Eu escrevia e bebia à noite. Durante o dia eu ficava na Biblioteca Pública de LA e lia todos os escritores e era uma leitura difícil, os escritores usavam parágrafos longos e páginas de descrição, construindo a trama e desenvolvendo os personagens, mas os personagens não eram nada interessantes e o que as histórias finalmente revelavam não era lá grande coisa. Pouco se dizia das vidas desperdiçadas da maioria das pessoas, da tristeza, de toda tristeza, da loucura, da risada vencedora da dor. Boa parte dos escritores escrevia sobre as experiências da vida da alta classe média. Precisava ler algo que me ajudasse a atravessar o dia, a rua, algo em que pudesse me agarrar. Precisava me embebedar de palavras, em vez disso me via obrigado a apelar à garrafa. Eu sentia, suponho, como todos os escritores fracassados sentem, que eu realmente podia escrever e que as circunstâncias e os que governam e a política estavam contra mim. Às vezes estão; outras vezes você apenas acha que pode escrever quando na verdade não pode.
Eu passava fome e escrevia. Baixei de 95 para 65 quilos. Meus dentes ficaram frouxos na boca. Podia empurrar meus incisivos com os dedos para a frente e para trás. Estavam frouxos na gengiva. Certa noite, enquanto dava uma volta, senti que algo se desprendia e logo estava com um dente na mão. Lá estava ele: virado para cima. Coloquei-o sobre a mesa e bebi em sua homenagem.
E, claro, quando se está comprando tempo com um salário de trabalhador de meio turno há outras coisas das quais você abre mão além da comida. Refiro-me a mulheres jovens e carros. Você caminha, acaba por encontrar uma puta de ocasião. Além disso, você usa os mesmos sapatos por tanto tempo que as solas se enchem de furos e você é obrigado a forrá-los com papelão; além disso, as unhas encravam de uma maneira tão feia que quase já não se pode calçar os sapatos. E também não sobrou, a essa altura, nem um traje domingueiro, nem convites para jantares gratuitos de Ação de Graças e de Natal. Escritores famintos levam uma vida pior do que a dos vagabundos da favela. E isto porque há duas coisas de que precisam: quatro paredes, e estar sozinhos.
...Mas numa tarde na Biblioteca Pública de LA alguma coisa aconteceu. Quanto a ser uma pessoa lida, eu já estava estufado, ao extremo: D. H. Lawrence, todos os russos, Huxley, Thurber, Chesterton, Dante, Shakespeare, Villon, todos os Shaws, O’Neil, Blake, Dos Passos, Hem, por que seguir? Centenas de escritores conhecidos e centenas de desconhecidos... E todos eles me feriam porque eram ótimos por um tempo, mas por breves instantes, em lampejos, para depois retornarem à sua pesada monotonia literária. Isto era mais do que desencorajador, pois significava que séculos, SÉCULOS de literatura e escritores não podiam me ajudar. No mínimo, falharam em me oferecer o que eu precisava para me virar no mundo das palavras.
Mas, como eu estava dizendo, nessa tarde eu matava o meu dia com o costumeiro baixar de livros das prateleiras, o abrir de páginas, ler uma ou duas de cada volume, devolvê-los aos seus lugares. Bem, peguei mais um Sporting Times? Yeah?, de um tal John Bante. Abri numa das páginas, esperando o de sempre, mas as palavras, sim, as palavras pularam sobre mim, assim mesmo. Saíram do papel e me perfuraram. As palavras eram simples, concisas, e falavam de alguma coisa que estava acontecendo agora! Até mesmo a fonte parecia diferente. As palavras eram legíveis. Havia alguns espaços e então mais palavras. As palavras eram quase como uma voz na sala. Peguei o livro e fui me sentar a uma mesa. Cada página era poderosa. Não podia acreditar naquilo. Era como se as páginas fossem pular do livro e começar a caminhar por ali, voar ao meu redor. Possuíam uma força notável, um realismo total. Por que esse homem nunca tinha sido mencionado antes? Eu também estava lendo crítica literária, Winters, todos aqueles vigaristas, os queridinhos da Kenyon Review e da Sewanee Review, e nunca haviam mencionado este homem. O mesmo ocorreu nos meus dois anos de coma profundo no LA City College, nem uma menção sequer. Ergui os olhos da minha mesa. Bem, não era minha, pertencia à cidade, aos contribuintes, e eu não podia me enquadrar propriamente nessa categoria. Mas eu tinha o livro de John Bante diante de mim e eu olhava para as pessoas nas outras mesas, para as pessoas que caminhavam por ali ou que estavam apenas sentadas, muitos vagabundos como eu e nenhum deles sabia sobre John Bante... ou teriam começado a brilhar, a se sentir melhor, não teriam se importado em ser o que eram ou que deveriam ser.
