quarta-feira, junho 8

'O conto da aia' à prova de fogo contra a censura

Empunhando um lança-chamas, Margaret Atwood mira um livro, de sua própria autoria. A chama jorra do cano, o volume permanece intato. Com esse vídeo, a editora Random House faz publicidade para a edição limitada, à prova de fogo, de uma de suas publicações mais famosas.

O conto da aia (título original: A handmaid's tale) é uma distopia na tradição do Admirável mundo novo, de Aldous Huxley. Ao lançá-la em 1985, a escritora canadense criou um mundo em que fanáticos religiosos assumem o controle dos Estados Unidos através de um golpe, fundando um Estado crente, Gilead, em que o sexo feminino não tem mais qualquer direito.

Uma catástrofe ambiental impede a maior parte das mulheres de ter filhos. As poucas que ainda são férteis são capturadas, perdem seus nomes, são escravizadas e mantidas como criadas nas casas ricas. Lá, os patrões as violentam repetidamente, até que engravidem. Quando isso ocorre, têm gestar a criança, para depois entregá-la à senhora da casa. Abortos são punidos com a morte, assim como relações amorosas secretas, mesmo as homossexuais.

Depois de ser filmada em 1990 por Volker Schlöndorff, com roteiro de Harold Pinter (no Brasil sob o título A decadência de uma espécie), em 2017 a história virou uma premiada série de TV (no Brasil: O conto da aia), tendo Elisabeth Moss no papel principal.

Com seu final aberto, o núcleo da narrativa fascinou e abalou numerosas/os leitoras/os, mesmo quem preferiria que um romance assim nunca tivesse sido escrito. Pois ele coloca os fanáticos religiosos diante do espelho, mostrando quão retrógrada, alienada e perigosa é a visão de mundo que propagam para um grande público.

Segundo a American Library Association O conto da aia é uma das publicações proibidas com mais frequência nas escolas dos EUA, sob a alegação, por exemplo, de conteúdo "vulgar" e "excessivamente sexualizado", assim como de "ofensa ao cristianismo".

A autora canadense tem rechaçado repetidamente tais acusações, especialmente esta última. Em carta aberta a uma jurisdição escolar que pretendia proibir seu livro, ela argumentou, em 2006: "Em nenhum momento o regime é identificado como cristão. Quanto à explicitude sexual, A handmaid's tale é bem menos interessada em sexo do que grande parte da Bíblia."


O banimento e destruição de livros incômodos está intimamente ligado à história humana: o que está escrito é mais duradouro do que o que se conta, assim, há séculos, há quem veja nos textos não apenas uma fonte de saber, mas também de ameaça – até hoje.

Já no século 3º o imperador romano Diocleciano ordenou que se queimassem todos os escritos dos cristãos. Mas também estes também estiveram ativos nas atividades incineradoras: no Novo Testamento, em sua viagem missionária a Éfeso o apóstolo Paulo converte os magos locais, que voluntariamente lançam seus livros à fogueira.

Para os déspotas, a queima de livros é uma forma extremamente eficaz de mostrar ao público como lidar com os dissidentes. Um dos exemplos mais dramáticos foi o procedimento dos nacional-socialistas da Alemanha após a tomada de poder por Adolf Hitler.

Em maio e junho de 1933, numa "Ação Contra o Espírito Antigermânico", iniciada pelo grêmio estudantil nazista, destruíram-se dezenas de milhares de obras, tendo como fim exterminar a vida intelectual judaico-alemã.

A prática se perpetuou para além da Segunda Guerra Mundial: nos anos 50 e 60 o alvo foram livros de bolso populares e "literatura baixo nível", indo até a revista juvenil Bravo, que proporcionava cauteloso esclarecimento sexual aos adolescentes da pudica Alemanha do pós-guerra.

Na China, após a tomada de poder pelo Partido Comunista, livros anticomunistas e críticos ao regime acabaram na pira. No Chile do ditador Augusto Pinochet, o mesmo ocorreu com as obras de Gabriel García Marquez; nos países islâmicos com os Versos satânicos de Salman Rushdie foram eliminados como "sacrilégio".

Nos EUA, em 1966, queimaram-se publicamente discos dos Beatles; e em 2000, fanáticos cristãos de diversos estados fizeram fogo com os volumes da saga Harry Potter, de J.K. Rowling, tachando-os de "bruxaria, obra satânica e instruções para magia". Agora mesmo, no contexto da guerra na Ucrânia, livros são queimados pela Rússia, como parte de uma campanha de aniquilação da identidade ucraniana.

Desde seu lançamento, em 1985, o romance já foi vendido milhões de vezes, e a série televisiva multiplicou seu alcance: por todo o mundo, ativistas dos direitos femininos trajam as características túnicas vermelhas e chapéus brancos exageradamente grandes para manifestar-se pelo direito ao aborto e à autodeterminação. Os protestos mais recentes se dirigiram ao Supremo Tribunal americano, que está prestes a anular a lei que garante o aborto ilegal.

Em entrevista à rádio americana NPR, Margaret Atwood disse não saber se sua O conto da aia já foi queimada em público. Ainda assim, com o exemplar incombustível, ela e sua editora querem emitir um sinal na luta contra proibições e censura.

A edição emprega materiais como folha de alumínio, aço e costuras com filho de níquel. Ela será leiloada pela casa Sotheby's: o lucro, calculado em mais de 100 milhões de dólares, irá para a associação de escritoras/es PEN America, em reconhecimento a seu empenho em prol da liberdade de expressão.

Na gala anual do PEN, em Nova York, a apresentadora da noite, escritora e atriz Faith Salie, comentou: "O livro à prova de fogo foi feito para resistir, não só aos censores cuspidores de fogo e fanáticos flamejantes, mas também às chamas reais com que eles querem incinerar a nossa democracia.."

Em 2019, Margaret Atwood publicou com The Testaments uma espécie de sequência de seu best-seller. Para os fãs da série de tv, após o fim em aberto da quarta temporada, a boa notícia é que a quinta está em produção, devendo ser lançada ainda m 2022.

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