quarta-feira, abril 30

Auto promoção


 

História de uma letra

Muita gente me pergunta se deixei de escrever o meu sobrenome com letra dobrada devido à reforma ortográfica; e quando estou com preguiça de explicar, digo que sim. Mas hoje tomo coragem, abalanço-me a confessar a verdade, que talvez não interesse senão aos meus possíveis herdeiros.

A verdade nunca é simples, como se imagina. E em primeiro lugar, devo dizer que o meu sobrenome simplificado só vale na literatura. Nos documentos oficiais prevalece a forma antiga, e eu por mim gosto tanto da tradição que não me importava nada carregar um ípsilon, um th, todas as atrapalhações possíveis que enrugam e encarquilham um idioma.

Por outro lado, as reformas ortográficas são sempre tão arrevesadas que já perdi as esperanças de estar algum dia completamente em condições de escrever sem erros, descansando assim no tipógrafo e no revisor, que são os grandes responsáveis pelas nossas faltas e pelas nossas glórias. Não foi, portanto, por afeição às reformas que sacrifiquei uma letra do meu nome. A história é mais inverossímil.

Todos na vida atravessamos certas crises. Dever-se-ia mesmo escrever sobre a gênese, desenvolvimento, apogeu e fim das crises. Se uma pessoa está sem emprego, o natural é que se empregue. Se está doente, o natural é que morra ou se cure. Mas o fenômeno da crise é importante precisamente por ser o contrário do natural. De modo que se a pessoa está desempregada, não há maneira de arranjar emprego, e se está doente não há maneira de se curar, etc…

As crises são muito variadas. Há crises sentimentais, econômicas, de inspiração, de talento, de prestígio — e o povo classifica essa situação, que ele, em sua sabedoria, já observou, com o fácil nome de azar.

O azar não é lógico. Isso é que o torna desesperador. A pessoa sai de casa, bem com a sua consciência, com as faculdades mentais em perfeita ordem, os músculos, os nervos, tudo bem governado, atravessa a rua como um cidadão correto, observando o sinal, e quando chega do outro lado, apanha na cabeça um tijolo que um operário, inocente, deixou cair do sétimo andar de uma construção.


Naturalmente, todo o mundo tem refletido sobre as razões secretas dessas coisas inexplicáveis. E foi assim que, com o correr do tempo, se chegou à caracterização de um certo número de fatos e objetos que servem de prenúncio ao azar: espelhos quebrados, relógios parados, sal entornado na mesa, sapato emborcado, tesoura aberta, gato preto, mariposas, sexta-feira dia treze, mês de agosto, gente canhota e estrábica, vestido marrom, para só falar dos principais.

Penetrando mais no estudo de todas essas superstições, pessoas entendidas têm procurado explicá-las pelas correlações existentes com as crenças do paganismo, estas por sua vez baseadas no empirismo e na ignorância dos nossos antepassados, e assim por diante, o que não impede que as pessoas ainda hoje se benzam, quando bocejam, para que o Demônio não lhes entre pela boca; e não cruzem a mãos, quando se cumprimentam, para não atrapalharem algum matrimônio, e não se deitem com os pés para a rua, e não façam muitas outras coisas, só pelo medo das suas conseqüências ocultas.

Outras pessoas, igualmente entendidas, dão rumo diverso aos seus estudos, descobrem o entrelaçamento das causas e efeitos universais, chegam até a afirmar que tudo quanto nos acontece nesta encarnação é fruto remoto de encarnações anteriores, e respeitam o que diz um provérbio oriental — que o simples roçar da roupa de um passante, na nossa roupa, é indício de alguma proximidade de vidas, em tempos imemoriais.

E há os que seguem o caminho dos astros, e com uma circunferência, umas retas, uns planetas, uns cálculos, dizem e predizem os nossos destinos, com todas as suas inesperadas trajetórias.

E há os que lêem nas linhas das mãos, e contam as nossas viagens, os nossos padecimentos de fígado, o que vamos fazer daqui a vinte anos, e o minuto em que empalidece a nossa estrela…

Está claro que creio em tudo isso. Eu justamente creio em tudo. Creio até no contrário disso. A minha faculdade de crer é ilimitada. Não compreendendo por que as pessoas crêem numas coisas e noutras não. Tudo é crivei. Principalmente o incrível. Não estou fazendo paradoxo. A vida é que já é por si mesma paradoxal, desde que seja vista não apenas pela superfície.

Ora, uma vez, todas as coisas começaram a correr contra mim. Fazendo a mais profunda e leal introspecção, estou bem certa de que não merecia tanto. Se punha roupa branca, chovia; se precisava ver a hora, o relógio estava parado; muitas coisas pequenas, assim e outras maiores, já com intervenção humana, e que, por isso, não é necessário contar.

Então, considerando que tal concordância de acontecimentos desagradáveis devia ter uma razão secreta, pus-me a procurá-la.

Ao contrário do que geralmente se faz, comecei por atribuir a mim mesma a razão dos meus males. É certo que todos temos muitos defeitos. Mas nunca me dei ao luxo de ter tantos que justificassem a conspiração que se fazia contra mim.

Admitida a minha inocência, passei ao exame das circunstâncias que por acaso estivessem sob a minha responsabilidade. Nem espelho partido nem vestido marrom nem gato preto nem número fatídico na porta.

E assim descendo de observação em observação, e consultando algum conhecido — e os nossos conhecidos sempre sabem essas coisas ocultas e se não nos ajudam com as suas luzes é pela timidez em não acreditarem o momento propício — passei a analisar o meu nome.

Esqueci-me de dizer que estava disposta a todos os despojamentos. Se a culpa fosse de algum mau sentimento, de alguma ação malvada, eu me castigaria energicamente. E até para me estimular recordava o exemplo daquela senhora americana que arrancou um olho e cortou a mão, convencida de que esses dois fragmentos do seu corpo estavam estragando a sua alma.

Foi nessa ocasião que me explicaram o valor cabalístico das letras, e a razão por que muitas pessoas mudam de nome, trocando aquele que lhes foi dado por outro em que haja uma combinação de valores mais favorável aos seus destinos.

Todos os conhecimentos têm uma profunda sedução. Quem conseguisse saber tudo ficava igual a Deus. Por isso é que muitos são de opinião que se saiba o menos possível, para não se ter a mesma sorte de Eva, que logo no princípio do mundo estragou o Paraíso com o pecado do saber.

Digo isto porque um tratado de biologia me atrai com a mesma força que um volume de ciências ocultas, e os números e as letras me parecem tão organizados, tão sensíveis, tão vivos, tão poderosos, enfim, como um animal, uma planta, um átomo.

Naturalmente, desmontei o meu nome, peça por peça, calculei, pesei, refleti, devo ter chegado a alguma conclusão de que já não me lembro, e não tenho a impressão de que os meus cálculos fossem assim desfavoráveis. Mas pelo sim, pelo não, como havia uma letra disponível, achei melhor sacrificar essa letra.

Há os que sacrificam os filhos, os carneiros, as aves, e há os que sacrificam o seu coração. Sacrifiquei o meu. Porque eu gostava de todas as minhas letras, fervorosamente. Ter de cortar uma, não foi assim coisa tão fácil como as reformas ortográficas ordenam. Uma letra é um signo, é uma coisa misteriosa que as gerações vêm carregando consigo, modificando de longe em longe, por mão inexperiente, por súbito esquecimento, por ignorância de algum escriba emprestado.

