terça-feira, dezembro 20

Precisamos falar de João Antônio

Agora que temos de volta o Ministério da Cultura, precisamos falar de João Antônio e comemorar em janeiro de 2023 os 60 anos de “Malagueta, Perus e Bacanaço”, o Jabuti de melhor livro de contos de 1963 e um espanto literário com sua escrita criativa e a cada ano mais esquecida. Paulista, João Antônio adorava Copacabana, onde morou por muitos anos, mas na hora de escrever sobre ela não tinha essa do colar de pérola desenhando a orla. Princesinha do mar, o cacete.

João Antônio escreveu na língua das remandiolas estrambóticas que aprendeu com os deserdados, os desocupados das periferias, os malandros em torno da mesa de sinuca. Quando foi morar em Copacabana procurou observar esses mesmos abandonados pela sorte, tudo aquilo que ficava entre o caldo verde da Lindaura, a chef que alimentava os taxistas na madrugada do Beco da Fome, e a paella sobre o qual desabou, assassinado a tiros, o jogador Almir Pernambuquinho, no salão de gastronomia gay-chique do Rio Jerez, na Galeria Alaska.


João Antônio, encontrado morto aos 59 anos no apartamento da Praça Serzedelo Correa, em 31 de outubro de 1996, dizia que Copacabana era uma muquirana caxinguenta, outrora linda: “Machuca e dói, como um senhorio calado e de pé.”

Na noite suja da praça do Lido os garotos caçavam ratos para comer e, na mesma hora, nos inferninhos dos bacanas, a vida não era diferente – imitava um paraíso até certa hora, mas depois vinha a solidão, o álcool, o grande pasto dos energúmenos, e noves fora nada, era tudo igual.

Agora que temos como ministra uma ex-pingente da cultura oficial, precisamos falar de João Antônio, um escritor que ainda não chegou à civilização muquirana das edições digitais, desprezado também pelos majorengos dos livros de papel, esses sacanocratas que evitam reimprimir “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Também está esgotada uma das minhas bíblias, “Ô Copacabana!”, o livro-reportagem que se junta aos perfis de Gay Talese sobre Nova York como um clássico do jornalismo literário.

Copacabana há muitas. Tem a do detetive Spinosa do Garcia-Roza, a das boates do Antônio Maria, a da casa demolida do Sergio Porto, a do ai-de-ti do Rubem Braga, a do quarto-e-sala do Barata Ribeiro 200 do Paulo Pontes, a das garotas com jeans MiKome do Fausto Fawcett e a perdida de amor cantada pelo Dick Farney. A Copacabana de João Antônio é a do início dos anos 1970, quando as festas do Golden Room enchiam de glamour a coluna do Zózimo Barroso do Amaral – mas o roteiro era outro. Os Guinles ficavam de fora.

Mariolando o verbo, calçando sandália de dedo nas palavras, João Antônio perambula pelos becos do bairro depois que os turistas já foram embora. Visita as marafonas do La Lycorne, o forró do Jaboatão, as meninas que dançam num aquário no Plaza, os pés de valsa da gafieira Balalaika, as lésbicas do Alfredão, os paraíbas da Serzedelo Correa, o beco das Garrafas depois de findo o charme da bossa nova, a cantora sem FGTS do Bolero na Atlântica, as brigas da turma da Paula Freitas com a da Domingos Ferreira, a sinuca da Sá Ferreira e os boêmios aposentados da uisqueria Bom Marchê.

É uma Copacabana não folclorizada, sem os filtros do Instagram, nem escrota, nem sublime, muito parecida com a que continua sendo hoje – o que só confirma a permanência do texto de João Antônio, um escritor sobre o qual precisamos falar urgentemente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário