quinta-feira, junho 30

A máquina extraviada

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou — não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas — quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. É claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.

As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram a lona e foram subindo em bando pela máquina acima — até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.

Devemos reconhecer — aliás todos reconhecem — que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo — e a máquina fica faiscando como joia.

Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.

Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades. Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.

A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.

Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.

Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal — por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo? Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso — aqui para nós — eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu — e creio que também a grande maioria dos munícipes — não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando. O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
José J. Veiga

Como comportar-se no bonde

Ocorreu-me compor umas certas regras para uso dos que frequentam bondes. O desenvolvimento que tem tido entre nós esse meio de locomoção, essencialmente democrático, exige que ele não seja deixado ao puro capricho dos passageiros. Não posso dar aqui mais do que alguns extratos do meu trabalho; basta saber que tem nada menos de setenta artigos. Vão apenas dez.

Art. I – Dos encatarroados

Os encatarroados podem entrar nos bondes com a condição de não tossirem mais de três vezes dentro de uma hora, e no caso de pigarro, quatro. Quando a tosse for tão teimosa, que não permita esta limitação, os encatarroados têm dois alvitres: — ou irem a pé, que é bom exercício, ou meterem-se na cama. Também podem ir tossir para o diabo que os carregue. Os encatarroados que estiverem nas extremidades dos bancos, devem escarrar para o lado da rua, em vez de o fazerem no próprio bonde, salvo caso de aposta, preceito religioso ou maçônico, vocação, etc., etc.

Art. II – Da posição das pernas

As pernas devem trazer-se de modo que não constranjam os passageiros do mesmo banco. Não se proíbem formalmente as pernas abertas, mas com a condição de pagar os outros lugares, e fazê-los ocupar por meninas pobres ou viúvas desvalidas, mediante uma pequena gratificação.


Art. III – Da leitura dos jornais

Cada vez que um passageiro abrir a folha que estiver lendo, terá o cuidado de não roçar as ventas dos vizinhos, nem levar-lhes os chapéus. Também não é bonito encostá-los no passageiro da frente.

Art. IV – Dos quebra-queixos

É permitido o uso dos quebra-queixos em duas circunstâncias: — a primeira quando não for ninguém no bonde, e a segunda ao descer.

Art. V – Dos amoladores

Toda a pessoa que sentir necessidade de contar os seus negócios íntimos, sem interesse para ninguém, deve primeiro indagar do passageiro escolhido para uma tal confidência, se ele é assaz cristão e resignado. No caso afirmativo, perguntar-lhe-á se prefere a narração ou uma descarga de pontapés. Sendo provável que ele prefira os pontapés, a pessoa deve imediatamente pespegá-los. No caso, aliás extraordinário e quase absurdo, de que o passageiro prefira a narração, o proponente deve fazê-lo minuciosamente, carregando muito nas circunstâncias mais triviais, repetindo os ditos, pisando e repisando as coisas, de modo que o paciente jure aos seus deuses não cair em outra.

Art. VI – Dos perdigotos

Reserva-se o banco da frente para a emissão dos perdigotos, salvo nas ocasiões em que a chuva obriga a mudar a posição do banco. Também podem emitir-se na plataforma de trás, indo o passageiro ao pé do condutor, e a cara para a rua.

Art. VII – Das conversas

Quando duas pessoas, sentadas a distância, quiserem dizer alguma coisa em voz alta, terão cuidado de não gastar mais de quinze ou vinte palavras, e, em todo caso, sem alusões maliciosas, principalmente se houver senhoras.

Art. VIII – Das pessoas com morrinha

As pessoas que tiverem morrinha, podem participar dos bondes indiretamente: ficando na calçada, e vendo-os passar de um lado para outro. Será melhor que morem em rua por onde eles passem, porque então podem vê-los mesmo da janela.

Art. IX – Da passagem às senhoras

Quando alguma senhora entrar, o passageiro da ponta deve levantar-se e dar passagem, não só porque é incômodo para ele ficar sentado, apertando as pernas, como porque é uma grande má-criação.

Art. X – Do pagamento

Quando o passageiro estiver ao pé de um conhecido, e, ao vir o condutor receber as passagens, notar que o conhecido procura o dinheiro com certa vagareza ou dificuldade, deve imediatamente pagar por ele: é evidente que, se ele quisesse pagar, teria tirado o dinheiro mais depressa.
Machado de Assis, Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04/07/1883

quarta-feira, junho 29

A Nenhuma chamarás Aldebarã

Eu vinha de não sei que tristes sonhos, nefastos pesadelos. Despertei, ansiado, no meio da noite, e olhando a escura parede senti que as imagens torvas que me povoavam os olhos ainda tontos ali vagamente se moviam. Voltei-me, então, sobre o meu flanco direito; a janela estava aberta para a noite. Era uma noite sem lua, que ciciava em árvores e murmurava em águas humildes; e uma grande estrela brilhava.

Haveria outras, esparsas e pequenas, mas aquela era tão grande e cintilava com uma estranha palpitação; era tão distante, mas brilhava tão perto e tão para mim como se fosse uma lanterna que mão amiga houvesse pendurado em minha janela para me dar alento no fundo da treva. Eu vagara tanto pelo mundo que, ao despertar, não sabia em que leito, casa, país e tempo; e mesmo tinha de recompor minha idéia para lembrar se era feliz ou infeliz. Apenas senti que estava agora voltado para o norte, e do fundo de meu coração saudei a estrela com a palavra que me veio aos lábios: Aldebarã!

Lera essa palavra em velhos, cansados livros que falam de astros e mistérios do céu; mas somente agora percebia que era uma palavra mística, feita de muitas outras, querendo dizer, em antigas secretas línguas: a Nova Esperança, a Alegria Amiga, o Esquecimento das Mágoas, a Alegria da Noite.

Aldebarã, Aldebarã! – disse eu, com estranho ardor; e foi como se a sua palpitação se fizesse mais fremente e pura. Então uma voz suave me disse, e era como se a minha melancólica mãe ou, ainda mais distante, a minha irmã e madrinha me passasse a mão pelos cabelos. “Descansa, dorme em paz, Aldebarã é tua amiga; e como soubeste dizer seu nome ela é para sempre tua amiga; dorme em paz, homem da noite solitária e cruel e dos fatigados, tristes pesadelos; dorme. E se amanhã, na tua inquieta fantasia, quiseres dar esse nome a lago que ames, podes dá-lo sem remorso à égua fidalga que no galope deixa que o luar lhe beije as negras crinas, ou à mais bela flor no pélago marinho; e até podes chamar Aldebarã a uma nuvem que se doira no momento em que o céu, para o ocidente, já toma a cor da triste violeta; mas promete que nunca darás esse nome, nunca, a nenhuma filha dos homens, por mais ansioso te faça a sua beleza peregrina”.

Eu disse apenas, humilde: “Prometo”. E então pela primeira vez em muitos e muitos anos de longas noites, eu pude adormecer sorrindo, porque meu coração era puro como o de um menino.
Rubem Braga

Ilumina o caminho

 


O vitral

Desde muito, ela sabia que o aniversário, este ano, seria num domingo. Mas só quando faltavam quatro ou seis semanas, começara a ver na coincidência uma promessa de alegrias incomuns e convidara o esposo a tirarem um retrato. Acreditava que este haveria de apreender seu júbilo, do mesmo modo que o da Primeira Comunhão retivera para sempre os cânticos. — Ora... Temos tantos... — respondera o homem. Se tivéssemos filhos... Aí, bem. Mas nós dois! Para que retratos? Dois velhos! A mão esquerda, erguida, com o indicador e o médio afastados, parecia fazer da solidão uma coisa tangível — e ela se reconhecera com tristeza no dedo menor, mais fino e recurvo. Prendera grampos aos cabelos negros, lisos, partidos ao meio, e levantara-se. — Está bem. Você não quer...

(A voz nasalada, contida, era um velho sinal de desgosto.) — Suas tolices, Matilde... Quando é isso?

Como se a ideia a envergonhasse, ela inclinara a cabeça:

— Em setembro — dissera. No dia vinte e quatro. Cai num domingo e eu...

— Ah! Uma comemoração — interrompera o esposo. Vinte anos de casamento... Um retrato ameno e primaveril. Como nós.

Na véspera do aniversário, ao deitar-se, ela ainda lembrara essas palavras; mas purificara-se da ironia e as repetira em segredo, sentindo-se reconduzida ao estado de espírito que lhe advinha na infância, em noites semelhantes: um oscilar entre a espera de alegrias e o receio de não as obter. Agora, ali estava o domingo, claro e tépido, com réstias de sol no mosaico, no leito, nas paredes, mas não com as alegrias sonhadas, sem o que tudo o mais se tornava inexpressivo.

— Se você não quiser, eu não faço questão do retrato — disse ela. Foi tolice.

— O fotógrafo já deve estar esperando. Por que não muda o penteado?
Ainda há tempo.

— Não. Vou assim mesmo.

Abriu a porta, saíram. Flutuavam raras nuvens brancas; as folhas das aglaias tinham um brilho fosco. Ela deu o braço ao marido e sentiu, com espanto, uma anunciação de alegrias no ar, como se algo em seu íntimo aguardasse aquele gesto.

Seguiram. Soprou um vento brusco, uma janela se abriu, o sol flamejou nos vidros. Uma voz forte de mulher principiou a cantar, extinguiu-se, a música de um acordeão despontou indecisa, cresceu. E quando o sino da Matriz começou a vibrar, com uma paz inabalável e sóbria, ela verificou, exultante, que o retrato não ficaria vazio: a insubstancial riqueza daqueles minutos o animaria para sempre.

— Manhã linda! — murmurou. Hoje eu queria ser menina.

— Você é.

A afirmativa podia ser uma censura, mas foi como um descobrimento que Matilde a aceitou. Seu coração bateu forte, ela sentiu-se capaz de rir muito, de extensas caminhadas, e lamentou que o marido, circunspecto, mudo, estivesse alheio à sua exultação. Guardaria, assim, através dos anos, uma alegria solitária, da qual Antônio para sempre estaria ausente. Mas quem poderia assegurar, refletiu, que ele era, não um participante de seu júbilo, mas a causa mesma de tudo o que naquele instante sentia; e que, sem ele, o mundo e suas belezas não teriam sentido?

Estas perguntas tinham o peso de afirmativas e ela exclamou que se sentia feliz.
— Aproveite — aconselhou ele. Isso passa.

— Passa. Mas qualquer coisa disto ficará no retrato. Eu sei. As duas sombras, juntas, resvalavam no muro e na calçada, sobre a qual ressoavam seus passos.

— Não é possível guardar a mínima alegria — disse ele. Em coisa alguma. Nenhum vitral retém a claridade.

Cinco meninas apareceram na esquina, os vestidos de cambraia parecendo-lhes comunicar sua leveza, ruidosas, perseguindo-se, entregues à infância e ao domingo, que fluíam com força através delas. Atravessaram a rua, abriram um portão, desapareceram.

Ela apertou o braço do marido e sorriu, a sentir que um júbilo quase angustioso jorrava de seu íntimo. Compreendera que tudo aquilo era inapreensível: enganara-se ou subestimara o instante ao julgar que poderia guardá-lo. “Que este momento me possua, me ilumine e desapareça — pensava. Eu o vivi. Eu o estou vivendo.”

Sentia que a luz do sol a trespassava, como a um vitral.
Osman Lins, "Os cem melhores contos brasileiros do século"

terça-feira, junho 28

Leitura submarina

 


O ônibus

O ônibus é um automóvel que ou a gente pega ele ou ele pega a gente. Se a gente está dentro dele é muito engraçado ver como ele vai passando bem justo nos buracos que ficam entre um carro e outro, mas agora se a gente está na rua dá sempre a impressão de que ele vem em cima da gente, e, às vezes, vem mesmo. Como ônibus dá muita trombada eu acho que as fábricas já fazem eles velhos, pois eu nunca vi nenhum novo. Os carros grã-finos parecem que têm muito medo de brincar com os moleques pra não se sujar, e vão logo se afastando. Eu acho que o ônibus é o animal feroz das cidades.

Millôr Fernandes, "Compozissõis Imfãtis"

Cuco de leitor

 


O menino e o velho

Quando entrei no pequeno restaurante da praia os dois já estavam sentados, o velho e o menino. Manhã de um azul flamante. Fiquei olhando o mar que não via há algum tempo e era o mesmo mar de antes, um mar que se repetia e era irrepetível. Misterioso e sem mistério nas ondas estourando naquelas espumas flutuantes (bom-dia, Castro Alves!) tão efêmeras e eternas, nascendo e morrendo ali na areia. O garçom, um simpático alemão corado, me reconheceu logo. Franz?, eu perguntei e ele fez uma continência, baixou a bandeja e deixou na minha frente o copo de chope. Pedi um sanduíche. Pão preto?, ele lembrou e foi em seguida até a mesa do velho que pediu outra garrafa de água de Vichy.

Fixei o olhar na mesa ocupada pelos dois, agora o velho dizia alguma coisa que fez o menino rir, um avô com o neto. E não era um avô com o neto, tão nítidas as tais diferenças de classe no contraste entre o homem vestido com simplicidade mas num estilo rebuscado e o menino encardido, um moleque de alguma escola pobre, a mochila de livros toda esbagaçada no espaldar da cadeira. Deixei baixar a espuma do chope mas não olhava o copo, com o olhar suplente (sem direção e direcionado) olhava o menino que mostrava ao velho as pontas dos dedos sujas de tinta, treze, catorze anos? O velho espigado alisou a cabeleira branca em desordem (o vento) e mergulhou a ponta do guardanapo de papel no copo d’água. Passou o guardanapo para o menino que limpou impaciente as pontas dos dedos e logo desistiu da limpeza porque o suntuoso sorvete coroado de creme e pedaços de frutas cristalizadas já estava derretendo na taça. Mergulhou a colher no sorvete. A boca pequena tinha o lábio superior curto deixando aparecer os dois dentes da frente mais salientes do que os outros e com isso a expressão adquiria uma graça meio zombeteira. Os olhos oblíquos sorriam acompanhando a boca mas o anguloso rostinho guardava a palidez da fome. O velho apertava os olhos para ver melhor e seu olhar era demorado enquanto ia acendendo o cachimbo com gestos vagarosos, compondo todo um ritual de elegância. Deixou o cachimbo no canto da boca e consertou o colarinho da camisa branca que aparecia sob o decote do suéter verde-claro, devia estar sentindo calor mas não tirou o suéter, apenas desabotoou o colarinho. Na aparência, tudo normal: ainda com os resíduos da antiga beleza o avô foi buscar o neto na saída da escola e agora faziam um lanche, gazeteavam? Mas o avô não era o avô. Achei-o parecido com o artista inglês que vi num filme, um velho assim esguio e bem cuidado, fumando o seu cachimbo. Não era um filme de terror mas o cenário noturno tinha qualquer coisa de sinistro com seu castelo descabelado. A lareira acesa. As tapeçarias. E a longa escada com os retratos dos antepassados subindo (ou descendo) aqueles degraus que rangiam sob o gasto tapete vermelho.

Cortei pelo meio o sanduíche grande demais e polvilhei o pão com sal. Não estava olhando mas percebia que os dois agora conversavam em voz baixa, a taça de sorvete esvaziada, o cachimbo apagado e a voz apagada do velho no mesmo tom caviloso dos carunchos cavando (roque-roque) as suas galerias. Acabei de esvaziar o copo e chamei o Franz. Quando passei pela mesa os dois ainda conversavam em voz baixa – foi impressão minha ou o velho evitou o meu olhar? O menino do labiozinho curto (as pontas dos dedos ainda sujas de tinta) olhou-me com essa vaga curiosidade que têm as crianças diante dos adultos, esboçou um sorriso e concentrou-se de novo no velho. O garçom alemão acompanhou-me afável até a porta, o restaurante ainda estava vazio. Quase me lembrei agora, eu disse. Do nome do artista, esse senhor é muito parecido com o artista de um filme que vi na televisão. Franz sacudiu a cabeça com ar grave: Homem muito bom! Cheguei a dizer que não gostava dele ou só pensei em dizer? Atravessei a avenida e fui ao calçadão para ficar junto do mar.

Voltei ao restaurante com um amigo (duas ou três semanas depois) e na mesma mesa, o velho e o menino. Entardecia. Ao cruzar com ambos, bastou um rápido olhar para ver a transformação do menino com sua nova roupa e novo corte de cabelo. Comia com voracidade (as mãos limpas) um prato de batatas fritas. E o velho com sua cara atenta e terna, o cachimbo, a garrafa de água e um prato de massa ainda intocado. Vestia um blazer preto e malha de seda branca, gola alta.
Puxei a cadeira para assim ficar de costas para os dois, entretida com a conversa sobre cinema, o meu amigo era cineasta. Quando saímos a mesa já estava desocupada. Vi a nova mochila (lona verde-garrafa, alças de couro) dependurada na cadeira. Ele esqueceu, eu disse e apontei a mochila para o Franz que passou por mim afobado, o restaurante encheu de repente. Na porta, enquanto me despedia do meu amigo, vi o menino chegar correndo para pegar a mochila. Reconheceu-me e justificou-se (os olhos oblíquos riam mais do que a boca), Droga! Acho que não esqueço a cabeça porque está grudada.