Deu-me um trabalho muito grande, ficar sem essa letra. Quando olhava para o meu nome sem ela, sentia como se me faltasse um pedaço, como se estivesse realmente mutilada, sem a mão ousem o olho. Consolava a letra perdida. Escrevia-a sozinha, do lado, sorria-lhe, contava-lhe coisas, para distraí-la. Tudo era muito infantil e muito triste. A pobrezinha ficava para trás, e dava-me saudade. Recapitulando estas coisas, sinto-me entristecer, e preciso recobrar a minha força de vontade para não alterar outra vez o sobrenome.

Afinal, como último trabalho convincente, estabelecemos este acordo. A letra não ficaria perdida: seria usada nos documentos oficiais, nesses lugares respeitáveis em que a firma é a garantia da nossa pessoa recebendo e pagando os lugares que nos vemos que merecem a consagração e a estima unânimes dos nossos colegas humanos.

Quanto às coisas literárias, essas efêmeras coisas pelas quais vamos morrendo dia a dia, não são assim de tal modo graves que precisem da firma autêntica, daquela firma por que os juízes nos podem perguntar um dia, brandindo um papel pavoroso e fulminante: “Dize, bandido, foste tu que assinaste este documento?” Não, as coisas literárias não chegam a esse ponto. O mais que nos pode acontecer é tirarem o nome que escrevemos no fim e substituírem-no por outro, sem juiz, sem fulminação, sem defesa…

Isto posto, a letra abandonada e eu nos abraçamos ternamente, e nos separamos. Como era uma letra suave, terá querido dizer com o seu romantismo: “Quero apenas que sejas menos infeliz. Acompanhei-te durante tanto tempo! Tiveste tanta dificuldade em aprender a escrever-me… Pensavas com inocência no mistério das letras dobradas… Sentias orgulho, na escola, por essa letra dobrada no nome… Mas talvez eu esteja pesando demais na tua vida. Não fiques triste. Adeus.”

Fiquei muito triste. Faltava-me a letra. Já não era como se me faltasse um pedaço de mim, — mas, um parente, um amigo extraordinário.

A minha vida, porém, mudou tanto que, por mais saudade que me venha dessa letra perdida, não me animo a fazê-la voltar.

E está feita a confissão. Como se vê, uma história longa, que não se pode repetir a cada instante. Principalmente porque é uma história íntima, e ninguém deve cortar as letras do seu nome só por ter visto outras pessoas fazê-lo. E fica explicado para sempre que assino deste modo por motivos sobrenaturais, fantásticos, como quiserem, mas não pela reforma ortográfica, aliás muito cautelosa com os nomes próprios, respeitando-os tanto quanto me parece deverem ser respeitados, principalmente pelos mistérios que dentro deles vão navegando.
Cecília Meireles, A Manhã (27 de dezembro de 1944)

Sem se perder de si mesmo


O velho índio foi encontrado
vagando pela floresta,
aparentemente perdido.
Perguntaram-lhe. Respondeu
cheio de brios: “Perdi
foi minha casa; não consigo
encontrá-la”.
Quanta lição, Senhor.
O homem pode perder sua casa,
sua rua, os rostos que
ama – sem jamais se perder
de si mesmo.

Jamil Snege

O texto que se escreve com as pernas

Anos de leitura de João do Rio me convenceram de que ele fora o inventor de "flanar", versão brasileira do verbo francês "flâner": andar ao léu, passear sem destino. Qual não foi minha surpresa ao mergulhar há pouco na obra do jornalista, político e diplomata Francisco Octaviano (1826-1889) e descobrir que ele já tinha usado "flanar" em 1848, quase 60 anos antes de João do Rio. E por que a surpresa? Porque, para os anais, o autor de "A Alma Encantadora das Ruas", de 1908, fora o primeiro a criar a teoria para a já então velha prática carioca de sair por aí.

Outra surpresa foi constatar que Octaviano pode ter sido também o primeiro cronista. Até então, a palma pertencia a Joaquim Manuel de Macedo, que, em 1851, na revista Guanabara, publicou três textos tidos como crônica. Mas, ao lê-los, não se vêem vestígios do gênero –que, tecnicamente, é uma conversa fiada, um pacto de vento entre o autor e o leitor. Já os de Octaviano, no Jornal do Comércio, entre 1852 e 1854, não deixam dúvida. Foram escritos com as pernas, não com a cabeça.

Macedo, por sua vez, poderia ter sido um pioneiro do flanar propriamente dito, com seu "Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro", de 1862. O problema é que, ao sair por ela, Macedo percorreu-a com olhos de historiador, não de cronista. Como, aliás, voltaria a fazer em "Memórias da Rua do Ouvidor", de 1878, talvez assustado pelo fato de que, naquele ano, mesmo com outros nomes, a rua do Ouvidor já tinha 300 anos.

Há um elo entre flanar e ser cronista. As duas atividades exigem disponibilidade, certa falta do que fazer, um fingir que não se leva a sério. O Rio é pródigo na especialidade –Olavo Bilac, Alvaro Moreyra, Rubem Braga, Elsie Lessa, Antonio Maria e Carlos Heitor Cony foram só alguns dos nossos praticantes do papo furado.

Octaviano já criara em 1847 outro belo verbo, que não pegou: "balzaquear" --entregar-se à imaginação, escrever em pensamento, ser um Balzac sem compromisso. Pensando bem, a receita ideal para ser cronista.
Ruy Castro

Uma livraria em casa

Como estão sempre a chegar novos livros – e só um dia é que me hei-de dar ao luxo de ter estantes vazias à espera de serem ocupadas –, tenho sempre de despromover uns livros velhos.

O problema é que até aqui – tal como o meu avô e o meu pai – tenho seguido o modelo errado, que é o da biblioteca.

Ficam bonitos os livros até ao teto, a forrar todas as paredes, apertadinhos uns contra os outros.

Mas os livros não são objetos decorativos: é preciso tirá-los e abri-los sempre que nos apetece, e poder devolvê-los com facilidade ao lugar onde estavam.

Daí que a coisa mais importante para um livro seja o acesso.

Infelizmente, são poucas as prateleiras que estejam ao nível dos olhos e das mãos. Aquelas que estão perto do chão ou do teto, que precisam de almofadas ou de escadotes, condenam ao esquecimento os livros que contêm.

Como os meus entusiasmos – e, logo, as minhas vontades de leitura e de consulta – mudam todos os semestres, tenho os meus livros todos desarrumados, empilhados em carrinhos e em cima de mesas.

Finalmente percebi: o modelo certo para quem tem muitos livros não é uma biblioteca, mas uma livraria.

Numa livraria, para levar as pessoas a espreitar e comprar, os livros estão acessíveis – muitos deles em cima de mesas com a altura perfeita para a nossa atenção.

Onde estão numa livraria os livros acabados de sair, hei-de pôr os livros que atualmente me entusiasmam – alguns dos quais com muitos volumes, não interessa.

Para as prateleiras mais remotas irão os meus “fundos de catálogo” – ou seja, os livros que menos probabilidade tenho de querer ir buscar.

Para organizar uma biblioteca conforme o entusiasmo, a facilidade de acesso tem de corresponder à apetência de pegar num livro.

Bem sei que isto me forçará a estar sempre a classificar os meus livros conforme as oscilações levianas do meu interesse, mas é a única maneira de ter a minha biblioteca verdadeiramente à mão.

Arrumar é matar e a preguiça leva ao esquecimento.

terça-feira, abril 29

TV utilitária

 


Auto-retrato

É um fulano digamos que intratável, não porque trate mal a gente, pelo contrário, mas por nos deixar sempre hesitantes sobre por onde lhe pegar. Das várias actividades a que sempre se dedicou, qual é a principal? Como julgar as suas contradições, que acabam por se revelar confirmações?

Diz-se indiferente ao que os outros pensem dele, mas sentimo-lo infeliz quando o acham, por exemplo, intransigente ou passam pelo que fez e faz como cães por vinha vindimada. Chega a sofrer com isso, o pobre, não tanto por vaidade ferida como porque, então, talvez não tivesse valido a pena. A velha ideia fixa da utilidade, do dever. Uma seca. Contudo, só muito lá por dentro.

Meão de altura, como o outro, de cabelo mais escasso do que quem quer gostaria de ter, prognatismo muito acentuado, talvez pelo uso do cachimbo a toda a hora durante anos, é afinal um sujeito bem menos austero do que os que o conhecem mal geralmente supõem. Por baixo daquela exigência toda de rigor e de coerência (perante tudo e to­dos, a começar por si próprio), uma criança espreita.

Daí decerto o tal vício maior de gostar de brincar com o lume, ou seja, uma actividade permanente em desafio a si próprio e em senti­dos diferentes, com a mesma paixão ou teimosia: professor (44 anos!), militante político, que continuou a ser, mesmo depois de, por discordâncias de metodologia, se ver ou julgar sozinho, ensaísta de pendor polemizante, ficcionista, poeta – antes e depois de tudo, melhor: em tudo – pintor, agora a tempo inteiro.

Tinetazinha incurável: um desejo de per­feccionismo quase doentio. Escreveu sempre cada página dezenas de vezes, pintou e repin­tou cada uma das suas telas até à saturação. Além das que destruiu, uma montanha. É um chato em certas coisas: come porque tem de ser e só bebe água, detesta demorar-se à mesa, gostando de conviver, lamenta-se de que haja tão pouca gente com que (lhe) valha a pena fazê-lo.

Os historiadores da cultura do futuro (que os de agora estão próximos de mais) terão algumas surpresas – veleidade dele - com uma ou outra coisa que disse ou fez antes de ninguém, muito particularmente na concepção e prática do neo-realismo (um bradar no deserto!), que ajudou a fundar e defendeu até lhe parecer possível e ainda útil fazê-lo. Ag­ora foge quanto pode a refalar no assunto. O repisar enerva-o.

Bibliografia activa, resumida­mente: entre muitos escritos, palestras, entrevistas dês carácter ensaístico, «A Paleta e o Mundo», que teve o Grande Prémio de Ensaio da Sociedade Portuguesa de Escri­tores no ano da publicação do último volume (1962); cinco livros de poesia, desde 1941, in­cluídos no volume «Poesia Incompleta» (1966), a que se tem de acrescentar «Le Feu qui Dort» (1967) e «Terceira Idade» (1982), prémio ex-aequo, da Associação Internacional dos Críti­cos; Literários; três livros de contos: «O Dia Cinzento» (1944), reescrito e reeditado, a partir de 1967, com o título de «O Dia Cinzento e Outros Contos», «Monólogo a Duas Vozes» (1988), um romance: «Não há Morte nem Princípio» (1969); uma pequena «Autobiografia» (1987).

Viajou pela Europa, teve duas ou três doenças graves, morrerá breve ou daqui a muitos anos. A propósito da sua primeira exposição individual de pintura aos 73 anos, terminou uma entrevista na TV desta maneira: «Aos cem anos aqui estarei de novo».

Todavia, de há tempos para cá, começou a dizer-se velho, sobrevivente, etc., porque não consegue fazer tanto quanto quer, passou a detestar deslocar-se e escabuja com a invasão da literatura pelo marketing.

Não perdoa o festim. Que com coisas sérias não se brinca e outros propósitos desactualizados. Mas a tal criança ri-se e lá o vai puxando alegremente.

No catálogo da sua exposição na Nasoni (Out./Nov. de 1989), escreveu isto: «Vou caminhando sem destino e sem repouso. Gostando sempre pouco do que pinto, precisando sempre muito de pintar. Assim foi, certamente assim será. Não ambiciono mais».

Resta saber se sim. O mais prudente é esperar.
Mário Dionísio, Diário de Lisboa (1990)

Isto é simples

Muda é a força (me dizem as árvores)
e a profundidade (me dizem as raízes)
e a pureza (me diz o trigo).

Nenhuma árvore me disse:
“Sou mais alta que todas”.

Nenhuma raiz me disse:
“Eu venho de mais fundo”.

E nunca o pão me disse:
“Não há nada como o pão”.

João Guimarães Rosa

Livro é de todos

É por isso que os livros não vão desaparecer. É impossível. É o único momento em que entramos verdadeiramente na mente de um estranho, e fazendo isso encontramos o que há de comum na nossa humanidade. Então, o livro não pertence só ao escritor, pertence ao leitor também, e juntos fazemos o que ele é.

Paul Auster

Obrigado

Este é um ano de farta colheita de caqui e de um belo outono nas montanhas.

O pequeno porto ficava na extremidade sul da península. Um motorista de uniforme amarelo com a gola roxa vinha descendo do andar de cima da sala de espera dos passageiros, onde havia uma pequena venda de confeitos ordinários. Defronte, um ônibus vermelho o aguardava com sua bandeirinha roxa erguida.

Uma mulher levantou-se, apertando o saquinho de confeitos, e lou ao motorista, que amarrava caprichosamente o cordão dos sapatos.

— Ah! Hoje é a sua vez. Que bom. Deve ser um bom sinal para esta menina ser levada pelo “seu Obrigado”. Talvez ela tenha muita boa sorte.

O motorista olhou a moça que estava ao lado, mas nada falou.

— Ficar adiando sempre não vai resolver, né? E daqui a pouco é o inverno. Eu tenho pena de mandá-la para longe com o tempo frio. Já que tenho que fazer isso, é melhor agora, que o tempo está bom. Assim, eu decidi levá-la.

Acenando com a cabeça, calado, o motorista se encaminha como um soldado e endireita a almofada do seu assento.

— Vovó, sente-se no primeiro banco. Quanto mais na frente, menos balança. Pois o caminho é longo.

A mãe está indo para a cidade onde passa o trem, a quinze ri para o norte, a fim de vender sua filha.

Balançando-se na estrada montanhosa, a moça está com a luz do seu olhar aprisionada pelo ombro reto do motorista. O uniforme amarelo vai se ampliando como o universo nos seus olhos. Através dos ombros, as montanhas se dividem e vão escoando para trás. O carro tem que transpor os dois pontos altos do caminho da montanha.

Alcança a diligência. Esta, encosta na beira da estrada.

Com uma voz clara e límpida, o motorista, numa intrépida continência, abaixa a cabeça como um pica-pau. Encontra-se com a carreta carregada de madeira. A carreta se encosta à beira da estrada.

— Obrigado.

Carroça grande, puxada por um homem.

— Obrigado.

Riquixá.

— Obrigado.

Cavalo.

— Obrigado.

Mesmo que ultrapasse trinta carros em dez minutos, ele não perde suas boas maneiras. Ele não perde essa postura mesmo que percorra os cem ri a toda velocidade. É como um tronco reto de cedro, simples e espontâneo.

O carro, que saíra do porto depois das três da tarde, acende a luz no meio do caminho. Cada vez que se encontra com um cavalo, o motorista sempre desliga a lanterna do carro para o animal. E assim,

— Obrigado.

— Obrigado.

— Obrigado.

Ele é o motorista com melhor reputação entre as diligências, as carroças e os cavalos, nos quinze ri da estrada.

Descendo na penumbra do terminal da praça, a filha sente o corpo balançar e as pernas flutuarem e, cambaleante, ela se apoia na mãe.

— Espere aqui. Fala a mãe, que corre atrás do motorista.

— Olhe, minha filha está dizendo que gosta de você. Eu lhe peço.

