Foram várias as vezes em que meus irmãos e eu fomos acusados de algo que não havíamos feito ou sofrido violências que nem sequer sabíamos nominar. Lembro de uma em especial, quando eu tinha seis anos de idade. Eu brincava com as vizinhas na escadaria do prédio, bem ao lado do nosso apartamento. Enquanto a gente combinava a brincadeira, uma das meninas brancas questionou:
“Mas se Djamila é preta, ela não pode brincar com a gente, pode?”
“Ih, é verdade! Você não pode ser mãe da nossa boneca.”
Eu não retruquei, tinha só seis anos de idade. Por mais que me incomodasse muito não poder brincar com elas, o que elas diziam parecia fazer certo sentido. Minha mãe era negra, meu pai era negro, meus avós eram negros, eu e meus irmãos também. Na minha cabeça de criança, aquelas palavras foram cortantes, mas lógicas.
Meu pai, que tinha escutado tudo, dias depois chegou do trabalho com um presente para Dara e para mim. Nós tínhamos o hábito de esperá-lo no portão do prédio e, assim que ele dobrava a esquina, a gente corria fazendo aviãozinho com os braços para pular no colo dele. Nesse dia, porém, estávamos em casa. Quando abri a caixa e vi a pequena boneca marrom, um mundo pareceu se abrir. Lembro até hoje do cheiro dela e da minha alegria em me exibir pelo prédio. De pegar um lençol velho, estender embaixo da escadaria e começar a montar a minha casinha, com a boneca que poderia ser a minha filha. Anos mais tarde fui entender a magnitude do gesto do meu pai. Imagino o quanto lhe deve ter doído escutar as palavras daquelas meninas, quantas memórias podem ter sido acionadas. Sem falar no quanto ele deve ter andado para encontrar, em 1986, bonecas que se parecessem com suas filhas.
Quando pequena eu também me distraía colecionando papéis de carta, e amava o cheiro deles, a magia que carregavam, a sensação de paz que aqueles desenhos tão delicados me davam. Adorava trocá-los com as amigas, sempre invejando a pasta cheia de folhas que elas tinham. Eu tentava convencer a minha mãe de que eu precisava de mais papéis, mas ela sempre sublinhava, com firmeza, que era preciso garantir as compras do mês para os quatro filhos.
Eu também amava olhar pela janela do meu quarto à noite, tentando ver as estrelas. Sentia saudade de algo que não sabia nomear. Nas festas de fim de ano, era pior, essa saudade sem nome aumentava. Minha mãe, com sua mania de limpeza, passava o dia inteiro faxinando. Lembro até hoje do cheiro do removedor Varsol no chão de taco. Na véspera do Natal, dava uma ansiedade gostosa usar roupas novas, sentir o cheiro das roupas novas, poder tomar um banho mais demorado sem que meu pai batesse na porta, gritando: “Tá viva aí?”.
Lembro quando, aos oito anos de idade, ganhei uma boneca chamada “mãezinha”, que se mexia e falava “mamãe”. Por alguns minutos, ela teve minha atenção. Porém nada me deixou mais fascinada do que o carrinho de bombeiro que um dos meus irmãos havia ganhado. As sirenes, o pisca-pisca e o carro rodando me deixaram hipnotizada. Os outros meninos do prédio se amontoaram para ver, e percebi que era melhor eu me manter afastada. A boneca logo perdeu a graça e passado um tempo já estava sem braço, o que deixava meu pai furioso. “Eu me mato de trabalhar na estiva para vocês não darem valor às coisas.”
Esse sentimento de ter que fazer tudo certo porque meu pai se matava de trabalhar ou porque caso contrário minha mãe bateria na gente foi um fantasma por muito tempo. Claro que a culpa não era dos meus pais, pessoas da classe trabalhadora, que desde cedo precisaram enfrentar as durezas da vida. Mas esse modelo rígido de “não pode errar jamais” pode ser muito pesado. Sei que você também foi educada assim, vó. Se errar, apanha. Se errar, vai ouvir sermão de três horas e ser privado de tudo. Se repetir, te tiro da escola. Se não limpar a casa, te dou uma surra. Claro que precisávamos aprender a ter responsabilidades, mas éramos crianças, íamos errar — e somos seres humanos, vamos errar. Essa rigidez, porém, acabou acentuando os problemas de autoestima que o racismo nos causa. Então, para me proteger, ou eu mentia ou me boicotava.
Lá em casa, vó, crescemos entendendo que errar era mais um privilégio de brancos. “Antes eu te bater do que a polícia”, era uma frase que minha mãe dizia sempre pra gente. O medo da violência policial faz com que as mães negras não possam permitir que seus filhos errem — e isso é violento também com elas. Meus colegas brancos sempre pegavam balas e bombons quando iam às lojas Americanas. Era a diversão deles. Uma vez, fiz o mesmo. A surra que eu levei me fez nunca mais repetir a dose. E o pior é que minha mãe tinha razão: em situações como aquelas, crianças brancas levariam uma leve advertência, crianças negras, não. Por isso, quando errávamos a punição era rigorosa — para que não esquecêssemos de como a sociedade nos trataria. Raramente havia acolhimento, nossa mãe não tinha tempo e a vida exigia.
Também tinha essa: “Se você brigar e apanhar, quando chegar em casa vai apanhar ainda mais”. E a justificativa era a velha frase de sempre: “Estou te preparando para a vida”. Preparar para a vida, quando se trata de uma criança negra, é ser brutalizada o bastante para aprender a lidar com a brutalidade do mundo. É um ciclo que se propaga impedindo a gente de ser, somente ser. Eu passava horas fantasiando a vida que eu gostaria de ter, porque aquela com a qual eu tinha que lidar me causava náuseas.
Djamila Ribeiro, "Cartas para minha avó"
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