Pressenti o velho esperando um pouco adiante no meio da calçada e tomei a direção oposta. O mar e o céu formavam agora uma única mancha azul-escura na luz turva que ia dissolvendo os contornos. Quase noite. Fui andando e pensando no filme inglês com os grandes candelabros e um certo palor vindo das telas dos retratos ao longo da escadaria. Na cabeceira da mesa, o velho de chambre de cetim escuro com o perfil esfumaçado. Nítido, o menino e sua metamorfose mas persistindo a palidez. E a graça do olhar que ria com o labiozinho curto.

No fim do ano, ao passar pelo pequeno restaurante resolvi entrar mas antes olhei através da janela, não queria encontrar o velho e o menino, não me apetecia vê-los, era isso, questão de apetite. A mesa estava com um casal de jovens. Entrei e Franz veio todo contente, estranhou a minha ausência (sempre estranhava) e indicou-me a única mesa desocupada. Hora do almoço. Colocou na minha frente um copo de chope, o cardápio aberto e de repente fechou-se sua cara num sobressalto. Inclinou-se, a voz quase sussurrante, os olhos arregalados. Ficou passando e repassando o guardanapo no mármore limpo da mesa, A senhora se lembra? Aquele senhor com o menino que ficava ali adiante, disse e indicou com a cabeça a mesa agora ocupada pelos jovens. Ich! foi uma coisa horrível! Tão horrível, aquele menininho, lembra? Pois ele enforcou o pobre do velho com uma cordinha de náilon, roubou o que pôde e deu no pé! Um homem tão bom! Foi encontrado pelo motorista na segunda-feira e o crime foi no sábado. Estava nu, o corpo todo judiado e a cordinha no pescoço, a senhora não viu no jornal?! Ele morava num apartamento aqui perto, a policia veio perguntar mas o que a gente sabe? A gente não sabe de nada! O pior é que não vão pegar o garoto, ich! Ele é igual a esses bichinhos que a gente vê na areia e que logo afundam e ninguém encontra mais. Nem com escavadeira a gente não encontra não. Já vou, já vou!, ele avisou em voz alta, acenando com o guardanapo para a mesa perto da porta e que chamava fazendo tilintar os talheres. Ninguém mais tem paciência, já vou!…
Olhei para fora. Enquadrado pela janela, o mar pesado, cor de chumbo, rugia rancoroso. Fui examinando o cardápio, não, nem peixe nem carne. Uma salada. Fiquei olhando a espuma branca do chope ir baixando no copo.

segunda-feira, junho 27

Há leitura na neve


 

Há 75 anos era publicado o diário de Anne Frank

Tudo começou de forma modesta: quando Otto Frank publicou o diário de sua filha Anne em 25 de junho de 1947, Het Achterhuis ("O quarto anexo", em holandês) inicialmente teve uma tiragem de apenas 3.036. A primeira edição em alemão surgiu em 1950, com modestos 4.600 exemplares.

Isso mudou com uma edição barata em brochura em alemão e uma peça sobre o livro estreada em 1956, seguida por um filme de Hollywood três anos depois: a circulação total disparou para 700 mil exemplares. Até hoje, O diário de Anne Frank foi vendido milhões de vezes e está disponível em 70 idiomas, o que o torna um dos livros mais traduzidos do mundo.


Em seu diário, a menina judia Anne Frank descreve o tempo em que ela e a família se escondiam dos nazistas na Amsterdã ocupada pelos alemães.

Até hoje a obra aproxima crianças e jovens de todo o mundo dos horrores do Holocausto. Veronika Nahm, diretora do Centro Anne Frank, em Berlim, disse em entrevista à DW: "Anne Frank escreve sobre coisas que são relevantes para os jovens nessa fase da vida: família, apaixonar-se, brigas com a mãe. Mas também quem determina quem eu sou, o que eu quero ser quando crescer, como será o mundo no futuro?"

O Centro Anne Frank usa o diário para dar aos jovens "uma introdução aos tópicos do Holocausto e do nazismo", segundo Nahm. A vida da família e dos amigos de Anne Frank também desempenha um papel importante: o pai, Otto Frank, por exemplo, testemunhou a queima de livros em Frankfurt, os tios de Anne foram presos durante pogroms, sua melhor amiga, Hannah Pick-Goslar, sobreviveu ao campo de concentração de Bergen-Belsen e testemunha o Holocausto até hoje.

Um estudo de 2022 confirmou que os jovens da Alemanha estão mais preocupados com a era nazista e o Holocausto do que a geração de seus pais. Nahm também observou isso: "Podemos ver que os jovens estão muito interessados ​​no Holocausto e na história do nacional-socialismo." O número de visitantes da exposição no Centro Anne Frank também atestaria isso. "Não fosse a pandemia, teríamos números crescentes a cada ano."

Mas as questões estão se tornando mais diversas no século 21: por exemplo, jovens da Turquia e da Alemanha estão atualmente trabalhando num projeto sobre judeus turcos em Berlim durante a era nacional-socialista, e os jovens também se ocupam das voluntária e voluntários do Norte da África que defenderam seus concidadãos judeus.

O ponto de partida para todos esses projetos é o diário de uma menina judia, que queria transformá-lo em romance depois da guerra. Anne Frank sonhava em se tornar escritora e jornalista. Nunca chegou a isso: em 1944, o esconderijo em Amsterdã foi denunciado à Gestapo e a família foi deportada. Anne Frank morreu no campo de concentração de Bergen-Belsen em 1945.

O morto sem méritos

Heinrich Feistel
O primeiro morto que vi de perto era um vizinho gorducho, quarentão, lento, e eu me lembro da perplexidade que senti. Não conseguia compreender, com meus dez anos, como a um personagem tão inexpressivo podia acontecer algo tão extraordinário. Era como se ele fosse um usurpador, um aproveitador de glória alheia.


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Um sonetista sempre volta ao local do crime, às vezes com intenções ainda piores.

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Nada mais líquido e certo que os perdigotos de um chato.

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Segundo aquele autor fescenino, bolinar é um dos trabalhos manuais que maior satisfação trazem aos seus praticantes.

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Na segunda edição da antologia de poemas concretistas já se notavam algumas rachaduras, provocadas pelo tempo e pelas pragas dos poetas românticos.

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Nós, que temos essa pretensão de escrever, poderíamos perdoar Shakespeare se ele não tivesse sido tão insuportavelmente brilhante.

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Se você tiver oitenta anos, não causará surpresa se disser que ainda faz poesia. Mais fácil será estranharem como você continua respirando.

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Sonha ainda com loiras longilíneas e langorosas e lança-lhes olhares plenos de deslavadas aliterações.

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Nenhum modernismo resiste à tentação de se tornar clássico.

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Sonetos qualquer um faz, mas ninguém nunca nenhum como os de Luís Vaz.

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Se a Morte for mesmo uma ruiva fatal, que venha enquanto eu tenho ainda algum impulso vital.

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Hoje que evito roçá-los com meus dedos de velho, recordo-me do tempo em que a brisa morna eriçava os pelos de minha poesia.
Raul Drewnick

domingo, junho 26

Shakespeare em Brazzaville

Não tenho nenhuma palavra preferida. Contudo, algumas me fascinam mais do que outras. Uma delas migrou do francês para a nossa língua nos finais do século XIX; porém, nunca se chegou a estabelecer e a prosperar. Refiro-me a flâneur, que poderíamos tentar traduzir, sem muito sucesso, por perambulador, passeador, vagueador ou deambulador. Há quem credite a invenção do termo a Baudelaire. Não terá sido o poeta a inventá-la, mas impôs-lhe dignidade e até uma certa aura mítica. Graças a Baudelaire, flanar deixou se ser uma desatividade própria de vadios, para se transformar num deambulamento jubiloso e filosófico. O flâneur passeia pela cidade para dela se apropriar.

Desde Baudelaire, vários autores têm se dedicado a catalogar os diversos tipos de flâneurs. Creio ter descoberto um novo gênero, particularmente singular e contemporâneo: o flâneur bantu.

Na capital de Brazzaville, na República do Congo, emergiu nas últimas duas décadas um curioso fenômeno urbano — o sapeur, acrônimo de Societé des Ambianceurs et des Personnes Élegantes (mal traduzido seria Sociedade dos Animadores e Pessoas Elegantes). O sapeur combina roupas de grife, que compra em Paris, Londres ou Tóquio, normalmente de cores muito vivas, desfilando com elas pelas estreitas e poeirentas ruas de terra batida das periferias da capital congolesa. O desfile dos sapeurs, ao cair da tarde, em Brazza, é um espetáculo extraordinário, capaz de competir em fulgor com a revoada dos guarás vermelhos, no Delta do Parnaíba, Piauí, de onde, aliás, estou escrevendo estas linhas.