Eu imploro. De amanhã em diante, de qualquer modo, ela vai virar brinquedo de homens estranhos. É verdade, não é? Até mesmo uma senhorita da cidade, se viajasse dez ri no seu ônibus...

Ao amanhecer do dia seguinte, o motorista sai da pensão onde pernoitou e vai atravessando a praça com a postura de um soldado. Atrás dele, mãe e filha correm em passos miúdos. O ônibus vermelho que saiu da garagem o aguarda com sua bandeirinha roxa erguida e espera o primeiro trem.

A filha sobe primeiro e, umedecendo os lábios secos, acaricia o couro preto do banco do motorista. Sentindo o frio matinal, a mãe junta as mangas do seu quimono.

— Ai, ai. Vai levar a minha filha de volta? Agora de manhã, ela me chora e você me repreende. Minha compaixão foi o erro. Levá-la de volta eu levo, mas entenda que é só até a primavera, ouviu? Eu vou consentir porque tenho pena de mandá-la para longe numa época fria, mas quando o tempo esquentar eu não posso mais ficar com ela em casa.

O primeiro trem larga três passageiros para o ônibus. O motorista endireita a almofada do seu assento. A moça está com a luz do seu olhar aprisionada no ombro terno do motorista. Através dos ombros, o vento
matinal de outono vai se escoando para trás.

Alcança a diligência. Esta, encosta na beira da estrada.

— Obrigado.

Carroça puxada por um homem.

— Obrigado.

Cavalo.

— Obrigado.

— Obrigado.

— Obrigado.

Ele torna as montanhas e os campos, dos quinze ri do seu percurso, repletos de gratidão e retorna para o pequeno porto, que fica na extremidade sul da península.

Este é um ano de farta colheita de caqui e de um belo outono nas montanhas.
 
Yasunari Kawabata, "Contos da palma da mão"

segunda-feira, abril 28

Lugar seguro em incêndios


 

O Rio de Janeiro continua lendo

No último dia 23 de abril, o Rio de Janeiro foi oficialmente nomeado Capital Mundial do Livro pela Unesco, tornando-se a primeira cidade de língua portuguesa a receber essa distinção. A cerimônia de abertura, realizada no Teatro Carlos Gomes, contou com a presença de autoridades, representantes da Unesco e figuras proeminentes da cultura brasileira, como os escritores Ruy Castro e Conceição Evaristo. Performances artísticas de nomes como Fernanda Abreu, Toni Garrido, Gregório Duvivier e Elisa Lucinda, inspiradas em obras da literatura nacional, deram o tom da celebração, reafirmando a riqueza, criatividade e a diversidade da nossa produção literária.

A escolha do Rio não se deu por acaso. Desde o Império, quando D. João VI desembarcou de Portugal trazendo consigo a Imprensa Régia e a Biblioteca Real — marcos fundadores da vida literária e intelectual do Brasil —, a cidade se afirmou como polo de uma literatura que foi decisiva para a formação da identidade nacional. Escritores como Machado de Assis, Lima Barreto e Euclides da Cunha contribuíram enormemente para a caracterização do Brasil como um país ímpar que então engatinhava. Nas páginas de suas obras projetava-se a alma de um povo com uma cultura também única.


O compromisso do Rio com políticas públicas de incentivo à leitura, vem destes tempos. Até hoje a cidade abriga instituições fundamentais para a memória e o estímulo à leitura, como o Real Gabinete Português de Leitura, a Biblioteca Nacional, a Biblioteca Parque e a Academia Brasileira de Letras. São espaços que guardam o passado e projetam o futuro da literatura brasileira.

A antiga capital do país também se destaca pelo vigor de suas bibliotecas populares e comunitárias, espalhadas por diversas regiões da cidade. Esses espaços cumprem um papel essencial na democratização do acesso ao livro, promovendo atividades culturais, encontros com autores e ações de mediação de leitura que contribuem para a formação de leitores críticos e socialmente engajados. Ao lado delas, resistem com vitalidade as livrarias clássicas do Rio de Janeiro — como a Argumento, a Travessa e a Blooks —, que se reinventaram como polos culturais vibrantes, pontos de encontro de intelectuais, artistas e amantes da literatura. São lugares que mantêm viva a tradição literária da cidade, reafirmando seu compromisso com a leitura e o pensamento.

A literatura brasileira sempre foi uma forma de compreender o país e de questioná-lo — e o Rio de Janeiro é, há séculos, um dos principais palcos dessa narrativa coletiva. A nomeação como Capital Mundial do Livro é, portanto, um gesto simbólico e pragmático: fortalece a cultura do livro, apoia o mercado editorial e estimula a formação de novos leitores.

Durante o período da distinção, o Rio sediará uma série de eventos literários, incluindo a Bienal do Livro e uma edição especial do Prêmio Jabuti, que será entregue no Theatro Municipal da capital fluminense e irá destacar as melhores iniciativas de fomento à leitura na cidade. Essas iniciativas visam projetar o livro e a leitura como pilares de cidadania e desenvolvimento humano. O apoio da Unesco, aliado ao esforço da Secretaria Municipal de Cultura, tem sido essencial nesse processo. Merece reconhecimento especial o trabalho do secretário Lucas Wosgrau Padilha, cuja articulação institucional e sensibilidade cultural têm sido decisivas para a concretização das ações previstas.

É fundamental que a educação esteja integralmente inserida nesse movimento, como destacou o secretário municipal Renan Ferreirinha em entrevista à jornalista Míriam Leitão, na Globonews. Por isso, integrar escolas e educadores ao calendário de atividades é estratégico para ampliar o impacto das ações, formar leitores permanentes e gerar pertencimento entre os jovens. A literatura não deve ser um privilégio, mas um direito.

Nos palcos e nas páginas, estavam nomes como Machado de Assis, Guimarães Rosa, Jorge Amado, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Raquel de Queiroz e Mário de Andrade — vozes clássicas que moldaram nosso imaginário. Mas também os novos e vigorosos talentos da literatura contemporânea: Itamar Vieira Jr., Jefferson Tenório, Aline Bei, Tereza Romão, Fabrício Corsaletti e Rosa Freire d’Aguiar. A literatura infantil, base de tantas trajetórias leitoras, foi representada por Monteiro Lobato, Ziraldo, Chico Buarque e Mauricio de Sousa.

O Rio de Janeiro, com sua beleza e complexidade, oferece agora ao mundo uma vitrine viva da literatura brasileira. Que este ano seja marcado por uma efervescência literária capaz de inspirar outras cidades e fortalecer a presença da nossa palavra no cenário internacional. A Capital Mundial do Livro é também, simbolicamente, a capital de uma nação que precisa, mais do que nunca, redescobrir-se através da leitura.

Sant’Ana do Mar

Não existe, é um arquipélago imaginário ali para o Atlântico, a partir do qual o professor Eurico Lemos Pires propõe uma utopia. Gosto imediatamente da ideia de alguém, depois dos oitenta anos de idade, escrever o seu primeiro romance, e gosto que aconteça para corresponder a uma espécie de apelo, ou prova de sapiência maior, para a construção de uma sociedade melhor, mais justa. Não estamos nada em tempo de acreditar seja no que for, sobretudo no que disser respeito a acreditarmos uns nos outros, mas também já me passa pela cabeça que um destes dias alguém vai ser capaz de mobilizar a maioria para uma decência nunca vista. Um Gandhi ou um Mandela elevados à última potência. A utopia, afinal, parece ser o único caminho viável para a humanidade, tudo o resto, da razão ao coração, já falhou demasiado. A utopia é a única espécie de empreitada que, por maior ou menor consciência, pode mobilizar o colectivo. No condado de Sant’Ana do Mar a cidadania é obrigatória. A cada indivíduo corresponde uma representatividade concreta que o impede de se abster da participação e, em última análise, da consciência. Eurico Lemos Pires é muito empenhado na passagem desta ideia-chave, que acaba por ser a tese ideológica que justifica todo o propósito do livro. Um apelo a uma certa obrigatoriedade da opinião e sua divulgação, a obrigatoriedade do associativismo e sua elevação a modo enformador da sociedade. Importa que se alcance um poder poliárquico, algo que propenda para um certo governo virtuoso, capaz de se justificar em cada gesto ou decisão, efectivamente legitimado, legitimado a todo o tempo.


