasse pela voz, se disse qualquer coisa. Mas aparentemente o ancião achava que estava falando com o Papai Noel. Soerguendo-se a custo, fez o seu pedido:
— Eu não quero ser mais o Papai Noel, amigo. Ouviu?
Não quero ser mais o Papai Noel. Não aguento aquela roupa, sabe? Não aguento. Você, que é o verdadeiro Papai Noel, ficará no meu lugar para sempre. As pessoas gostarão disso. E eu poderei morrer em paz.
Calou-se, exausto, deixou-se cair sobre os travesseiros. Vovó chorava baixinho; papai a custo continha o pranto. Mas tinha de levar a encenação até o fim, e assim fez para vovô um sinal de positivo, apertou-lhe a mão e saiu.
A melhora de vovô revelou-se enganosa. Ele voltou a piorar e uma semana depois faleceu.
A consternação foi geral. O velho era conhecido e estimado em toda a cidade e os jornais anunciaram o seu falecimento. O Natal não será mais o mesmo, dizia uma das notícias. Outra: Papai Noel nos deixou.
Aos poucos, a vida foi voltando ao normal. Vovó passou a morar com uma filha, professora. Sentia muita falta do marido, e sempre falava nele, mas acabou se resignando. Parecia que, daí em diante, vovô seria apenas uma lembrança.
E aí, a surpresa. Em fins de novembro do ano seguinte papai foi procurado por um grupo de lojistas. Queriam que ele se tornasse Papai Noel.
O pedido tinha fundamento. Papai era parecidíssimo com vovô, grande e gordo como ele. E tinha o mesmo vozeirão, o mesmo riso em Ho-ho-ho. Ou seja, era a figura talhada para o papel. Esse tipo de sucessão, aliás, não era excepcional. O cargo de Rei Momo do Carnaval estava há décadas com uma mesma família — uma família de gordinhos carnavalescos. E o cachê continuava polpudo. Detalhe importante: papai, como vovô, nunca tivera emprego fixo. Mamãe, que, à semelhança de vovó, era uma mulher prática (e sabia o esforço que lhe custava manter a casa com orçamento apertado), disse que ele tinha de aceitar. Papai aceitou. E foi um sucesso. A cidade toda se comoveu: as pessoas choravam ao vê-lo na mesma roupa de vovô.
Agora, já faz vinte anos que ele é Papai Noel. Eu era um menininho então, tornei-me homem (e, seguindo a tradição familiar, não tenho emprego fixo; sou músico, mas preciso lutar muito para ganhar algum dinheirinho). O tempo passou e, o tempo passando, papai foi ficando cada vez mais parecido com vovô. Ele já nem precisa usar barba postiça; a sua própria barba quebra o galho, embora não esteja ainda inteiramente branca.
Como vovô, papai foi progressivamente detestando a tarefa de bancar Papai Noel. E pela mesma razão: a roupa é quente demais. Queixa-se, mas vai em frente. A fantasia das crianças é mais importante que meu desconforto, diz. Uma frase que, de algum modo, me serve como lição de vida. Papai Noel não é aquele que dá presentes, é aquele que traz alegria e conforto. Pensarei nisto quando chegar a minha vez de vestir a velha roupa vermelha, quando chegar a minha vez de anunciar a todos o Natal. Será uma experiência estranha. Mas irei em frente. Embora já esteja até sentindo o calor.
Moacyr Scliar
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