Ser sapeur é ao mesmo tempo ofício e estilo de vida. O flâneur bantu pode ser considerado a rara variante erudita do sapeur. Tomemos como exemplo o escritor congolês Alain Mabanckou, que dá aulas de literatura africana na Universidade da Califórnia, nos EUA, e, nos intervalos, passeia a sua elegância, erudição e seu bom humor pelos festivais literários do mundo todo. Vale a pena ler “Black Bazar”, de Mabanckou, publicado no Brasil pela editora Malê, cujo narrador é precisamente um sapeur.

Em Brazzaville, assistindo à revoada dos sapeurs, também eu caí na tentação fácil de julgar o fenômeno como uma exibição gratuita de vaidade, tanto mais condenável por ocorrer num país particularmente desvalido. Então, conheci François Tata Kitoko, um puro flâneur bantu:

— Toda a manifestação de beleza é uma oração — disse-me François. — Embora nem sempre essa oração tenha um destinatário concreto.

Tata Kitoko deambula por Brazzaville exibindo os seus blazers de seda, calças a condizer e sapatos italianos, e armado com a fé e o esplendor de um demiurgo. O flâneur bantu cria a cidade à medida que a percorre, salvando-a da crueldade dos dias cinzentos. Onde antes eu apenas via futilidade e narcisismo, passei a enxergar futilidade e narcisismo — mas também uma pequena hipótese de redenção. Como me disse Tata Kitoko à despedida, terminando de beber a derradeira cerveja da noite:

— O sapeur não é um revolucionário. Mas também não é um conformista. Os melhores são feitos da mesma matéria que os sonhos…

Foi assim que encontrei Shakespeare em Brazzaville. 

sábado, junho 25

Eletrochoque salva-vidas

 

Rahma (Turquia)

A Casa

Passei uma última vez pela livraria José Olympio, na rua do Ouvidor, para conferir minhas recordações com os objetos que a elas estão ligados. Daqui a um mês, esses objetos quedarão guardados em nós, numa caixa invisível, que abrange prateleiras, balcão, vozes, pensamentos, pessoas. Bem sei que a vida é “duração” e mobilidade, como ensina o filósofo, e não há razão de melancolia: a loja será desmanchada para se recompor em edifício novo, nós mesmos, com o tempo, seremos recompostos sob novas espécies, e o fato de não termos consciência física da permanência na transformação não impede o seu alegre desenvolvimento. Olhei para o velho Castilho e o Altamir, procurei o rapazinho Athos, que hoje é homem-feito, perguntei pelo Daniel, que defende outro setor, por todos da velha guarda, e verifiquei de súbito que a própria saudade é dinâmica; eu estava ali há vinte anos passados, desembarcado de Minas, como o próprio José Olympio, de São Paulo. Se alguns “viciados” da casa, como Graciliano Ramos, aparentemente tinham morrido, a glória do nome provava a mentira do desaparecimento. J. O. criara uma coisa que não acaba mais.

A livraria, a princípio, não tinha aquele lugarzinho nos fundos, com o banco para os escritores se sentarem e baterem papo (uma ou duas vezes, trocaram sopapo), esse banco preto que viera da biblioteca de Alfredo Pujol e está agora recolhido à sala de trabalho do editor, como “o banco do Graciliano”. Lá era o escritório de José Olympio, que depois passou ao andar superior. Os literatos foram chegando, José Lins do Rego, Hermes Lima, Jorge Amado, Murilo Mendes, que acabara de converter-se ao catolicismo ortodoxo, Marques Rebelo, a formosura de Adalgisa Nery, o pessimismo de Graciliano, Eneida cordial e sua gargalhada, a ironia de Tarquínio, os derrames de um, as mentiras de outro, e o local foi-se convertendo no que se chama um foco. Rapazes que desembarcassem de um “ita” do Norte ou do trenzinho fumacento de Minas tinham de ir, correndo, respirar aqueles ares ilustres.


Com esse colorido de vanguarda, não havia outra casa no Rio. Mesmo tendo o hábito de percorrer livrarias, era naquela que o escritor pousava para confrontar suas ideias com as dos confrades, para se sentir, não um consumidor de livros, mas um ser caracterizado e participante, às voltas com as dúvidas e complicações inerentes à sua natureza imaginativa e hipersensível, e desejoso de apoio e comunicação.

Por outro lado, não se tratava apenas de uma loja simpática. Era também uma editora revolucionária, que lançava com ímpeto nomes conhecidos de pouca gente ou de ninguém.

Apresentava um livro diferente e elegante, formato padronizado, capa desenhada por Santa Rosa (o que nem sempre era fácil de conseguir, pois o Santa, como a felicidade, não estava onde o procurassem, ou nunca o procuravam onde poderia estar), e o aspecto gráfico e o prestígio da casa acendiam nos escritores o desejo de figurar em seu catálogo. José Olympio editou com o mesmo espírito autores da direita, do centro, da esquerda e do planeta Sírio, e se aos de determinado matiz tocou um papel mais saliente durante certo tempo, isto se deve à tendência da época, aos rumos da sensibilidade, tangida pelos acontecimentos mundiais. J. O. logo se revelou excelente praça, pois não editava apenas, ficava querendo bem aos editados, interessava-se por eles junto a quem de direito, ajudava-os em silêncio, criava em torno da materialidade das relações profissionais uma coisa abstrata mas imperante, a que ele chamou a Casa. J. O. em geral não emprega a primeira pessoa; diz: a Casa. A Casa não pode editar um livro nessas condições, a Casa ficou magoada, a Casa está feliz… O fato é que não se pode compreender a efervescência de ideias, de planos, o sentido socializante da literatura por volta de 35 a 37, sem a presença da Casa. O romance sofrido do Nordeste, situado em 30, ganhou ali direitos de cidade. O modernismo, então ainda ridicularizado por jornais e salões, começou a funcionar como produto editorial, que o público julgaria diretamente. Os “Documentos Brasileiros” se converteram num laboratório de crítica, pesquisa social e interpretação histórica do Brasil. De modo que aquilo era uma loja de livros, à primeira vista; mas tinha alma.

A Casa continua.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amondoeira"

Chile Chico

Vinha eu de Puerto Ibáñez, assombrado pelo grande lago General Carrera, assombrado por essas águas metálicas, que são um paroxismo da natureza, somente comparáveis ao mar cor de turquesa de Varadero em Cuba ou a nosso Petrohué. E logo o selvagem salto do Rio Ibáñez, indivisível em sua aterradora grandeza. Vinha também transido pela incomunicabilidade e a pobreza da gente da região: vizinhas da energia colossal porém desprovida de luz elétrica, vivendo entre as inúmeras ovelhas lanosas mas vestida com roupa pobre e rota. Até que cheguei a Chile Chico.

Ali, fechando o dia, o grande crepúsculo me esperava. O vento perpétuo cortava as nuvens de quartzo. Rios de luz azul isolavam um grande bloco que o vento mantinha suspenso entre a terra e o céu.

Terras de rebanhos e sementeiras que lutavam sob a pressão polar do vento. Ao redor a terra se elevava com as torres duras da Roca Castillo, pontas cortantes, agulhas góticas e ameias naturais de granito. As montanhas dominadoras de Aysén, redondas como bolas, elevadas e lisas como mesas, mostravam retângulos e triângulos de neve.

E o céu trabalhava seu crepúsculo com véus e metais: cintilava o amarelo nas alturas, suspenso como um pássaro imenso pelo espaço puro. Tudo mudava inesperadamente, transformando-se em boca de baleia, em leopardo incendiado, em luminárias abstratas.

Senti que a imensidade tombava sobre minha cabeça, nomeando-me testemunha do Aysén deslumbrante com seus morros, suas cascatas, seus milhões de árvores mortas e queimadas que acusam seus antigos homicidas, com o silêncio de um mundo em nascimento em que está tudo preparado: as cerimônias do céu e da terra. Porém faltam o amparo, a ordem coletiva, a edificação, o homem. Os que vivem em tão grandes solidões necessitam de uma solidariedade tão ampla quanto suas grandes extensões.

Afastei-me quando se apagava o crepúsculo e a noite caía, surpreendente e azul.
Pablo Neruda, "Confesso que vivi"

Assim começa o dia

 


A erva-mate

A lua morria de vontade de pisar a terra. Queria provar as frutas e banhar-se em algum rio.


Graças às nuvens, pôde descer. Do pôr do sol ao amanhecer, as nuvens cobriram o céu para que ninguém percebesse que faltava a lua.

Foi uma maravilha a noite na terra. A lua passeou pela selva do alto Paraná, conheceu misteriosos aromas e sabores e nadou longamente no rio. Um velho lavrador salvou-a duas vezes. Quando o jaguar ia cravar seus dentes no pescoço da lua, o velho degolou a fera com seu facão; e quando a lua teve fome, levou-a para a sua casa. “Te oferecemos nossa pobreza”, disse a mulher do lavrador, e deu-lhe umas broas de milho.