Claro que subjaz a esta ficção uma crítica às estruturas que hoje encontramos na realidade europeia e que, ditas democráticas, não representam absolutamente os cidadãos e não são por estes reconhecidos nem cabalmente entendidos. Este romance é uma proposta de mudança de paradigma. Mais do que procurar qualidades literárias, ele procura inquietar, provocar, para que sejamos deslocados da inoperância ou do conforto de onde se perpetuam os vícios e as injustiças.

O professor Eurico dizia-me que haveria de publicar as suas ideias num artigo em Inglaterra. Precisava muito de deixar expressas algumas ideias que pudessem realmente interferir nos modelos aplicados no futuro. Não vai perder nada e também não ganhará. Terá apenas a satisfação de se expressar, como quem, exactamente, procura a participação, essa qualidade de se representar a si mesmo e contar. O professor sorria como com a expectativa de uma malandrice. Quando sabemos algo que desarruma os poderes instituídos, sentimo-nos malandros. A coragem de o denunciar traz essa satisfação irresistível perante a qual revivemos. Depois, o professor Eurico explicava-me que casara há sessenta anos e que namorara mais sete. Estava preocupado com a esposa. Se não soubesse da esposa, também já pouco importava saber das outras coisas todas. A sociedade, na verdade, faz-se dessas prioridades. O amor tem de estar sempre em primeiro lugar. Ele não dizia amor, dizia: se não souber da minha mulher vou embora, não sei como, mas vou para casa cuidar dela.

Na fisiatria do Hospital de Santo António as utopias para o mundo são todas atropeladas por estas realidades mais simples. A demora da visita, ou a ausência da visita certa, descompõe tudo. Volta-se ao início. Primeiro, há que salvar o coração, que parece sempre mais difícil do que salvar o mundo.

Entretanto, o professor Eurico teve alta e estará em casa servido de afectos. Fico, por isso, à espera da notícia da publicação do seu artigo, a ver se esta Europa bafienta se regenera. Aos poucos, com sonhos de bons homens, excelentes homens que, no acumulado do pensamento, procuram ensinar que valeria a pena termos feito tudo de outra forma. Afinal, reconhecermos o lugar de cada um é bem possível e não há modo de isto ser pacificamente viável se não for assim.

Quando chegar aos oitenta e seis anos e me levarem a curar um braço ou uma perna, quero ser corajoso o suficiente para me denunciar. Se estiver certo de saber melhor do que sempre fiz, quero sonhar com algo maior, ainda que necessariamente seja algo que se pensa para depois do meu tempo, para depois do meu testemunho. Como um pensamento que, profundamente generoso, deixámos à consideração de quem também está de boa fé.
valter hugo mãe, Revista 2, (2014)

Saudade

A minha roça eu troquei
pelas luzes da cidade.
Nesse dia eu comecei
meu plantio de saudade!

Tadeu Hagen

Em defesa dos livros, até os de colorir

Desta vez é preciso anistiar Bolsonaro. Há quem esteja atualizando uma piada sobre livros de colorir e escalando o capitão como protagonista, uma associação que até faria sentido pois em seu desgoverno ele andou reclamando dos livros editados pelo MEC, que teriam palavras demais, desenhos de menos. A história, porém, pertence a um militar anterior.

A primeira vez que ouvi a anedota ela era estrelada pelo general João Figueiredo, uma espécie de primeiro Bolsonaro, um cavalariço escalado por seus colegas para em 1985 encerrar a ditadura aos coices. “Me esqueçam!”, vociferou o general ao deixar o cargo. Quarenta anos depois, é impossível cumprir sua ordem porque a piada em que está inserido lhe faz toda justiça e permanece mais atual do que nunca.

Certo dia lá estava o Figueiredo naquele estilo que lhe era próprio, sempre pê da vida – dizia preferir cheiro de cavalo ao do povo. Foi então que alguém lhe perguntou o que acontecera, por que, sua excelência, parecia estar mais mal-humorada do que nunca? O general desabafou:

“Um ladrão entrou na biblioteca do palácio e, olha só que sacanagem!, roubou meus dois livros”, choramingou. “Um deles eu nem tinha terminado de colorir.”


Com o verde-oliva pontilhado de galões dourados e montado num cavalo alazão de antolhos azuis, o general saiu de cena, mas os livros de colorir continuam entre nós, ursinhos sempre poderosos. Eles agora estão em papel de alta qualidade, quase uma tela de pintura, e devem ser preenchidos pelos degradês de uma fábrica de canetinhas caríssimas. O general morreria de inveja das novas cores. As preferidas da minha neta Vera, de 10 anos, são “canela quente”, “lavanda sonhadora” e “dark blue light”.

Na lista geral de livros mais vendidos no país, publicada semana passada pelo site Publishnews, os três primeiros colocados são esses de colorir fofuras tranquilizadoras, desenhadas pela americana Abbie “Bobbie” Goveia, a criadora da marca Bobbie Goods. Os outros sete são de autoajuda, entre eles alguns da série “Café com isso”, “Café com aquilo outro”. Sim, estes últimos são livros ao estilo tradicional, escritos com palavras, mas todas elas também têm o fito ternurinha de tornar a vida mais colorida, mais tipo assim “sunshine yellow” ou “vivid pink”.

“Um país é feito de homens e livros”, disse Monteiro Lobato, e ele concordaria que numa estante cabem tanto os de unicórnios pintados com o azul-da-seda-que-envolve-a-maçã e também os que ajudam o leitor a superar o medo de não conseguir (“Mais esperto que o diabo”, sexto lugar na lista dos mais vendidos). Livros não devem ser submetidos a hierarquias de valor literário, indicados por um generalato de sabichões ou julgados pela cor da canetinha. E já que o parágrafo começou com uma citação, agora fecha com uma de Castro Alves: “Bendito o que semeia/ Livros à mão cheia/ E manda o povo pensar”.

Eu acho que todo livro ajuda (obrigado Machado, Annie Ernaux), todo livro é um arco-íris (obrigado Sabino, Hemingway), e aproveito o ensejo para saudar a nova Capital Mundial do Livro, a cidade do Rio de Janeiro. Que seus ladrões continuem de moto atrás dos celulares alheios e, por favor, não façam como o do general – deixem em paz os livros que me colorem a vida.

domingo, abril 27

Manhã

 


Reflexão em tempo de guerra

E se o homem tivesse aprendido,
ao longo dos anos que passaram,
que todo o esforço despendido,
em guerras e lutas que massacraram

os campos, populações e riquezas,
e, com tudo isso, nada ganharam,
a não ser fome, pestilência e pobreza,
as quais, por todo o lado, devastaram

os ganhos que antes tinham valido
uma vida de paz e bem murada
– não seria bom tê-lo aprendido?

Será que uma vida ordenada
e calma é difícil de haver?
Estará além do nosso poder?

