Esta semana as livrarias reabriram em Portugal. Tendo chegado a Lisboa há 15 dias, saí pela primeira vez de casa. Fui caminhando até a Travessa, no Príncipe Real, inaugurada há pouco mais de dois anos, e que é hoje a única livraria brasileira da capital portuguesa (sim, já houve outras). O verão instalara-se em pleno inverno. Porém, mesmo sob a clara alegria do sol, a cidade continuava triste.
Entrei receoso, não do vírus, mas de já não saber como me comportar numa livraria. Há mais de cinco meses que não entrava em nenhuma. Meia dúzia de leitores, tão assustados e tão fascinados quanto eu, circulavam devagar entre as estantes, avaliando as capas e estudando os títulos. Um ou outro atrevia-se a estender uma mão tímida para agarrar um volume, abri-lo, ler uma página ao acaso.
Bibliófilos reconhecem-se uns aos outros por certos gestos, vícios, bizarrias. Você vê um sujeito acariciando dissimuladamente a capa de um livro — e logo desconfia. Vê-o abrindo um volume com mal disfarçada volúpia; aproximando o rosto para o cheirar — e aí tem a certeza.
Há quem organize a biblioteca pelo nome dos autores, em ordem alfabética. Geograficamente, pelo país de origem dos escritores. Ou por gêneros literários. Há até quem arrume os livros pela cor das lombadas (o escritor e editor português Francisco José Viegas ou a nigeriana Taye Selasi). Finalmente, consta existir ainda o leitor-gourmet, que dispõe os livros nas estantes segundo o cheiro das páginas: livros doces, amargos, salgados, almiscarados, acitrinados, e por aí fora. Você pergunta se ele tem “A Cidade e as Serras”, por exemplo. O leitor-gourmet ergue o rosto e cerra os olhos, concentrado e fatal — como o faria Hannibal Lecter. Finalmente declara: “Esse eu não vou esquecer nunca. Cheira a terra molhada, a brisa fresca, a peixe assado, com batatas ao murro.” Avança para uma estante e retira o livro.
Sempre que penso em grandes bibliófilos me lembro de uma visita à biblioteca do historiador português José Pacheco Pereira. Em 2003, Pacheco Pereira comprou um imenso casarão numa pequenina cidade perto de Lisboa, a Marmeleira, para poder abrigar todos os seus livros. Nos anos seguintes foi adquirindo os edifícios em redor, entre os quais uma escola, uma delegacia de polícia, com as respectivas celas, uma destilaria etc, e ali instalando a biblioteca. Pacheco Pereira guarda na Marmeleira mais de 150 mil livros. Contudo, basta dizer-lhe um título e ele levanta-se e vai buscá-lo. Não sei como consegue. Talvez, como os leitores-gourmet, os distinga pelo olfato. Pode ser.
Volto a pensar nos manuscritos do deserto da Judeia, e nos lentos escribas, agachados, desenhando palavras em papiros, que depois enrolavam e guardavam cuidadosamente. Imaginariam eles que as suas palavras chegariam tão longe? O meu alento vem dessa capacidade de resistência da palavra escrita.
José Eduardo Agualusa
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