Na noite seguinte, lá do céu, a lua apareceu na casa de seus amigos. O velho lavrador tinha construído sua choça em uma clareira na selva, muito longe das aldeias. Ali vivia, como em um exílio, com sua mulher e sua filha.

A lua descobriu que naquela casa não havia nada para comer. Para ela tinham sido as últimas broas de milho. Então iluminou o lugar com a melhor de suas luzes e pediu às nuvens que deixassem cair, ao redor da choça, uma garoa muito especial.

Ao amanhecer, nessa terra tinham brotado umas árvores desconhecidas. Entre o verde-escuro das folhas, apareciam flores brancas.

Jamais morreu a filha do velho lavrador. Ela é dona da erva-mate e anda pelo mundo oferecendo-a aos demais. A erva-mate desperta os adormecidos, corrige os preguiçosos e faz irmãs as gentes que não se conhecem.
Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"

sexta-feira, junho 24

Murar o medo

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já eram para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.

Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incomodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivos se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples fato de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:
“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.
Mia Couto, Conferências do Estoril (2011)

Cadeado eletrônico

 


A quinhentos metros

A quinhentos metros, os vossos belos olhos desaparecem; e essa claridade do vosso rosto; e a fascinação da vossa palavra. É uma pena (eu também acho que é uma pena!), mas, a quinhentos metros, tudo se torna muito reduzido: sois uma pequena figura sem pormenores; vossas amáveis singularidades fundem-se numa sombra neutra e vulgar. Ao longe, caminhais como qualquer pessoa – e até como certas aves: é o que resta de vós: esse ritmo, na imensa estrada que também se vai projetando, estreita e indistinta, sobre o horizonte.

Bem sei que tendes muitas inquietações: há um mês de maio na vossa memória, e um campo em flor, e um arroio que cantava numas pedrinhas, e depois muitas, muitas cidades grandiosas e indiferentes, e teatros acesos, ramos de flores, ceias, risos, vozes, adereços de turquesa, – bem sei, bem sei. Bem sei que tudo isso ficou a mais de quinhentos metros, e ainda de longe continuais a sofrer. Mas, para quem vos olha a uma distância de quinhentos metros, essas dimensões que levais convosco deixam de existir. As canções que aprendestes e a dor que sabeis, nada se avista daqui. Sois uma sombra muito pequenina, prestes a perder mesmo o ritmo do passo, a parecer parada como o próprio chão. Podereis ir para um lado ou para o outro: daqui a pouco nem saberemos para onde fostes: e as vossas decisões estarão fora do nosso alcance, como vós estareis fora da nossa vista.

É bem triste tudo isso, porque nós vos amamos, e gostaríamos de responder, se por acaso nos chamásseis: mas, a quinhentos metros, é bem difícil ouvirmos a vossa voz. Mandamos pelo ar nossos bons pensamentos: mas, que acontece aos pensamentos, mesmo aos melhores, desde que partem, desde que se desprendem de nós? Onde vão pousar os nossos bons pensamentos? E as pessoas a quem os dirigimos serão exatamente aquelas que os encontram?

Tenho muita pena de tudo isso: mas a pena vai ficando também menor, cada vez menor, à medida que avançais para longe: o sofrimento acompanha seu dono; nós apenas o vemos, e algumas vezes o compreendemos, sem, no entanto, o podermos tomar para nós, desfazê-lo ou dar-lhe outra direção. E ele também vai ficando pequenino, diminuindo, com a distância, para nós que não o carregamos, que apenas ouvimos dizer que existe. É como, nos mapas, o desenho de um rio que jamais encontramos: é certo que passa por ali, mas não sabemos nada de suas histórias, reflexos e ecos.

A quinhentos metros, na verdade, há muita ausência, vamos acabando muito depressa. Pensai que, geralmente, neste mundo, há sempre cerca de quinhentos metros de uma pessoa para outra! Somos só desaparecimento. E apenas quando conseguimos ficar, também, a quinhentos metros de nós mesmos, encontramos algum sossego. Porque, então, é a vez dos nossos tormentos mudarem de proporções e aspecto. De serem vistos só de longe, sem pormenores, sem voz, sem ritmo: nem mês de maio, nem flores, nem arroio. Talvez a memória serenada. Talvez nem a memória…- É assim em quinhentos metros!
Cecília Meireles

quinta-feira, junho 23

Banco pra leitura

 


Terreno baldio

Ah, como é falsa a entrevista verdadeira! Não sei se me entendem. Eis o que eu queria dizer: — trabalho em jornal desde os treze anos e tenho 55 anos. Façam as contas. São 42 anos. Depois de 42 anos de redação, o sujeito acumulou uma experiência em nada inferior às obras completas de William Shakespeare. Posso ir à boca de cena, alçar a fronte e anunciar para a platéia: — “Eu vi tudo e sei tudo”. Não vejam imodéstia nas minhas palavras. Qualquer repórter de polícia, em fim de carreira, terá a mesmíssima vidência shakespeariana. O mérito não é nosso, mas estritamente profissional. E, depois de 42 anos de vida jornalística, posso repetir: — nada mais cínico, nada mais apócrifo do que a entrevista verdadeira.

Não me esquecerei nunca do meu primeiro entrevistado. Se não me engano, era o diretor da Casa da Moeda (ou seria da Imprensa Nacional?). Mas não importam os títulos do homem, nem suas funções. O entrevistado é sempre o mesmo, variando apenas de terno e de feitio de nariz. No mais, há uma semelhança espantosa. Nem importa o assunto. Seja batalha de confete, ou Hiroshima, um cano furado ou os Direitos do Homem. O que vale é o cinismo gigantesco. O sujeito não diz uma palavra do que pensa, ou sente. E o pior é o gesto, é a ênfase, é a inflexão. O diretor da Casa da Moeda, que também podia ser da Imprensa Nacional, recebeu-me no seu gabinete. Falou uma hora, ou mais. Hora e meia. Mas fosse um Bismarck e daria no mesmo. Ele se perfilava para falar, como se a sua palavra fosse o próprio Hino Nacional.

Fiz outras entrevistas, centenas, dezenas de entrevistas. E todas me deixaram a mesma sensação de cinismo. No fim de alguns anos, eis a minha certeza definitiva, inapelável: — ninguém devia ser entrevistado, nem os santos. Até que, um dia, na crônica, ocorreu-me a idéia das “entrevistas imaginárias”. Aí estava a única maneira de arrancar do entrevistado as verdades que ele não diria ao padre, ao psicanalista, nem ao médium, depois de morto. Fascinou-me a “entrevista imaginária”. Precisava, porém, arranjar-lhe uma paisagem. Não podia ser um gabinete, nem uma sala. Lembrei-me, então, do terreno baldio. Eu e o entrevistado e, no máximo, uma cabra vadia. Além do valor plástico da figura, a cabra não trai. Realmente, nunca se viu uma cabra sair por aí fazendo inconfidências. Restava o problema do horário. Podia ser meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Nada do que se diz, ou faz, à meia-noite, é intranscendente. Boa hora para matar, para morrer ou, simplesmente, para dizer as verdades atrozes.


Fiz “entrevistas imaginárias” com jogadores, dirigentes de futebol, literatos. Ainda anteontem, o Antonio Callado foi meu convidado no terreno baldio. Mas eu sentia, de maneira obscura, quase dolorosa, que faltava alguém no capinzal. “Mas quem?” — eis o que me perguntava. — “Quem?” E, súbito, um nome ilumina minhas trevas interiores: — “D. Hélder!”. De todos os vivos ou mortos do Brasil, era ele o mais urgente, o mais premente. E, de mais a mais, uma batina é sempre paisagística. Ontem, finalmente, houve, no terreno baldio, a “entrevista imaginária”. À meia-noite, em ponto, chegava d. Hélder. Lá estava também a cabra, comendo capim, ou, melhor dizendo, comendo a paisagem. À luz do archote, começamos a conversar. Primeira pergunta: — “O senhor fuma, d. Hélder?”. Resposta: — “A entrevista é imaginária?”. Acho graça: — “Ou o senhor duvida?”. E d. Hélder: — “Se é imaginária, fumo. Qual é o teu?”. Digo: — “Caporal Amarelinho”. Cuspiu por cima do ombro: — “Deus me livre! Mata-rato!”. Faço a pergunta: — “Que notícias o senhor me dá da vida eterna?”. Riu: — “Rapaz! Não sou leitor do Tico-Tico nem do Gibi. Está-me achando com cara de vida eterna?”. No meu espanto, indago: — “E o senhor acredita em Deus? Pelo menos em Deus?”. O arcebispo abre os braços, num escândalo profundo: — “Nem o Alceu acredita em Deus. Traz o Alceu para o terreno baldio e pergunta”. Ele continuava: — “O Alceu acha graça na vida eterna. A vida eterna nunca encheu a barriga de ninguém”.

