Adorava quando ela me dizia, como se conspirasse:
— Estou escrevendo algo perigoso.
E gargalhava gostosamente. Ante o mistério, ante a natureza subversiva — imprevisível — do ofício, ria como menina.
Ria como criança, a maior brasileira que conheci, compartilhando a aventura.
Sabia que eu adorava aquilo, a cumplicidade. E me enredava. Primeiro, o anúncio — grave. E então a gargalhada. Era uma espécie de senha nossa; para mim o código generoso de que não fosse apenas o editor. Sobretudo expressão de uma artista que jamais se acomodou.
Como nunca se terá dado ao relaxamento da glória a autora de um épico da altitude de “A república dos sonhos”, romance de 1984? Pensei nisso pela primeira vez quando recebi os originais de “A camisa do marido”, em 2014 — aliás, ótima introdução à literatura de Nélida Piñon. O erotismo daqueles contos me instigou — perturbou — não pela caretice de ir a escritora avançada nos 70, mas porque havia ali um exercício de experimentação cuja naturalidade só vejo no movimento de Caetano Veloso.
Nélida, há muito consagrada, era movimento. Ela própria, a perigosa. Aquela senhora formal, rigorosa, jamais hermética, tinha segredos. Desejos. Razão por que nunca parou de produzir e se puxar. A maior brasileira que conheci estando também, sem favor, entre as maiores escritoras do Brasil em todos os tempos. A maior ensaísta, sem dúvida. (Na dúvida, recomendo “Filhos da América”).
— Está perigosíssimo, Andreazza — reforçava, provocadora.
Isso sempre me fascinou. Que tomasse riscos. Que se entusiasmasse — que se desafiasse e divertisse — com o imponderável da criação. Que se relacionasse com o produto — não raro incontrolável — da escrita com atrevimento, inquietude.
Aquela declaração confidente de que se envolvia com o perigo — algo inescapável, que a tomava como fado — era um tipo de senha também porque me comunicava que o livro em que trabalhasse se tornara inevitável. A periculosidade estava associada ao desenvolvimento dos personagens; ao instante em que se passavam a destinar. Falou-me a respeito, claramente, quando se dedicava ao último romance, “Um dia chegarei a Sagres”: que a obra era incontornável porque, afinal, eles já estavam na estrada. Que eu a programasse. A chegada do perigo era também a da certeza.
A obra era incontornável e publicá-la seria gesto de enfrentamento à peste. Não se renderia ao vírus. A literatura deveria combater a pandemia, mostrar saúde — vigor — e disseminar mensagem de esperança. Ela, Nélida, estava em casa, protegendo-se. Sua obra precisava estar ao alcance dos leitores. Foi o que me disse quando lhe sugeri que esperássemos por mais segurança — até comercial — para lançar o livro. Não. Tínhamos de imprimir, distribuir e comunicar — foi o que me disse. Era 2020. Tudo, incerteza. E ela estava certa. Não tinha tempo a perder. A editora que desse um jeito. Que fizesse uma boa campanha on-line. Havia meios para avançar. Fomos.
Ela era perigosa, mas não se governava senão sob um senso muito apurado de prudência. Daí por que a melhor conselheira. Para quem os gestos de audácia não se deveriam confundir com impulsos. Era corajosa porque responsável. Estimulava a ousadia, ao mesmo tempo impiedosa com a tolice. Dava broncas. Os passos deveriam ser dados para um objetivo e sob exame das possibilidades — das consequências. Ela tinha metas e estratégias. Valente, braba mesmo, não terá chegado aonde chegou sem cálculos.
Batalhou pelo espaço internacional que conquistou. O prestígio não lhe foi presenteado. Trabalhou para que sua obra circulasse. Entendeu cedo que estava inserida numa indústria complexa. Era necessário ser agenciada por profissionais influentes. Ter trânsito. Viajar, ao sacrifício de vida pessoal.
Intelectual pública, consciente das dificuldades impostas à mulher escritora, mulher escritora em português, que teve inserção política decisiva — voz em momentos históricos — sem levantar bandeiras partidárias. Nunca faltou à cultura brasileira.
Difícil que alguém tenha representado o Brasil tão bem — por tantas décadas, com tamanha consistência — quanto a galega Nélida Piñon. Sua compreensão do papel de escritora se fundia ao compromisso de representar o país mundo afora. Foi desbravadora. Botou o pé na porta. Nunca a vi falando publicamente sem que reverenciasse Machado de Assis, que propagandeava com a consciência de que defendia a literatura brasileira, o próprio Brasil. Era paixão e missão. Compromisso de uma vida.
Na última mensagem, desde Santiago de Compostela, contou-me — voz baixinha — que cumpria “rota profissional intensa, mas sobretudo uma rota do coração”.
Um projeto perigoso: um dia chegar a Nélida.
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