De toda a memória somente vale
o dom esclarecido de evocar os sonhos
Antônio Machado
Caedmon deve sua fama, que perdurará, a razões alheias ao gozo estético. A gesta de Beowulf é anônima; Caedmon, em contrapartida, é o primeiro poeta anglo-saxão, por conseguinte inglês, cujo nome foi conservado. No Êxodo e nas Linhagens dos Apóstolos, a nomenclatura é cristã, porém o sentimento é gentio; Caedmon é o primeiro poeta saxão de espírito cristão. A estas razões, deve-se acrescentar a curiosa história de Caedmon, tal como a ela se refere Beda o Venerável no quarto livro de sua História Eclesiástica: No mosteiro desta abadia (a abadia Hilde de Streonshalh) houve um irmão honrado pela graça divina, porque costumava compor canções que levavam à piedade e à religião. Tudo o quanto aprendia de homens versando nas sagradas escrituras, vertia em linguagem poética com a maior doçura e fervor. Muitos, na Inglaterra, o imitaram na composição de cantos religiosos. O exercício do canto não lhe tinha sido ensinado pelos homens ou por meios humanos; havia recebido ajuda divina e sua faculdade de cantar derivava diretamente de Deus. Por isso não compôs canções fingidas ou ociosas. Este homem havia vivido no mundo até alcançar uma idade avançada, e não tinha sabido nada de versos Costumava participar de festas nas quais se havia decidido que, a fim de que se incentivasse alegria, todos cantariam, uns depois dos outros, acompanhando-se com harpa, e cada vez que as harpas se aproximavam dele, Caedmon se erguia envergonhado e voltava para casa. Uma vez abandonou o local da festa e foi para os estábulos, porque lhe haviam recomendado cuidar dos cavalos naquela noite.
Dormiu, e em sonho viu um homem que lhe ordenava: “Caedmon, canta-me alguma coisa”. Caedmon respondeu dizendo: “Não sei cantar e por isto deixei a festa e vim deitar-me”. O que lhe havia falado disse: “Cântaras”. Caedmon replicou então: “Que posso eu cantar?”. A resposta foi: “Canta-me a origem de todas as coisas”. E Caedmon cantou versos e palavras que não havia escutado nunca, nesta ordem: “Louvemos agora o guardião do reino celestial, o poder do Criador e o conselho de sua mente, as obras do glorioso Pai; como Ele, Deus eterno, originou cada maravilha. Fez primeiro o céu como teto para os filhos da terra; depois fez, todo-poderoso, a terra, para dar um solo aos homens”.
Ao despertar, guardava de memória tudo o que havia cantado no sonho.
A estas palavras acrescentou muitas outras, no mesmo estilo, dignas de Deus.
Beda conta que a abadia dispôs que os religiosos examinassem a nova capacidade de Caedmon, e, uma vez demonstrado que o dom poético lhe havia sido conferido por Deus, instou-o a entrar na comunidade. “Cantou a criação do mundo, a origem do homem, toda a história de Israel, o êxodo do Egito e a entrada na terra prometida, a encarnação, paixão e ressurreição de Cristo, sua ascenção ao céu, a chegada do Espírito Santo e o ensino dos apóstolos. Cantou também o terror do juízo final, os horrores do inferno e as bem-aventuranças do céu”. O historiador agrega que Caedmon, anos depois, profetizou a hora em que iria morrer, e esperou-a dormindo. Deus, ou o anjo de Deus, o havia ensinado a cantar; esperemos que tenha voltado a encontrar-se com seu anjo.
Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"
Jorge Luís Borges, "Livro de Sonhos"
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