D. Hélder falava e eu ia taquigrafando tudo. Aquele que estava diante de mim nada tinha a ver com o suave, o melífluo, o pastoral d. Hélder da vida real. E disse mais: — “Vocês falam de santos, de anjos, de profetas, e outros bichos. Mas vem cá. E a fome do Nordeste? Vamos ao concreto. E a fome do Nordeste?”. Não me ocorreu nenhum outro comentário senão este: — “A fome do Nordeste é a fome do Nordeste”. D. Hélder estende a mão: — “Dá um dos teus mata-ratos”. Acendi-lhe o cigarro. D. Hélder não pára mais: — “Diz cá uma coisa, meu bom Nelson. Você já viu um santo, uma santa? Por exemplo: — Joana D’Arc. Já viu a nossa querida Joana D’Arc baixar no Nordeste e dar uma bolacha a uma criança? As crianças lá morrem como ratas. E o que é que esse tal de São Francisco de Assis fez pelo Nordeste? Conversa, conversa!”.

Lanço outra isca: — “É verdade que o senhor vai para o Amazonas?”. Riu: — “Onde fica esse troço? Ó rapaz! Ainda nunca desconfiaste que a fome do Nordeste é o meu ganha-pão? E o Amazonas é terra de jacaré. Tenho cara de jacaré?”. Concordo em que ele não tem nenhuma semelhança física com um jacaré. Indago: — “E o comunismo?”. D. Hélder conta: — “Quando estive nos Estados Unidos, bolei um cartaz assim: O arcebispo vermelho! Era eu o arcebispo vermelho, eu!”. Insinuei a dúvida: — “Mas esse negócio de comunismo é meio perigoso”. Nova risada: — “Perigosa é a direita. A direita é que não dá mais nada. O arcebispo vermelho fez um sucesso tremendo nos Estados Unidos”.

Pede outro cigarro. Fez novas confidências: — “Sou homem da minha época. Na Idade Média, eu era da vida eterna, do Sobrenatural. Fui um santo. É o que lhe digo: — cada época tem seus padrões. Benjamim Costallat, no seu tempo, era o Proust. O Charleston já foi a grande moda. Pelo amor de Deus, não me falem da vida eterna, que é mais antiga, mais obsoleta do que o primeiro espartilho de Sarah Bernhardt. Hoje, a moda não é mais Benjamim Costallat, nem o Charleston. Entende? É Guevara. O santo é Guevara. E acompanho a moda”. Desfechei-lhe a pergunta final: — “E a Presidência da República?”. D. Hélder respira fundo: — “Depende. A fome do Nordeste é o barril de pólvora balcânico. Fome, mortalidade infantil, muita miséria e cada vez maior. Chegarei lá”. Era o fim da “entrevista imaginária”. Despedi-me assim: — “Até logo, presidente”. Respondeu: — “Obrigado, irmão”. E antes de partir fez a última declaração: — “Olha, as donas de casa têm uma simpatia para curar dor de barriguinha em criança. Acredito mais na simpatia do que na ressurreição de Lázaro”. Disse isso e sumiu na treva.
Nelson Rodrigues

Salva-vidas

 


O homem do boné cinzento

O culpado foi o homem do boné cinzento.

Antes da sua vinda, a nossa rua era o trecho mais sossegado da cidade. Tinha um largo passeio, onde brincavam crianças. Travessas crianças. Enchiam de doce alarido as enevoadas noites de inverno, cantando de mãos dadas ou correndo de uma árvore a outra.

A nossa intranquilidade começou na madrugada em que fomos despertados por desusado movimento de caminhões, a despejarem pesados caixotes no prédio do antigo hotel. Disseram-nos, posteriormente, tratar-se da mobília de um rico celibatário, que passaria a residir a li. Achei leviana a informação. Além de ser demasiado grande para uma só pessoa, a casa estava caindo aos pedaços. A quantidade de volumes, empilhados na espaçosa varanda do edifício, permitia suposições menos inverossímeis. Possivelmente a casa havia sido alugada para depósito de algum estabelecimento comercial.

Meu irmão Artur, sempre ao sabor de exagerada sensibilidade, contestava enérgico as minhas conclusões. Nervoso, afirmava que as casas começavam a tremer e apontava-me o céu, onde se revezavam o branco e o cinzento. (Pontos brancos, pontos cinzentos, quadradinhos perfeitos das duas cores, a substituírem-se rápidos, lépidos, saltitantes.)

Daquela vez, a mania de contradição me arrastara a um erro grosseiro, pois antes de decorrida uma semana chegava o novo vizinho. Cobria-lhe a cabeça um boné xadrez (cinzento e branco) e entre os dentes escuros trazia um cachimbo curvo. Os olhos fundos, a roupa sobrando no corpo esquelético e pequeno, puxava pela mão um ridículo cão perdigueiro. Ao invés da atitude zombeteira que assumi ante aquela figura grotesca, Artur ficou completamente transtornado:

— Esse homem trouxe os quadradinhos, mas não tardará a desaparecer.

Não foram poucos os que se impressionaram com o procedimento do solteirão. Os seus hábitos estranhos deixavam perplexos os moradores da rua. Nunca era visto saindo de casa e, diariamente, às cinco horas da tarde, com absoluta pontualidade, aparecia no alpendre, acompanhado pelo cachorro. Sem se separar do boné que, possivelmente, escondia uma calvície adiantada, tirava baforadas do cachimbo e se recolhia novamente. O tempo restante conservava-se invisível.

Artur passava o dia espreitando-o, animado por uma tola esperança de vê-lo surgir antes da hora predeterminada. Não esmorecia, vendo burlados os seus propósitos. A sua excitação crescia à medida que se aproximava o momento de defrontar-se com o solitário inquilino do prédio vizinho. Quando os seus olhos o divisavam, abandonava-se a uma alegria despropositada:

— Olha, Roderico, ele está mais magro do que ontem!

Eu me agastava e lhe dizia que não me aborrecesse, nem se ocupasse tanto com a vida dos outros.

Fazia-se de desentendido e, no dia seguinte, encontrava-o novamente no seu posto, a repetir-me que o homenzinho continuava definhando.

— Impossível — eu retrucava —, o diabo do magrela não tem mais como emagrecer!

— Pois está emagrecendo.

Ainda encontrava-me na cama, quando Artur entrou no meu quarto sacudindo os braços, gritando:

— Chama-se Anatólio!

Respondi irritado, refreando a custo um palavrão: chamasse Nabucodonosor!

Repentinamente emudeceu. Da janela, surpreso e quieto, fez um gesto para que eu me aproximasse. Em frente ao antigo hotel acabara de parar um automóvel e dele desceu uma bonita moça. Ela mesma retirou a bagagem do carro. Com uma chave, que trazia na bolsa, abriu a porta da casa, sem que ninguém aparecesse para recebê-la.

Impelido pela curiosidade, meu irmão não me dava folga:

— Por que ela não apareceu antes? Ele não é solteiro?

— Ora, que importância tem uma jovem residir com um celibatário?

Por mais que me desdobrasse, procurando afastá-lo da obsessão, Artur arranjava outros motivos para inquietar-se. Agora era a moça que se ocultava, não dava sinal da sua permanência na casa. Ele, porém, se recusava a aceitar a hipótese de que ela tivesse ido embora e se negava a discutir o problema comigo:

— Curioso, o homem se definha e é a mulher que desaparece!

Três meses mais tarde, de novo abriu-se a porta do casarão para dar passagem à moça. Sozinha, como viera, carregou as malas consigo.

— Por que segue a pé? Será que o miserável lhe negou dinheiro para o táxi?

Com a partida da jovem, Artur retornou ao primitivo interesse pelo magro Anatólio. E, rangendo os dentes, repetia:

— Continua emagrecendo.

Por outro lado, a confiança que antes eu depositava nos meus nervos decrescia, cedendo lugar a uma permanente ansiedade. Não tanto pelo magricela, que pouco me importava, mas por causa do mano, cujas preocupações cavavam-lhe a face, afundavam-lhe os olhos. Para lhe provar que nada havia de anormal no solteirão, passei a vigiar o nosso enigmático vizinho.

Surgia à hora marcada. O olhar vago, o boné enterrado na cabeça, às vezes mostrava um sorriso escarninho.

* * *

Eu não tirava os olhos do homem. Sua magreza me fascinava. Contudo, foi Artur que me chamou a atenção para um detalhe:

— Ele está ficando transparente.

Assustei-me. Através do corpo do homenzinho viam-se objetos que estavam no interior da casa: jarras de flores, livros, misturados com intestinos e rins. O coração parecia estar dependurado na maçaneta da porta, cerrada somente de um dos lados.

Também Artur emagrecia e nem por isso fiquei apreensivo. Anatólio tornara-se a minha única preocupação. As suas carnes se desfaziam rapidamente, enquanto meu irmão bufava, pleno de gozo:

— Olha! De tão magro, só tem perfil. Amanhã desaparecerá.