Eu tinha um cartão da biblioteca e tirei John Bante de lá. Levei-o comigo de volta para meu quarto e comecei a ler do início. Ele chegava a ser engraçado às vezes, mas era um tipo estranho e calmo de humor, como um homem queimado até a morte que ainda assim acena com um piscar de olhos para o primeiro homem que ateou as chamas ou Para O Homem Que Está Lá Em Cima. Bante possuía uma inclinação religiosa mesmo que fosse coroada por um estranho sorriso. Eu não tinha qualquer inclinação, mas eu gostava da dele. E ele escrevia sobre um escritor que passava fome e que circulava pela Biblioteca Pública de LA e pelo Grande Mercado Central, que era o que eu fazia. Jesus Cristo. Mas mais do que essa similaridade de vidas, o que me tocava era o modo como expressava as ocorrências mais tolas da existência. Reparei que ele vivia de laranjas. Minha dieta era outra: batatas, pepinos e tomates. Quando podia me dar a esse luxo. Batatas primeiro. Contando grama a grama, as batatas me pareciam mais baratas e mais satisfatórias. Mas Bante viera do Colorado. Sendo californiano, eu sempre olhara as laranjas quase como pulgas no pelo de um gato. Mas isso é má escrita. Bante nunca escrevia mal: cada palavra estava no seu devido lugar e cada palavra expressava o que devia com perfeição.
Ele havia sido descoberto pelo grande editor L. H. Renkin, que dirigia a revista The American Calamity. Renkin também trabalhou como editor para uma das editoras de Nova York, além de ser um escritor bem razoável. Eu acabaria por voltar à biblioteca para retirar todos os livros de John Bante. Havia mais três outros, mas Sporting Times? Yeah? continuava sendo meu favorito.
Acabei por memorizar todas as descrições da vizinhança em Sporting Times. Eu morava num barraco de tapume nos fundos de uma pensão por dois dólares a semana. A vizinhança se chamava Bunker Hill. E fui em busca do lugar onde Bante tinha morado. Segui a Angel’s Flight e descobri o local exato do hotel que ele tinha descrito e fiquei ali do lado de fora, olhando-o. Senti correr por mim uma das sensações mais poderosas de toda a minha vida. Eu estava, de fato, pasmado. Era o hotel. Aquela era a janela pela qual sua estranha namorada, Carmen, havia escalado para entrar. Estranha e trágica Carmen.
Fiquei ali parado, olhando para a janela. Era cedo da tarde e o quarto estava escuro. A persiana estava a meio palmo e uma leve brisa a balançava levemente. Ali Bante escrevera Sporting Times. Tudo havia saído daquele quarto, um quarto pelo qual eu tinha passado por meses no meu caminho até o Grande Mercado Central, até o meu bar verde preferido ou mesmo a caminho das minhas pernadas pelo centro. Fiquei ali parado, me perguntando quem ocuparia o quarto naquele momento. Talvez Bante ainda estivesse ali! Quem sabe eu não pudesse dar um pulo ali e bater à porta?
Olá, sr. Bante? Eu também escrevo. Não tão bem quanto o senhor. Só gostaria de dizer o quanto suas palavras estão vivas dentro de mim e ao meu redor e que tive muita sorte de ler o senhor. Bem, agora já estou de saída, adeus...
Mas eu sabia que jamais poderia perturbar um deus. Os deuses tinham seus afazeres. Mesmo quando estavam dormindo, dormiam de um modo diferente. Além disso, eu sabia que Bante não estava lá. No seu último livro de contos, ele mencionara em uma das histórias que vivia num quarto em Hollywood, que o aluguel era sete dólares por semana e a senhoria estava pronta para lhe dar um chute na bunda, e ele só fazia rezar para a Virgem Maria. Não era do meu perfil adorar heróis. Bante era o primeiro. Eram suas palavras, a simplicidade e a clareza delas. Faziam com que eu quisesse chorar, mas, ao mesmo tempo, me davam a impressão de ser capaz de atravessar as paredes.
Decidi que queria ver o quarto de qualquer jeito, o quarto onde o livro fora escrito. Apanhei o trem funicular até a rua de cima, dei uma soltada nas pernas e desci na calçada mais próxima ao hotel. Caminhei em frente à fachada e entrei. Ali estava o saguão, exatamente como descrito por ele. E ali estava a pequena mesa de centro, sobre a qual ele espalhara diversas cópias de The American Calamity, que trazia publicado o primeiro conto de sua autoria, O cachorrinho riu com força e de verdade. Caminhei pelo corredor, peguei a esquerda e parei junto ao quarto cuja janela dava para a Angel’s Flight.
Quarto 3. Ergui minha mão para bater, hesitei, e então bati. Três golpes curtos. Esperei. Nada. Bati outra vez, com mais força, golpes fortes, mas, ainda assim, batidas cheias de reverência. Ouvi algum som no quarto. Então a porta se abriu. Houve uma lufada de calor – era o Inferno de Dante. Era uma tarde quente de junho, mas havia uma estufa a gás acesa a todo vapor. Uma velha parou ali, enrolada num cobertor. Era muito pequena e quase careca, mas vários fios de cabelo branco continuavam crescendo, longos, descendo ao redor de seus ouvidos e queixo.
– Sim? – ela disse.
– Com licença, mas estou procurando por um amigo que costumava viver aqui, John Bante...?
– Não – disse a velha.
Tinha olhos incrivelmente lindos, como se tudo mais que fora consumido tivesse se concentrado ali, a esperar pelo fim.
– Ele era escritor...
A velha ficou apenas me olhando. Ficamos assim por um tempo.
Então ela disse:
– Vá à merda!
E bateu a porta…
Charles Bukowski, "Pedaços de um caderno manchado de vinhos"
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