Eugénio Lisboa, "Poemas em tempo de guerra suja"

O sapo verde

Aquele amarelo que apareceu um dia em nossa terra, ou por outra, aquele japonês, pois não sei se um chim daria o mesmo desfecho ao caso, dedicava-se a trabalhos de papel. Com incrível celeridade, dobrava, redobrava, multidobrava, premia aqui, puxava dali, e pronto: saía um pato, uma cesta, um avião, um urso, um homem sentado, uma mulher dançando, um navio, todas as coisas que há no mundo. Algumas dessas habilidades, ele as fazia às vezes em câmara lenta, para que a gente pudesse aprender. Mas era impossível guardar de memória o segredo do sapo verde, o maravilhoso sapo verde que comportava nada menos de sessenta e quatro dobras e que dava um salto quando lhe tocavam no lombo. Comprei um e fui para casa desmanchá-lo. Ficou-me nas mãos um quadrado de papel, inextrincavelmente entrecruzado de vincos. Como não consegui fazer a operação contrária, isto é, rearmar o sapo, dali a dias encomendei outro.

— Hoje não poder — disse ele.

— Por quê?

— Por acabar papel verde.

— E por que não faz um sapo branco?... ou um sapo azul... ou um sapo vermelho... ou…

Mas o seu quase imperceptível sorriso de comiseração cortou-me a linda sequência colorida.
Mário Quintana, "Sapato Florido"

A fraternidade, onde?

Saí e cambaleei por essas ruas a ver viver... Voltei para casa com os olhos enodoados de gente mesquinha e insignificante. Homens - sacos de digestões com máscaras de desejos moles -, mulheres com violinos quebrados nos olhos, moços de calças parvas, e, sobretudo, inúmeros perfis de aceitação.

Nenhum sentimento de fraternidade. 
José Gomes Ferreira, "Dias comuns"

Trem...

Não sei que filósofo foi que disse que a palavra queijo só tem sentido para alguém que já tenha comido um queijo. É óbvio. Se a pessoa nunca viu, cheirou e comeu um queijo, ela não terá ideia alguma do que é um queijo, ao ler ou ouvir a palavra queijo . Pois eu, esquecido dessa lição elementar de filosofia, tentei ensinar queijo a quem nunca havia experimentado um queijo... Tentei levar minhas netas a viajar pelo mundo da minha infância, mundo no qual elas nunca estiveram. Falei sobre casas de pau a pique, fogões de lenha, minas d’água, monjolos, fornos de barro, galinhas botando ovo, “casinhas” e penicos, cheiros de capim-gordura e bosta de vaca, assombrações... Queria levá-las a passear comigo pelo mundo da minha infância, na roça. Queria que fossem minhas companheiras. Convidei-as, então, a entrar na minha máquina do tempo. Minha máquina do tempo é feita com memória e palavras. Entrando na memória, eu voo para o passado.

Escrevendo as minhas memórias, eu levo outros a voar comigo. Foi isso que Proust fez ao escrever Em busca do tempo perdido. Eu estava tentando voltar ao tempo perdido, para que ele não se perdesse. Acontece que acreditei demais no poder das palavras. Como poderiam as minhas netas experimentar o meu mundo se elas nunca haviam estado nele?

Quem entendeu o queijo não foram minhas netas, meninas. Foram os velhos que na meninice haviam vivido em mundos parecidos com o meu. Escrevi, e eles viajaram na minha máquina de tempo. Haviam comido o mesmo queijo que eu. E aí desatamos a conversar...

Lembro-me da Dina, de 86 anos, que vivia reclusa num asilo de crentes onde era proibida a entrada de qualquer coisa do “mundo”. A Dina era um pássaro engaiolado. Preso o corpo, sua alma voava... Começou então, entre nós, uma longa conversa sobre o passado. O meu passado, o único passado sobre o qual eu podia escrever, a Dina usou como um tapete mágico que a levava ao passado que era só dela. E escrevia – muitas cartas, cheias de segredos (os guardas da gaiola não podiam saber; se ficassem sabendo, cobririam a gaiola com um pano preto...). E ela voltou aos dias de menina, morando na beirada do rio, tomando conta do forno de barro, cuidando para que os pães não queimassem, vendo a piracema, os peixes prateando sob a luz da lua cachoeira acima... E assim foi, até que ela ficou repentinamente encantada, justo quando lhe preparávamos uma festa de aniversário. Nunca se sabe ao certo... É possível que, em algum lugar misterioso, onde o tempo tangencia a eternidade, a Dina menina de 86 anos esteja cuidando de pães e olhando os peixes prateados... Essa cena merece a eternidade.

Como a Dina, foram muitos os velhos que voltaram à sua infância viajando na minha máquina do tempo... Resolvi, então, que de agora em diante vou continuar a voar na minha máquina de tempo sabendo que meus companheiros serão os velhos, aqueles que, quando falo queijo, entendem o que digo por já haverem comido queijo. Um passado que se compartilha é um sacramento de solidariedade. Quem se lembra do passado com emoção nunca sentirá tédio no presente.

Volto ao meu passado. Mas, voltando ao passado, volto também às palavras que se usavam lá. Não posso falar de Minas usando as palavras dos gramáticos. A gramática da gente mineira é outra que não a dos livros. A língua é coisa marota. As palavras não param de mexer. E se põem a dançar de um jeito que os livros proíbem. Os gramáticos ficam bravos. Não sabem o que fazer com a língua viva porque o seu trabalho é, precisamente, mumificar as palavras, para que elas não se mexam. Trabalho inútil. As palavras não obedecem. Elas são como as crianças. Não ficam quietas. São malcomportadas. Em Minas até os escritores se riem da gramática. Duvidam? Leiam Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Adélia Prado. A vida não respeita as regras dos gramáticos. Já ouvi um homem, numa pastelaria, pedir: “Me dá um pastéis...” Epa, epa, tudo errado. Não está certo começar uma frase com pronome oblíquo. Além do que, não é certo misturar o singular com o plural. “Um pastéis?” Talvez para aquele mineiro matuto o pastel fosse coisa tão divina que merecesse ser nomeado no plural.

Tem um erro de gramática que me dá arrepios. Quando eu ouço as pessoas dizendo: “Ele pediu pra mim ir lá...”; ou: “Quero silêncio pra mim dormir”, eu penso que o Tarzã se intrometeu demais no português, porque era o Tarzã que não falava “eu”: “Mim ama Jane, mim vai pescar...” Claro, esse era o Tarzã antigo, da roça. Os Tarzãs modernos estudaram em Oxford, falam português escorreito, castiço, clássico. Mas não tem jeito, e já me conformei. Onde já se viu “mim” fazer coisas? “Mim” não faz nada. Errado. “Mim” faz coisas. O povo decretou. É o jeito do povo falar que faz a língua. Eu mesmo me revolto contra o Aurélio.

Escrevi: “os anús fazendo seus ruídos característicos...” A revisora me informou que a grafia certa da ave negra é anus, sem acento. Pode ser. Mas não quero que meu leitor se confunda. Por via das dúvidas e a bem da clareza, eu continuo a escrever anús, para que ninguém confunda o passarinho com o orifício terminal dos intestinos.

Tudo isso a propósito da palavra trem, que identifica os mineiros tanto quanto uai. Trem é palavra coringa. Serve pra tudo. “Tira esse trem daí...” Quem ouve entende. Trem é um objeto qualquer. Ou pode ser um conjunto de objetos. Por exemplo: as coisas que se possuem. “Vou guardar os meus trem...” O curioso dessa palavra é que, à semelhança do pastel singular falado no plural, trem vai sempre no singular, mesmo que seja plural.