Às cinco horas da tarde do dia seguinte, o solteirão apareceu na varanda, arrastando-se com dificuldade. Nada mais tendo para emagrecer, seu crânio havia diminuído e o boné, folgado na cabeça, escorregara até os olhos. O vento fazia com que o corpo dobrasse sobre si mesmo. Teve um espasmo e lançou um jato de fogo, que varreu a rua. Artur, excitado, não perdia o lance, enquanto eu recuava atemorizado.

Por instantes, Anatólio se encolheu para, depois, tornar a vomitar. Menos que da primeira vez. Em seguida, cuspiu. No fim, já ansiado, deixou escorrer uma baba incandescente pelo tórax abaixo e incendiou-se. Restou a cabeça, coberta pelo boné. O cachimbo se apagava no chão.

— Não falei! — gritava Artur, exultante.

A sua voz foi ficando fina, longínqua. Olhando para o lugar onde ele se encontrava, vi que seu corpo diminuíra espantosamente. Ficara reduzido a alguns centímetros e, numa vozinha quase imperceptível, murmurava:

— Não falei, não falei.

Peguei-o com as pontas dos dedos antes que desaparecesse completamente. Retive-o por instantes. Logo se transformou numa bolinha negra, a rolar na minha mão.
Murilo Rubião

quarta-feira, junho 22

Leitura silenciosa

Até boa parte da Idade Média, os escritores supunham que seus leitores iriam escutar, em vez de simplesmente ver o texto, tal como eles pronunciavam em voz alta as palavras à medida que as compunham. Uma vez que, em termos comparativos, poucas pessoas sabiam ler, as leituras públicas eram comuns e os textos medievais repetidamente apelavam à audiência para que “prestasse ouvidos” à história. Talvez um eco ancestral dessas práticas de leitura persista em algumas de nossas expressões idiomáticas, como quando dizemos I've heard from So-and so [Ouvi por aí] (significando “recebi uma carta”), ou “fulano disse” (significando “fulano escreveu”), ou “este texto não soa bem” (significando “não está bem escrito”).

Se os livros eram principalmente lidos em voz alta, as letras que os compunham não precisavam ser separadas em unidades fonéticas; bastava amarrá-las juntas em frases contínuas. A direção em que os olhos deveriam seguir esses carretéis de letras variava de lugar para lugar e de época para época; o modo como atualmente lemos um texto no mundo ocidental – da esquerda para a direita e de cima para baixo – não é de forma alguma universal. Alguns escritos eram lidos da direita para a esquerda (hebreu e árabe), outros em colunas, de cima para baixo) (chinês e japonês); uns poucos eram lidos em pares de colunas verticais (maia); alguns tinham linhas alternadas lidas em direções opostas, de um lado para o outro – método chamado boustrophedon, como “um boi dá voltas para arar”, na Grécia antiga. Outros ainda serpenteavam pela página, como um jogo de trilha, sendo a direção indicada por linhas ou pontos (asteca).

A antiga escrita em rolos – que não separava palavras, não distinguia maiúsculas e minúsculas nem usava pontuação – servia aos objetivos de alguém acostumado a ler em voz alta, alguém que permitiria ao ouvido desembaralhar o que ao olho parecia uma linha contínua de signos. Tão importante era essa continuidade que atenienses supostamente ergueram uma estátua em homenagem a um certo Filácio, que inventara uma cola para unir folhas de pergaminho ou papiro. Contudo, até mesmo o rolo contínuo, embora tornasse mais fácil a tarefa do leitor, não ajudava muito na separação dos agrupamentos de sentido. A pontuação, tradicionalmente atribuída a Aristófanes de Bizâncio (cerca de 200 a.C.) e desenvolvida por outros eruditos da biblioteca de Alexandria, era, na melhor das hipóteses, errática. Agostinho, tal como Cícero antes dele, com certeza tinham de ensaiar um texto antes de lê-lo em voz alta, uma vez que a leitura à primeira vista era uma habilidade incomum naquela época e levava amiúde a erros de interpretação. Sérvio, o gramático do século IV, criticou seu colega Donato por ler, na Eneida de Virgílio, as palavras col ectam ex Ilio pubem (“um povo reunido de Tróia”), em vez de col ectam exilio pubem (“um povo reunido para o exílio”). Erros como esse eram comuns na leitura de um texto contínuo.

As Epístolas de Paulo, quando lidas por Agostinho, não eram um rolo, mas um códice, um papiro encadernado e manuscrito em escrita contínua, na nova letra uncial ou semi-uncial que aparecera nos documentos romanos nos últimos anos do século III. O códice foi uma invenção pagã. Segundo Suetônio, Júlio César foi o primeiro a dobrar um rolo em páginas, para despachos a suas tropas. Os cristãos primitivos adotaram o códice porque descobriram que era muito prático para carregar escondidos em suas vestes, textos que estavam proibidos pelas autoridades romanas. As páginas podiam ser numeradas, permitindo ao leitor acesso fácil às seções, e textos separados, como as Epístolas, podiam ser facilmente encadernados em um pacote conveniente.

A separação das letras em palavras e frases desenvolveu-se muito gradualmente. Para a maioria das primeiras escritas – hieróglifos egípcios, caracteres cuneiformes sumérios, sânscrito – essas divisões não tinham utilidade. Os escribas antigos estavam tão familiarizados com as convenções de sua arte que aparentemente precisavam muito pouco de auxílios visuais, e os primeiros monges cristãos amiúde sabiam de cor os textos que transcreviam. A fim de ajudar os que tinham pouca habilidade para ler os monges do scriptorium dos conventos usavam um método de escrita conhecido como per cola et commata, no qual o texto era dividido em linhas de significado – uma forma primitiva de pontuação que ajudava o leitor inseguro a baixar ou elevar a voz no final de um bloco de pensamento. (Esse formato ajudava também os estudiosos a encontrar mais facilmente algum trecho que estivessem buscando). Foi são Jerônimo que, no final do século IV, tendo descoberto esse método em cópias de Demóstenes e Cícero, descreveu-o pela primeira vez no prólogo a sua tradução do Livro de Ezequiel, explicando que “o que está escrito per cola et commata transmite um significado mais óbvio aos leitores”.

A pontuação continuava precária, mas esses dispositivos primitivos ajudaram indiscutivelmente no progresso da leitura silenciosa. No final do século VI, santo Isaac da Síria pôde descrever os benefícios do método: “Eu exercito o silêncio, que os versos de minhas leituras e orações encham-me de deleite. E quando o prazer de compreendê-los Silencia minha língua, então, como num sonho, entro num estado em que meus sentidos e pensamentos ficam concentrados. Quando então, com o prolongamento desse silêncio, o tumulto das lembranças acalma-se em meu coração, ondas incessantes de satisfação são-me enviadas por pensamentos interiores, superando expectativas, elevando-se subitamente, para deleitar meu coração”. E na metade do século VII, o teólogo Isidoro de Sevilha estava familiarizado com a leitura silenciosa a ponto de poder elogiá-la como um método para “ler sem esforço, refletindo sobre o que foi lido, tornando sua fuga da memória mais difícil”. Tal como Agostinho, Isidoro acreditava que a leitura possibilitava uma conversação que atravessava o tempo e o espaço, mas com uma distinção importante: “As letras têm o poder de nos transmitir silenciosamente os ditos daqueles que estão ausentes”, escreveu ele e suas Etimologias. As letras de Isidoro não precisavam de sons.

Os avatares da pontuação continuaram. Depois do século VII, uma combinação de pontos e traços indicava uma parada plena, um ponto elevado ou alto equivalia a nossa vírgula, e o ponto-e-vírgula era usado como o utilizamos atualmente. No século IX, é provável que a leitura silenciosa fosse suficientemente comum no scriptorium para que os escribas começassem a separar cada palavra de suas vizinhas com vistas a simplificar a leitura de um texto – mas talvez também por motivos estéticos. Mais ou menos na mesma época, os escribas irlandeses, famosos em todo o mundo cristão por sua habilidade, começaram a isolar não somente partes do discurso, mas também os constituintes gramaticais dentro de uma frase, e introduziram muitos dos sinais de pontuação que usamos hoje? No século X, para facilitar ainda mais a tarefa do leitor silencioso, as primeiras linhas das seções principais de um texto (os livros da Bíblia, por exemplo) eram comumente escritas com tinta vermelha, assim como as rubricas (“vermelho”, em latim), explicações independentes do texto propriamente dito. A prática antiga de começar um novo parágrafo com um traço divisório (paragraphos, em grego) ou cunha (diple) continuou; mais tarde, a primeira letra do novo parágrafo passou a ser escrita um pouco maior ou em maiúscula.

