Heroico e vazio o cidadão continuou de pé junto da janela aberta. Mas na verdade jamais poderia transmitir a alguém o modo pelo qual ele era harmonioso, e mesmo que falasse não diria uma palavra que cedesse a polidez de sua aparência: sua extrema harmonia era apenas evidente.
“Os animais pelágicos se reproduzem com profusão”, disse com oca luminosidade. Cego e glorioso – era isso apenas o que se podia saber dele vendo-o à janela de um segundo andar. Mas se ninguém conseguiria sondar sua harmonia – também ele parecia não sentir mais do que ela. Porque este era o seu grau de luz. “Os animais e vegetais marinhos com profusão”, disse sem ímpeto mas sem freio porque este era o seu grau de luz. Não importa que na luz ele fosse tão cego como os outros na escuridão. A diferença é que ele estava na luz. “Flutuantes”, falou. Despercebido à janela porque ele era apenas um dos modos de ser S. Geraldo. E também um de seus alicerçadores somente por ter nascido quando o subúrbio também se erguia, apenas por ter um apelido que só se tornaria estranho quando um dia S. Geraldo mudasse de nome; de pé diante da janela aberta. Era essa a natureza de uma raça de homem.
E assim ele ficou, observando com aplicação Efigênia que na rua carregava uma cesta. A mulher parou e enquanto repousava passeou o olhar com ócio e certo desespero pelos arredores ensolarados: eram quase três horas e todas as portas começaram a se abrir ao mesmo tempo. Efigênia retomou a cesta. Para mais adiante interromper-se de novo e arrastar penosamente o fardo. Afinal ela estacou outra vez – mas Perseu era paciente. “Os animais”, disse ele. A mulher retomou a cesta. “Se reproduzem com extraordinária profusão”, disse Perseu. Decorar era bonito. Enquanto se decorava não se refletia, o vasto pensamento era o corpo existindo – sua concretização era luminosa: ele estava imóvel diante de uma janela. “Se alimentam de microvegetais fundamentais, de inusórios etc.”
“Etc.!” repetiu brilhante, indomável.
E agora se calava, moroso e cheio de sol. “Os seres marinhos”, disse num murmúrio; a inconsciência do rapaz dominava largamente a cidade. “Se reproduzem”, acrescentou sombrio. Suas asas eram grandes asas imóveis.
Inclinou-se então pela janela e gritou:
– Fruteiro! suba!
Ah! voou uma gralha espantada.
Grande, revelado nos braços nus, comprou tangerinas no corredor escuro.
Voltou e empoleirou-se no parapeito da janela. Em breve comia e jogava os caroços no beco sujo. Olhava piscando: o caroço dava dois pulos antes de imobilizar-se ao sol. Perseu não o perdia de vista apesar da distância e das pessoas que já se entrecruzavam apressadas: ele era paciente. E em pouco a rua se achava plena de pontos concretos: inúmeros caroços espalhados numa disposição que tinha um sentido flagrante – apenas que incompreensível. Assim como os sobrados dispostos na rua. Estava na sua natureza poder possuir uma ideia e não saber pensá-la: assim ele a expunha, ofuscado, persistente, jogando os caroços. Havia mesmo algumas anedotas sobre a lentidão de inteligência dos homens de S. Geraldo, enquanto as mulheres eram tão espirituosas! “Se reproduzem com extraordinária profusão!” disse o rapaz de repente fustigado.
Em breve estava novamente absorvido pela espécie de perfeição que existia em jogar caroços; tudo o que se parecesse com mecanismos já começava a interessar aos novos cidadãos. Absorvido porém remoto. Pois seu tempo parecia impossível de ser preenchido por uma ação: ele jogava no vazio. Somente algum sinal fazia com que dentro dessa largueza houvesse particularmente a sua vida. “Os seres marinhos pelágicos”, disse bastante alto com a boca cheia.
O que salvava da angústia esta criatura perdida é que ela era perdida como Deus quer que se seja inocente: ele comia e jogava os caroços. O mundo podia passar sem este pedreiro cego. Mas uma vez que ele vivia, ninguém mais poderia executar o seu trabalho, tão intransmissível este já se tornara: assim jogou mais três caroços, recuando a cabeça e mirando com um olho fechado... “Vida flutuante ou pelágica”, exclamou refazendo-se. Atrás do rosto belo e resignado havia um outro que, repetindo os traços externos, tinha uma expressão um pouco horrível, a expressão de um pensamento profundo. E uma intolerância moral – a dos são-geraldenses – ao mesmo tempo maior e mais amorfa do que a do rosto exterior que buscava certa unidade que fosse imediatamente compreendida por um espelho: atrás do rosto dourado e cortês um cheiro quase desagradável de estábulo porque ele era muito moço ainda.
Assim se haviam passado vários momentos proporcionais e amadurecidos enquanto o rapaz jogava os caroços como se tivesse afiado ouro numa oficina – a primeira badalada do relógio fê-lo erguer um rosto sonolento pela aplicação. Por um instante uma cara fora de alcance esperava sem interesse o que lhe iam dizer: o relógio da praça batia três horas largas acima de S. Geraldo e sob as badaladas vibrantes o subúrbio foi submergindo. Quando reapareceu escorrendo às últimas ressonâncias, o subúrbio estava claro e tudo podia ser mais visto: sobre a mesa da janela jazia o livro aberto, e na página revelada pela súbita nitidez da hora estava inscrito:
– Este animal discoidal é formado de acordo com a simetria baseada no número 4.
Assim estava escrito! E o sol batia em cheio sobre a página empoeirada: pela casa defronte subia mesmo uma barata... Então o rapaz disse aquilo que era lustroso como um escaravelho:
– Os seres pelágicos se reproduzem com extraordinária profusão, exclamou afinal de cor.
O relógio atrasado da igreja bateu três horas. Ah! espavoriu-se a gralha de novo perseguida. Perseu balançou os dois últimos caroços na concha da mão e lançou-os em dados. O jogo estava feito! Era de tarde. O rapaz parou maravilhado e vazio. Inesperadamente abriu as grandes asas num bocejo de juventude.
Clarice Lispector, "A cidade sitiada"
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