sexta-feira, dezembro 9

A lua vista pelos mortos

Na minha janela tantas gaivotas entre esta casa e o rio, às voltas, às voltas. Gaivotas e pombos. Às vezes parece que me espiam, querem falar comigo, dizer-me qualquer coisa importante que não sei. Se calhar que vivo mal e têm razão: vivo mal. O que fiz de mim? Em que gastei a minha vida. Às vezes tenho a impressão que até os retratos me censuram com olhos que pesam, medem. Agora, de repente, pareceu-me ouvir os pinheiros da Beira Alta, distinguir a minha avó numa casa qualquer lá em baixo, acenando-me. Os seus imensos olhos azuis nunca me ralharam. Esperam apenas. O quê? Hei-de voltar, senhora, palavra de honra que hei-de voltar uma tarde em que os sinos de São Miguel chamem mais baixinho. O que é feito do Colégio Grão Vasco? O que é feito de mim? Em pequeno tive um amigo Lafaiéte, um amigo Joiés, enquanto eu um nome sem importância alguma, António. Falcões da serra, quase pregados às nuvens. Noites cheias de vozes que segredam: são os castanheiros da casa, as tábuas da varanda para os campos. António é tão pequeno, tão pouco. Lá vai o Dom João Primeiro Borges, o louco da vila, a atravessar a nossa vinha, de barba horizontal ao vento. O Dom João Primeiro Borges nunca falou comigo, nem me olhava. Trazia sempre um pau grande para se proteger dos cães. Dormia onde calhava, numa vala, num pedaço de muro. O meu pai chamava-lhe

– Coitado

e eu invejava a sua intensa liberdade. De tempos a tempos gritava

– Sou imperador de todos os reinos do mundo

sem abrandar a sua marcha a caminho de nada, mas não desaparecia nunca, a rodar, a rodar. Velhas transportando lenha à cabeça, os mil murmúrios do pinhal. E, muito ao longe, o Caramulo. A minha mãe

– Não quero que se afastem daqui

não fôssemos cair num poço igual àqueles de onde, de vez em quando, se pescava um infeliz a pingar. Lembro-me de um só com um sapato

(o outro pé descalço)

e a cara escondida no forro do casaco, com a boca aberta lá dentro, enorme, a que faltavam dentes. O Pedro

– Tenho medo

e claro que tínhamos todos medo que o afogado nos comesse, com a mulher a gritar. Na estrada para Viseu gente de bicicleta penando numa subida enquanto o mundo inteiro chiava à volta deles. Não se usavam sapatos, usavam-se botas, menos o Joiés e o Lafaiéte, sempre descalços. E o vento senhores, o vento nos pinheiros tão magros do inverno, flores mortas, quase nenhum pássaro. O meu avô na varanda, diante das trovoadas na serra, a minha avó a rezar a Santa Bárbara Virgem, cheia de medo. Levantei a cabeça da mesa onde escrevo isto e lá continuam as gaivotas e os pombos. Dizem que um falcão também mas nunca dei por ele: tem todo o direito de não gostar da minha cara. Os olhos amarelos deles, as sobrancelhas severas como as da dona Irene, uma amiga idosa da família, quando tocava harpa. O próprio nome

Irene

parecia-me um acorde. A dona Irene cerrava as pálpebras ao beliscar acordes, de mãos a vibrarem como as asas dos pardais nas macieiras. A única frase que lhe ouvi foi

– Ai sim?

de cabelo pintado de loiro cujas raízes brancas cresciam. Parece que vivia com dificuldades de dinheiro e a tinta era cara. Explicaram-me que nunca casou mas que um agrónomo já velhote também, de uma terra perto, história logo interrompida por um

– Não tens mais nada para fazer do que ouvir as pessoas crescidas?

e de facto não tinha mais nada para fazer senão ouvir as pessoas crescidas, cheias de palavras incompreensíveis. Quando as palavras incompreensíveis se tornaram claras não lhes achei graça nenhuma. Graça tinha uma menina chamada Doroteia que não me ligava nem isto. Nem sequer me respondia. O que eu mais admirava nela era a capacidade de apanhar moscas com a mão. Isto em pleno vôo, não quando estavam poisadas, eu nunca fui capaz. É um facto: não servia mesmo para o que quer que fosse. Também não sirvo agora: olho as gaivotas entre a casa e o rio e é um pau. Então torno a meter o nariz no papel e acabo esta crónica.

Nenhum comentário:

Postar um comentário