Eu vivia na roça. Na roça todos os trem eram de pau. Pau mesmo, e não madeira. Madeira é palavra de gente da cidade. Houve a idade da pedra lascada, a idade da pedra polida, a idade dos metais... Por que não a idade do pau? Pois devia. Dou testemunho: na roça não era nem pedra nem metal: era pau. Na roça pau era, de fato, “pau pra toda obra”. Talvez essa seja a origem dessa expressão. A casa era de pau a pique. O fogo se fazia com paus de lenha. Tudo nos carros de bois era feito de pau (menos os bois...). A água se bebia numa vasilha de pau chamada cuia. As cercas se faziam com um pau oco chamado bambu. E até os canos se faziam com um pau chamado embaúba. Panela, lamparina, pratos e canecas – coisas de metal eram seres de um outro mundo.

Aí aconteceu aquele dia quando o meu pai nos disse que íamos nos mudar para Lambari. E, para me explicar como era Lambari, ele disse apenas: “Lá tem trem de ferro...” E foi assim que, num único dia, eu dei um salto de milhares de anos. Saí do mundo dos “trem de pau” e me mudei para o mundo do trem de ferro... Saí da roça. Me mudei para a civilização. Depois conto mais.

Rubem Alves, "Se eu pudesse viver minha vida novamente"

sexta-feira, abril 25

Parede de 'pássaros'



A alegre década de 20

Suponhamos, leitor, que você acorde um dia quatro décadas atrás, no período entre 1920 e 1930 que sucedeu à Primeira Grande Guerra e onde a disponibilidade e falta de critério eram gerais: os “Gay Twenties”, como ficou conhecida nos Estados Unidos a era do jazz, tão fabulosamente vivida e narrada pelo romancista Scott Fitzgerald.Suponhamos que você tivesse uma amiga, ou melhor, uma “amiguinha” rica e quisesse fazer um programa com ela. Iria encontrá-la em casa metida num peignoir de cetim ciré, sandálias de pompom, piteira em riste a queimar um Abdoula, envolta em ondas de Mitsoukou ou Tabac Blond, do perfumista Caron. Ela estaria, naturalmente, num divã coberto de almofadas, e na testa da jovem “melindrosa”, você notaria um “pega-rapaz”, ou antes, uma “belezinha”, feita com uns poucos fios de cabelo.

Você ficaria, leitor amigo, como é natural, entre surpreso e encantado, sobretudo quando notasse que, ao sorrir, a sua diva mordia a pontinha da língua num tique faceiro. E mais encantado ainda quando, ao pedir um uísque, visse a empregada voltar com um coquetel rose, delicada beberagem à tona da qual estaria boiando, qual leve batel, uma pétala de rosa...

Depois de tomar uns oitenta desses, você ouviria a sua amiguinha adverti-lo contra os perigos de uma “carraspana”. Mas qual! Estando habituado ao uísque falsificado da maioria das nossas boates e bares, você nem estaria sentindo o anunciado “pifão”. Pelo contrário. Animadíssimo, colocaria uma “chapa” no gramofone e tiraria sua amiguinha para dançar um ragtime. Em seguida, mirando ao espelho a sua elegância – calça estreita de flanela, paletó azul-marinho cintado, camisa listada, gravata borboleta, sapato camouflage e chapéu de palhinha você, com uma graciosa pirueta de satisfação, convidaria sua amiguinha para uma saída:

– Vamos ao chá dançante do Palace Hotel?

E ela, com um muxoxo:

– Não, hoje eu preferia muito ir ver o Bataclan. Dizern que é “supimpa”.

Dado a coisas mais finas que o vaudeville ou o teatro de revista, você ainda tentaria convencer o seu "pedaço de mau caminho" a ir, em vez, à festa do Fluminense ouvir os Corsarinos e sua jazz band: um negócio do "balacobaco".
Mas a menina não estava nada para coisas muito formais.

Em vista do quê, você, leitor, estirando-se numa otomana, à luz do abajur cor bleu (como bem caraterizava o fox-trot “Hindustão”) você pegaria com um gesto displicente os poemas de Hermes Fontes, ou o La Garçonne de Victor Margueritte – e perdido entre bibelôs, esperaria que sua amiguinha se arrumasse “com uma rapidez de Fregoli”, conforme anunciara, referindo-se ao famoso transformista.

Mas essa arrumação tomaria tempo. Primeiro, desfazer os papelotes e desbastar a gaforinha – coisa que levava usualmente uma meia hora. Depois, enfiar as meias fumées, os sapatos mordorés, o chapéu canotier e passar no pescoço o renard argenté (uma magra raposinha a morder o próprio rabo). Só então a sua linda vigarista, depois de um último retoque ao espelho da entrada, iria à vida com você para diverti-lo um pouco à custa de uns magros “caraminguás”.

De volta ao tempo presente, leitor, você acharia que não era má a ideia de uma saída para ir ao 36 ver o Caymmi, ou ao Sacha's para gozar do refrigerado. Aí você passaria a mão no telefone, discaria um número, e quando a voz feminina lhe respondesse do outro lado você diria assim:

– Como é, ó vigarista? Mete aí um bom pano em cima de ti e vamos enfrentar um escurinho musicado. Não, nada de botar banca pra cima de mim. Eu te manjo. É isso mesmo. Vamos lá tirar a ficha da moçada. A gaita anda curta para o scotch mas dá para molhar a garganta com uma “loura”. Menina, hoje estou enxugando o fino! O couvert já está conversado. Você sabe que o papai mora no assunto. Taca peito.
Vinicius de Moraes, "Para viver um grande amor"

Cidade

Sou um efémero e não demasiado descontente cidadão de uma metrópole tida por moderna porque elude qualquer gosto conhecido tanto nos recheios e no exterior das casas como no plano da cidade. Aqui não detectaríeis os traços de algum monumento de superstição. A moral e a língua estão reduzidas à sua expressão mais simples, finalmente! Estes milhões de pessoas que não têm necessidade de se conhecer conduzem tão igualmente a educação, o ofício e a velhice, que o curso da sua vida deve ser várias vezes menos longo do que o descoberto por uma estatística louca para os povos do continente. Da mesma maneira que, da minha janela, vejo espectros novos rolando através do espesso e eterno fumo de carvão — nossa sombra dos bosques, nossa noite de Verão! —, novas Erínias, diante do meu cottage que é a minha pátria e todo o meu coração uma vez que tudo aqui a tal se assemelha —, a Morte sem lágrimas, nossa ativa filha e criada, um Amor desesperado, e um lindo Crime que pia na lama da rua.

Jean-Arthur Rimbaud, "Obra Completa"

O teu livro

Deixa-me dizer-te, meu caro, pode bem acontecer que vás através da vida sem saber que debaixo do teu nariz existe um livro no qual a tua vida é descrita em todo o detalhe. Aquilo do qual nunca te deste conta antes, vais relembrando aos poucos, assim que comeces a ler esse livro, e encontras e descobres… alguns livros tu lês e lês e não lhe consegues encontrar qualquer sentido ou lógica, por mais que tentes. São tão “espertos” que não consegues perceber uma palavra daquilo que dizem…


Mas esse livro que talvez esteja logo debaixo do teu nariz, tu lês e sentes-te como se tivesses sido tu próprio a escrevê-lo, tal como – como é que hei-de dizer ? – tal como tivesses tomado posse do teu próprio coração – qualquer que este possa ser – e o tivesse virado do avesso de forma que as pessoas o consigam ver, e descrito com todos os detalhes – tal e qual como ele é! E como isto é simples, meu Deus! Porquê, eu próprio poderia ter escrito este livro! Porquê, de facto, porquê é que eu próprio não escrevi este livro!
Fiódor Dostoiévski, "Gente Pobre"

