A livraria, a princípio, não tinha aquele lugarzinho nos fundos, com o banco para os escritores se sentarem e baterem papo (uma ou duas vezes, trocaram sopapo), esse banco preto que viera da biblioteca de Alfredo Pujol e está agora recolhido à sala de trabalho do editor, como “o banco do Graciliano”. Lá era o escritório de José Olympio, que depois passou ao andar superior. Os literatos foram chegando, José Lins do Rego, Hermes Lima, Jorge Amado, Murilo Mendes, que acabara de converter-se ao catolicismo ortodoxo, Marques Rebelo, a formosura de Adalgisa Nery, o pessimismo de Graciliano, Eneida cordial e sua gargalhada, a ironia de Tarquínio, os derrames de um, as mentiras de outro, e o local foi-se convertendo no que se chama um foco. Rapazes que desembarcassem de um “ita” do Norte ou do trenzinho fumacento de Minas tinham de ir, correndo, respirar aqueles ares ilustres.
Com esse colorido de vanguarda, não havia outra casa no Rio. Mesmo tendo o hábito de percorrer livrarias, era naquela que o escritor pousava para confrontar suas ideias com as dos confrades, para se sentir, não um consumidor de livros, mas um ser caracterizado e participante, às voltas com as dúvidas e complicações inerentes à sua natureza imaginativa e hipersensível, e desejoso de apoio e comunicação.
Por outro lado, não se tratava apenas de uma loja simpática. Era também uma editora revolucionária, que lançava com ímpeto nomes conhecidos de pouca gente ou de ninguém.
Apresentava um livro diferente e elegante, formato padronizado, capa desenhada por Santa Rosa (o que nem sempre era fácil de conseguir, pois o Santa, como a felicidade, não estava onde o procurassem, ou nunca o procuravam onde poderia estar), e o aspecto gráfico e o prestígio da casa acendiam nos escritores o desejo de figurar em seu catálogo. José Olympio editou com o mesmo espírito autores da direita, do centro, da esquerda e do planeta Sírio, e se aos de determinado matiz tocou um papel mais saliente durante certo tempo, isto se deve à tendência da época, aos rumos da sensibilidade, tangida pelos acontecimentos mundiais. J. O. logo se revelou excelente praça, pois não editava apenas, ficava querendo bem aos editados, interessava-se por eles junto a quem de direito, ajudava-os em silêncio, criava em torno da materialidade das relações profissionais uma coisa abstrata mas imperante, a que ele chamou a Casa. J. O. em geral não emprega a primeira pessoa; diz: a Casa. A Casa não pode editar um livro nessas condições, a Casa ficou magoada, a Casa está feliz… O fato é que não se pode compreender a efervescência de ideias, de planos, o sentido socializante da literatura por volta de 35 a 37, sem a presença da Casa. O romance sofrido do Nordeste, situado em 30, ganhou ali direitos de cidade. O modernismo, então ainda ridicularizado por jornais e salões, começou a funcionar como produto editorial, que o público julgaria diretamente. Os “Documentos Brasileiros” se converteram num laboratório de crítica, pesquisa social e interpretação histórica do Brasil. De modo que aquilo era uma loja de livros, à primeira vista; mas tinha alma.
A Casa continua.
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amondoeira"
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