Penso em Salman Rushdie todos os dias. Não entendo como um dos maiores escritores do nosso tempo possa estar convalescendo de um brutal ataque terrorista e nada se saiba a respeito do seu progresso; não consigo imaginar tal manto de silêncio em relação a qualquer ator, desportista, político, celebridade de internet. Torço para que a ausência de notícias que cerca o seu nome seja uma estratégia de segurança, e não um reflexo das atenções do mundo dito “civilizado”.
Tenho lido Salman Rushdie desde que ele foi atacado, no dia 12 de agosto. Reli “Haroun e o mar de histórias”, que é um pequeno livro para jovens leitores (mas encantador também para adultos); estou relendo “O último suspiro do mouro”, que é extraordinário; e vou tentar fazer as pazes com “Os versos satânicos”, que achei confuso e verborrágico quando foi publicado.
Também acabo de ler, pela primeira vez, “Joseph Anton”, espécie de memórias do cárcere #sqn, que há muito estava na estante do quarto onde fica o que quero ler logo. Demoramos quase dez anos a nos encontrar, de fato, porque… na verdade, não sei. Livros e leitores volta e meia se desencontram sem motivos justificados.
“Joseph Anton” é de 2012; foi traduzido por José Rubens Siqueira e Donaldson M. Garschagen para a Companhia das Letras. É longo, rebuscado e vagamente surrealista, como costumam ser os romances do autor — mas aqui estamos falando do que aconteceu com uma pessoa de carne e osso, um homem que passou a se chamar Joseph Anton porque precisava assinar cheques, fazer exames médicos e se submeter a procedimentos burocráticos corriqueiros, e o nome que tinha, Salman Rushdie, havia se tornado perigoso demais para uso.
Joseph Anton vive sob o nome de dois dos seus escritores favoritos, Conrad e Tchekov. De um momento para o outro, assim que é condenado à morte por um aiatolá iraniano, deixa de ter casa ou rotina. Seus dias passam a ser determinados pelo grupo de seguranças que o vigia dia e noite. Não pode mais andar na rua, não pode ir a um restaurante ou a uma tarde de autógrafos, companhias aéreas não permitem que voe em suas aeronaves. Seu casamento desmorona.
Rushdie trata Joseph Anton na terceira pessoa. Isso lhe dá maior liberdade criativa e, suponho, o distanciamento suficiente para dissecar os seus relacionamentos — com amigos, editores, filhos, mulheres. Às vezes “Joseph Anton” parece uma revista de celebridades literárias, e podemos entrever os dias de Ian McEwan, Martin Amis, Susan Sontag, Harold Pinter, Antonia Fraser, Bruce Chatwin, Michael Herr. Ficamos sabendo até que William Styron não usava cueca (o que talvez seja mais informação do que gostaríamos).
Do lado menos divertido das fofocas, somos lembrados do péssimo comportamento de gente que tínhamos em melhor conta, como Jimmy Carter, John Le Carré ou Cat Stevens, que acharam que a culpa era de Rushdie por estar usando uma saia tão curta.
A essência de “Joseph Anton”, porém, é a poderosa literatura de Salman Rushdie, e a sua insuperável capacidade de resistência. Ele poderia te se refugiado em Joseph Anton para sempre, e ter se recolhido a uma aldeia remota, mas escolheu lutar pelo direito à liberdade de expressão, escrevendo, vivendo com voracidade e se fazendo visível.
Cada minuto da sua vida é um triunfo sobre o obscurantismo. Viva, Rushdie! Viva muito, e bem, e por longos anos.
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