quinta-feira, junho 9

Sul da fronteira, oeste do sol

Eu nasci no dia 4 de janeiro de 1951. Na primeira semana do primeiro mês do primeiro ano da segunda metade do século xx. Pode-se dizer que é uma data digna de comemoração. Por isso, recebi o nome Hajime, que significa começo. De resto, não há nada notável em relação ao meu nascimento. Meu pai trabalhava em uma grande empresa de corretagem e minha mãe era uma dona de casa comum. Meu pai foi recrutado para o serviço militar quando estudante e enviado para Singapura, e depois da guerra passou um tempo em um campo de prisioneiros. A casa da minha mãe foi atingida pelas bombas de um b-29 e destruída pelo fogo, em 1945. Ambos pertenciam à geração marcada pela longa guerra.

Mas, quando eu nasci, os ecos desse período já estavam muito fracos. Onde eu morava não havia ruínas de incêndios nem forças de ocupação. Vivíamos numa cidadezinha tranquila, em um imóvel 
fornecido pela empresa de meu pai. Uma casa construída antes da guerra, um pouco velha, mas bem espaçosa. O jardim tinha grandes pinheiros, lanternas de pedra e até um pequeno lago.


Morávamos em um subúrbio metropolitano de classe média incrivelmente comum. Todos os colegas de quem fui próximo nesse período viviam em casas relativamente bonitas. O tamanho podia variar um pouco, mas todas tinham halls de entrada e jardins, e nesses jardins cresciam árvores. A maior parte dos pais dos meus colegas trabalhavam em escritórios ou eram profissionais especializados. Famílias nas quais a mãe também trabalhava eram raríssimas. Quasetodas as casas tinham um cão ou gato de estimação. Eu não conhecianinguém que morasse em um apartamento, grande ou pequeno. Mais
tarde, me mudei para outro lugar próximo dali, onde a vida era praticamente idêntica. Então, até entrar na faculdade e me mudar para Tóquio, eu achava que todas as pessoas normais iam para o escritório de terno todos os dias, viviam em casas com quintal e tinham ou um gato, ou um cachorro. Eu não conseguia imaginar, pelo menos não concretamente, outro tipo de vida.

As casas costumavam ter duas ou três crianças. No mundo em que eu vivia, esse era o número médio de filhos que um casal tinha. As famílias de todos amigos de quem consigo me lembrar, desde a infância até a adolescência, se encaixavam nesses padrões. Se não fossem dois filhos, eram três. Se não fossem três, eram dois. Famílias com seis ou sete filhos eram raras, mas famílias com um só filho eram ainda mais incomuns.

Entretanto, eu não tinha irmãos. Era filho único. E, ao longo de toda a juventude, isso me causou um tipo de complexo. Eu era uma criatura anômala naquele mundo, a quem faltava algo que todos consideravam natural.

Quando criança eu odiava essa expressão: “filho único”. Ela parecia reforçar aquilo que eu não tinha. Me apontavam o dedo. Você é incompleto, cara!

Naquele mundo, reinava inabalável a crença de que filhos únicos são crianças mimadas pelos pais, franzinas e terrivelmente egoístas. Isso era visto como um fato da natureza, da mesma forma que a pressão do ar é menor no alto das montanhas ou que as vacas dão leite. Por isso, eu odiava quando alguém me perguntava quantos irmãos eu tinha. Bastava eu responder que não tinha irmãos para meu interlocutor pensar: “Ah, então esse aí é mimado, franzino e egoísta”. Essa visão estereotipada me irritava e me feria. Mas o que me irritava e me feria
mais profundamente naquela época é que essa era a mais pura verdade. Eu era mesmo um menino mimado, franzino e terrivelmente egoísta.

Na minha escola, filhos únicos eram criaturas raríssimas. Durante os seis anos do primário, só conheci uma criança além de mim que não tinha irmãos. Só uma. Eu me lembro muito bem dela (era uma menina). Ficamos amigos e conversávamos muito. Posso dizer que realmente nos conectamos. Penso que cheguei a amá-la. 

Seu sobrenome era Shimamoto. E mancava da perna esquerda, pois tivera poliomielite ainda bebê. Para completar, ela tinha sido transferida para a nossa escola no meio do curso (no final do quinto ano). Então, eu diria que ela carregava um fardo emocional muito mais pesado do que o meu. Mas esse fardo fizera dela uma filha única muito mais resiliente do que eu, com muito mais autocontrole. Ela nunca se lamentava. Não apenas não manifestava seu desagrado em palavras, como também não o deixava transparecer em suas expressões. Sorria sempre, mesmo quando acontecia algo ruim. Chego a pensar
que, quanto mais desagradável fosse a situação em que se encontrava, mais ela sorria. Era um sorriso incrível, que muitas vezes me serviu de consolo e incentivo. “Tudo bem”, parecia dizer. “Tá tudo bem. É só você aguentar um pouquinho mais, e isto também vai passar.” Por isso, sempre que me lembro do rosto de Shimamoto, é esse sorriso que me vem à mente.

Shimamoto tirava boas notas e era, de maneira geral, justa e gentil com todos. Ela era uma figura bastante respeitada dentro da sala. Nesse sentido, ela era bem diferente de mim, apesar de também ser filha única. No entanto, eu não diria que os colegas tinham um apreço incondicional por ela. Ninguém a maltratava ou zombava dela, mas ela não tinha nenhum amigo de verdade, além de mim.

Acho que ela devia ser tranquila demais, controlada demais para eles, o que poderia ser visto como frieza e arrogância. Mas eu conseguia sentir que, por trás daquela fachada, se escondia algo terno e sensível. Estava escondido bem no fundo dela mas, como uma criancinha brincando de esconde-esconde, esperava ser descoberto algum dia. Essa sombra despontava, volta e meia, nas suas palavras e no seu rosto
Haruki Murakami 

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