quinta-feira, setembro 29

Mãos

Quem olhasse as mãos de Francisco João de Azevedo segurando a amurada do navio veria as mãos de um operário. Não que

fossem grandes, eram no tamanho um tanto femininas, mas tinham a rudeza própria de quem se dedicava a ofícios manuais. A pele dos dedos estava partida, as unhas lascadas com alguma sujeira sob elas e calos que podiam ser entrevistos na extremidade das palmas. Muitas vezes, lidando na solidão de sua oficina, Francisco observava aquelas mãos, a parte de seu ser que mais conhecia, sempre inquietas como sua mente, enquanto o resto do corpo mantinha uma aparência retraída. Começamos a morrer pelas mãos, pensou com tristeza. As mãos tinham mais idade do que ele, estavam se desgastando com muita rapidez. O envelhecimento se estampara nas veias e nervos salientes, nas superfícies ásperas, nos dedos rudes de camponês. Mas ele não tinha vergonha do aspecto delas, no fundo sentia orgulho, pois lembravam seu passado de órfão afeito ao trabalho.

—O senhor parece não apreciar a Corte—disse uma senhora a seu lado.

Ele ergueu os olhos, cegando-se com o sol refletido nas roupas brancas e rendadas dela.

—De modo algum, muito me agrada a cidade.

—Deve ter estado aqui várias vezes; e já não vê novidades.

—Esta é a primeira.

—E nenhum brilho nos olhos? Nenhum sorriso de admiração?

—Estava rezando—mentiu.

—Ah, desculpe por ter incomodado—ela disse, voltando a fitar a terra, sempre mais próxima.

As pessoas ao redor faziam comentários sobre a cidade, tão bonita vista assim do mar, numa manhã de sol. Alguém identificava torres de igreja, um morro, o Paço Imperial, revelando a euforia própria de quem chega à Corte depois de ter deixado para trás a província e sonha viver grandes contecimentos. Francisco João de Azevedo também desejava experimentar o prazer, mas este não estaria na paisagem, nas vidraças da rua do Ouvidor, nem nos restaurantes ou no teatro. As coisas mundanas não o fascinavam nem um pouco. Em verdade, suas mãos não o seguravam ao navio, seguravam-no a si mesmo. Vestindo casaca preta, calças folgadas e botinas bem polidas, dava a impressão de um homem refinado. Só as mãos destoavam. Não serviam para o sinal da cruz, para se colocarem juntas, simbolizando contrição, e muito menos para ministrar santos sacramentos. Quando apertava a mão de outros religiosos, até causavam constrangimentos. O tecido adiposo das mãos dos padres, macias como estofados, contrastava com a aspereza da sua, e os religiosos se afastavam num susto quando elas se encontravam, como se tivessem tocado em um inseto asqueroso.

O vapor já estava ancorando, as pessoas acenavam para o porto, onde conhecidos e desconhecidos esperavam os viajantes, uns para receber parentes e amigos, outros, para conseguir algum trabalho. Padre Azevedo continuava agarrado à amurada. Não há viagens, chegadas e partidas para quem se dedica às próprias ideias.
Miguel Sanches Neto, "A máquina de madeira"

Nenhum comentário:

Postar um comentário