Os primeiros regulamentos exigindo que os escribas ficassem em silêncio nos scriptoriums dos conventos datam do século IX. Até então, haviam trabalhado com ditados ou lendo para si mesmos, em voz alta, o texto que estavam copiando. Às vezes o próprio autor ou um “editor” ditava o livro. Um escriba anônimo, concluindo uma cópia no século VIII, escreveu: “Ninguém pode saber que esforços são exigidos. Três dedos escrevem, dois olhos veem. Uma língua fala, o corpo inteiro labuta”. Uma língua fala enquanto o copista trabalha, enunciando as palavras que está transcrevendo.

Depois que a leitura silenciosa tornou-se norma no scriptorium, a comunicação entre os escribas passou a ser feita por sinais: se queria um novo livro para copiar, o escriba virava páginas imaginárias; se precisava especificamente de um Livro dos Salmos, colocava as mãos sobre a cabeça, em forma de coroa (referência ao rei Davi); um lecionário era indicado enxugando-se a cera imaginária de velas; um missal, pelo sinal-da-cruz; uma obra pagã, pelo gesto de coçar-se como um cachorro.

A leitura em voz alta com outra pessoa na sala implicava compartilhar a Leitura, deliberadamente ou não. A leitura de Ambrósio havia sido um ato solitário. “Talvez ele tivesse medo de que, se lesse em voz alta, algum trecho difícil do autor que estivesse Lendo poderia suscitar uma indagação na mente de um ouvinte atento, e ele teria então de explicar o significado da passagem ou mesmo discutir sobre alguns dos pontos mais abstrusos”, especulou Agostinho. Mas, com a leitura silenciosa, o leitor podia ao menos estabelecer uma relação sem restrições com o livro e as palavras. As palavras não precisavam mais ocupar o tempo exigido para pronunciá-las. Podiam existir em um espaço interior, passando rapidamente ou apenas se insinuando plenamente decifradas ou ditas pela metade, enquanto os pensamentos do leitor as inspecionavam à vontade, retirando novas noções delas, permitindo comparações de memória com outros livros deixados abertos para consulta simultânea. O leitor tinha tempo para considerar e reconsiderar as preciosas palavras cujos sons – ele sabia agora – podiam ecoar tanto dentro como fora. E o próprio texto, protegido de estranhos por suas capas, tornava-se posse do Leitor, conhecimento íntimo do leitor, fosse na azáfama do scriptorium, no mercado ou em casa.

Alguns dogmatistas ficaram desconfiados da nova moda; em suas mentes, a leitura silenciosa abria espaço para sonhar acordado, para o perigo da preguiça – o pecado da ociosidade, “a epidemia que grassa ao meio-dia”. Mas a leitura em silêncio trouxe com ela outro perigo que os padres cristãos não tinham previsto.

Um livro que pode ser lido em particular e sobre o qual se pode refletir enquanto os olhos revelam o sentido das palavras não está mais sujeito às orientações ou esclarecimentos, à censura ou condenação imediatas de um ouvinte. A leitura silenciosa permite a comunicação sem testemunhas entre o livro e o Leitor e o singular “refrescamento da mente”, na feliz expressão de Agostinho.

Até o momento em que a leitura em silêncio tornou-se a norma no mundo cristão, as heresias tinham se restringido a indivíduos ou pequenos números de congregações dissidentes. Os cristãos primitivos preocupavam-se tanto em condenar os incréus (pagãos, judeus, maniqueus e, após o século VII, muçulmanos) quanto em estabelecer um dogma comum. Os argumentos dissidentes da crença ortodoxa eram veementemente rejeitados ou cautelosamente incorporados pelas autoridades da Igreja, mas porque não tinham muitos adeptos, essas heresias eram tratadas com leniência. O catálogo dessas vozes heréticas inclui várias fantasias notáveis: no século II, os montanistas reivindicavam (já então) que estavam voltando às práticas e crenças da Igreja primitiva e que tinham testemunhado a segunda vinda de Cristo na forma de uma mulher; na segunda metade daquele século, os monarquianistas concluíram, a partir da definição da Trindade, que fora Deus Pai quem sofrera na cruz; os pelagianos, contemporâneos de Agostinho e Ambrósio, rejeitavam a noção de pecado original; os apolinaristas declararam, nos últimos anos do século IV, que o Verbo, e não uma alma humana, estava unido à carne de Cristo na Encarnação; no século IV, os arianos fizeram objeção ao uso da palavra homoousios (da mesma substância) para descrever de que era feito o Filho e (para citar um jogo de palavras da época) “convulsionaram a igreja com um ditongo”; no século v, os nestorianos opuseram-se aos antigos apolinarístas e insistiram que Cristo era dois seres, um deus e também um homem; os eutiquianistas, contemporâneos dos nestorianos, negavam que Cristo tivesse sofrido como todos os homens sofrem.

Embora a igreja tivesse instituído a pena de morte para heresia já em 382, o primeiro caso de condenação de um herege à fogueira só ocorreu em 1022, em Orléans. Naquela ocasião, a Igreja condenou um grupo de cônegos e nobres laicos que, acreditando que uma instrução verdadeira só poderia vir diretamente da luz do Espírito Santo, rejeitavam as Escrituras como fabricações que os homens escreveram em peles de animais. Leitores independentes como esses eram obviamente perigosos. A interpretação da heresia como ofensa civil passível de ser punida com a morte só ganhou base legal em 1231, quando o imperador Frederico II assim decretou nas Constituições de Melfi, mas, no século XII, a Igreja já estava condenando entusiasticamente grandes e agressivos movimentos heréticos que defendiam não uma retirada ascética do mundo (como dissidentes anteriores haviam proposto), mas a contestação da autoridade corrupta e do clero abusivo, bem como o acerto de contas individual com a Divindade. Os movimentos espalharam-se por trilhas tortuosas e cristalizaram-se no século XVI.

Em 31 de outubro de 1517, um monge que, por meio do estudo individual das Escrituras, chegara à crença de que a graça divina de Deus suplantava os méritos da fé adquirida, pregou na porta da igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, 95 teses contra a prática das indulgências – a venda da remissão das punições temporais por pecados condenados – e outros abusos eclesiásticos. Com esse ato, Martinho Lutero tornou-se um fora-da-lei aos olhos do império e um apóstata aos do papa. Em 1529, o sacro imperador romano Carlos V rescindiu os direitos concedidos aos seguidores de Lutero, e catorze cidades livres da Alemanha, junto com seis príncipes luteranos, redigiram um protesto para ser lido contra a decisão imperial. “Em questões que concernem à honra de Deus, à salvação e à vida eterna de nossas almas, cada um deve se apresentar e prestar contas diante de Deus por si mesmo”, afirmavam os protestadores ou, como ficaram conhecidos mais tarde, os protestantes. Dez anos antes, o teólogo romano Silvester Prierias afirmara que o livro sobre o qual estava fundada a Igreja precisava permanecer um mistério, interpretado apenas pela autoridade e poder do papa. Os heréticos, por outro lado, sustentaram que as pessoas tinham o direito de ler a palavra de Deus por si mesmas, sem testemunha ou intermediário.

Séculos depois, do outro lado de um oceano que para Agostinho talvez fosse o limite da terra, Ralph Waldo Emerson, que devia sua fé àqueles antigos protestadores, aproveitou-se da arte que tanto surpreendera o santo. Na igreja, durante os longos e frequentemente tediosos sermões a que comparecia devido a seu senso de responsabilidade social, lia em silêncio as Pensées de Pascal. E à noite, em seu quarto frio em Concord, "com cobertores até o queixo, lia os Diálogos de Platão. (“Ele associava Platão, mesmo mais tarde, com o cheiro de lã”, observou um historiador.)

Embora achasse que havia livros demais para ler, e que os leitores deviam compartilhar suas descobertas contando uns aos outros o ponto essencial de seus estudos, Emerson acreditava que ler um livro era um assunto privado e solitário. “Todos esses livros”, escreveu ele, fazendo uma lista de textos “sagrados” que incluía os Upanixades e as Pensées, “são a expressão majestosa da consciência universal e servem mais aos nossos propósitos diários do que o almanaque do ano ou o jornal de hoje. Mas eles são para o gabinete e devem ser lidos sobre os joelhos dobrados. Suas comunicações não devem ser dadas ou tomadas com os lábios e a ponta da língua, mas com o fulgor da face e o coração palpitante.” Em silêncio.

***

Observando a leitura de santo Ambrósio naquela tarde de 384, Agostinho dificilmente poderia saber o que estava diante dele. Pensou estar vendo um leitor tentando evitar visitantes intrusos, economizando a voz para o ensino. Na verdade, ele estava vendo uma multidão de leitores silenciosos que ao longo dos séculos seguintes iria incluir Lutero, Calvino, Emerson e nós, que o lemos hoje.
Alberto Manguel, "Historia da leitura"