Toda cidade possui figurinhas carimbadas (não confundir com as da Copa): o homem que passava pelas lojas aos gritos de “não pode!” e a andarilha idosa que dizem ser família rica, mas dormia nos bancos da praia, estão desaparecidos. No entanto, a jovem mulher que prega passagens da bíblia em lugares movimentados, com voz alta e aguda, vestindo roupa longa e xale na cabeça, voltou a frequentar a feira. Tinha sumido por uns tempos, mas ressurgiu firme e forte, competindo com os pregões dos feirantes. Só que, agora, em versão atualizada: trocou o livro sagrado pelo celular que lê aos berros, por mais de uma hora, divulgando parábolas, versículos, salmos…
Admiro a persistência dessas pessoas que contrariam o conceito de normalidade. Tomam para si missões auto-impostas, caminham quilômetros com sol ou chuva, sublimam maus tratos. Não sei onde se escondem o resto do dia, onde dormem, quando comem.
A cidade também anda cheia de mendigos, de todas as idades. E quase mendigos: garotos que vendem balas baratas na porta de supermercados, postos dos correios, entrada de bancos, escadaria dos shoppings.
Temos músicos nas calçadas. A maioria prefere tocar nos bairros comerciais e turísticos, além das ruas onde a feira-livre acontece uma vez por semana. Gosto de ouvi-los desde casa, e acredito que tornem menos árduo o trabalho dos feirantes, no desmonte das barracas. Em todos os lugares, a caixa do instrumento substitui o chapéu que antes recebia as gorjetas. E os mais sofisticados trazem consigo um pequeno amplificador e/ou aparelho que faz as vezes da bateria, melhorando o solo. O repertório é variado, do blues ao axé, incluindo música clássica.
Não é de hoje o trabalho de rua. Lembro dos peixeiros da infância, do amolador de facas e tesouras, do vendedor de biju, do comprador de ferro-velho e garrafas. Este último desapareceu, com a coleta de lixo reciclável, e rarearam as bancas de peixe, após a Rua do Peixe e o Mercado de Peixe, pontos de venda oficiais.
Como o homem do biju e sua matraca inconfundível, também circulam por aqui o carrinho de paçoca e amendoim torrado com seu apito e, mais recentemente, o ciclista com tabuleiro de tapioca, alimento que caiu no gosto dos preocupados com a saúde.
Os três não seguem uma rotina, aparecem quando aparecem. Assim como a família que, lá da rua, anuncia a coleta de óleo usado. Outro dia consegui descer a tempo e conheci a matriarca, que estacionava a carroça enquanto os filhos percorriam os prédios. Idade mediana, roupas gastas e olhar aflito, mas cheio de dignidade. Queria prever a próxima vinda, para ajudá-la de alguma forma, mas o grupo permanece pouco tempo em cada parada e nem sempre os alcanço. Estão atrás de óleo reciclável, não de donativos. Esta é parte da população que ocupa a cidade onde nasci. De tanto a percorrer, tais homens, mulheres e crianças devem conhecê-la melhor do que eu, embora poucos os considerem cidadãos e, para muitos, sejam invisíveis.
Madô Martins
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