Contar de Abril

Contarás de Abril o assombro, o desassossego, as súbitas visões de beleza longamente sonhadas, o assanhamento da hora vesperal; o renascer, meu e teu. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco, as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril instantes serenos, salivados de paz, o perfil de casas, as ruas docemente nossas que rimam connosco , as ternuras vagabundas, a utilidade dos gestos, o murmúrio discreto e comovido. Contarás de Abril os gritos, as imprecações, as cóleras, o idioma ressurecto na fraternidade de frases efusivas, no estertor. Contarás de Abril aquele haver viagem, aquele cheiro antigo de chuva de infância, a peca sombra, o chouto curto, o bêbado de rua que te assustou, temulento, a frugal manhã. Contarás de Abril o lado esquerdo da madrugada; cíclicos, os sismos: o chão em fissuras laceradas; de vagarosa, a capa da terra a recobrir o oco, as galerias naturais do ódio, onde rebramia o mar, sobre o qual haviam colocado o pinho e pedra e reconstruído a cidade, longa história de uma frustração. Contarás de Abril, os passos. Contarás de Abril , os sons , ínsitos na paisagem nocturna, nas betesgas. Contarás de Abril que me viste trajado de briche e holandilha, seteira ao ombro, num baixel de antigamente, soletrando palavras felizes, sem direcção nem sentido, como tudo o que é feliz. Contarás de Abril, aos meus filhos, filhos teus, que os meus olhos míopes, ardidos, urbanos, ficaram cheios de um ofício de dizer coisas singelas, humildes e absurdas: como amor, liberdade. Contarás de Abril os idos, e os que voltaram; os que ficaram e ficam. Contarás de Abril as pequenas pilhas de palavras, armazenadas numa necessidade que inventei; e as nossas almas ledas e limpas; e os braços que se estendem a outros abraços; e a cordialidade de anotarmos em nome, um número, uma flor; e os balaios sem reticências de mágoas, cheios, os balaios, de trissos de aves, de pássaros remotos de que ignorávamos a voz ou havíamos esquecido o toque e a fímbria. Contarás de Abril que na nossa terra já não nos dói a velhice e que os rios são todos nossos e íntimos e claras e livres. Contarás de Abril a espessura mágica, o punho reflexo, o dia de água, a lágrima, a vontade de sermos e de estarmos, o límpido grito, a forma inconsútil, o beijo proliferante, o vermelho e a brisa, as bambilenas vagantes nos sopros, o livor das coisas, a maravilha discreta de assear a vida, o caminhar, os semideiros, os rostos nesta dócil pausa e neste imenso perdão. Contarás de Abril as casas de mil sóis, a imponderável descoberta dos sussurros, a brancura inadiável da perseverança, o resplendente varar dos dias, a feira alvoraçada das horas. Contarás de Abril a visão e o visto. Contarás de Abril as mãos dadas. Contarás de Abril o renascer da essencial frescura.

Contarás de Abril.

Contarás , meu amor.
Baptista-Bastos

quinta-feira, abril 24

Refresco para qualquer estação


 

Casas amáveis

Vocês me dirão que as casas antigas têm ratos, goteiras, portas e janelas empenadas, trincos que não correm, encanamentos que não funcionam. Mas não acontece o mesmo com tantos apartamentos novinhos em folha?

Agora, o que nenhum arranha-céu poderá ter, e as casas antigas tinham, é esse ar humano, esse modo comunicativo, essa expressão de gentileza que enchiam de mensagens amáveis as ruas de outrora.

Havia o feitio da casa: os chalés, com aquelas rendas de madeira pelo telhado, pelas varandas, eram uma festa, uma alegria, um vestido de noiva, uma árvore de Natal.

As casas de platibanda expunham todos os seus disparates felizes: jarros e compoteiras lá no alto, moças recostadas em brasões, pássaros de asas abertas, painéis com datas e monogramas em relevos de ouro. Tudo isso queria dizer alguma coisa: as fachadas esforçavam-se por falar. E ouvia-se a sua linguagem com enternecimento. Mas, hoje, quem se detém a olhar para rosas esculpidas, acentos, estrelas, cupidos, esfinges, cariátides? Eram recordações mediterrâneas, orientais: mitologia, paganismo, saudade. (Que quer dizer saudade? E para que e o que recordar?)

Os jardins tinham suas deusas, seus anões; possuíam mesmo bosques, onde morariam ecos e oráculos; e pequenas cascatas, pequenas grutas com um pouco d'água para os peixinhos. Possuíam canteiros de flores obscuras - violetas, amores-perfeitos - para serem vistas só de perto, carinhosamente, uma por uma, de cor em cor. (Hoje, estes ventos grandiosos apagam tudo.)

E, lá dentro, as casas tinham corredores crepusculares, porões úmidos, habitados por certos fantasmas domésticos, que de vez em quando se faziam lembrar, com seus pálidos sopros, seus transparentes calcanhares, suas algemas de escravidão.
As famílias abrigavam cortejos de mortos.

E havia as claraboias. Luz como aquela? Nem a do luar! - uma suavidade de cinza e marfim, a maciez da seda, o fulgor da opala. As casas eram o retrato de seus proprietários. Sabia-se logo de suas virtudes e defeitos. Retratos expostos ao público: nem sempre simpáticos, mas geralmente fiéis.

Agora, os andaimes sobem, para os arranha-céus vitoriosos, frios e monótonos, tão seguros de sua utilidade que não podem suspeitar da sua ausência de gentileza.

Qualquer dia, também desaparecerão essas últimas casas coloridas que exibem a todos os passantes suas ingênuas alegrias íntimas - flores de papel, abajures encarnados, colchas de franjas - e sujas risonhas proprietárias têm sempre um Y no nome, Yara, Nancy, Jeny... Ah! Não veremos mais essas palavras, em diagonal, por cima das janelas, de cortininhas arregaçadas, com um gatinho dormindo no peitoril.

Afinal, tudo serão arranha-céus. (Ninguém mais quer ser como é: todos querem ser como os outros são.)

E eis que as ruas ficarão profundamente tristes, sem a graça, o encanto, a surpresa das casas que vão sendo derrubadas. Casas suntuosas ou modestas, mas expressivas, comunicantes. Casas amáveis.
Cecília Meireles

Meu ideal seria escrever…

Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse — “ai meu Deus, que história mais engraçada!”. E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria – “mas essa história é mesmo muito engraçada!”.


Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse – e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse – “por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!”. E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago — mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: “Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina”.

E quando todos me perguntassem – “mas de onde é que você tirou essa história?” – eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: “Ontem ouvi um sujeito contar uma história…”.

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
Rubem Braga, “A traição das elegantes”

O meu avô

O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar, explicava.

Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia. Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim um mistério tremendo.
Valter Hugo Mãe, "As mais belas coisas do mundo"

Carta de um defunto rico

“Meus caros amigos e parentes. Cá estou no carneiro n° 7…, da 3ª quadra, à direita, como vocês devem saber, porque me puseram nele. Este Cemitério de São João Batista da Lagoa não é dos piores. Para os vivos, é grave e solene, com o seu severo fundo de escuro e padrasto granítico. A escassa verdura verde-negra das montanhas de roda não diminuiu em nada a imponência da antiguidade da rocha dominante nelas. Há certa grandeza melancólica nisto tudo; mora neste pequeno vale uma tristeza teimosa que nem o sol glorioso espanta… Tenho, apesar do que se possa supor em contrário, uma grande satisfação; não estou mais preso ao meu corpo. Ele está no aludido buraco, unicamente a fim de que vocês tenham um marco, um sinal palpável para as suas recordações; mas anda em toda a parte.

Consegui afinal, como desejava o poeta, elevar-me bem longe dos miasmas mórbidos, purificar-me no ar superior — e bebo, como um puro e divino licor, o fogo claro que enche os límpidos espaços.

Não tenho as dificultosas tarefas que, por aí, pela superfície da terra, atazanam a inteligência de tanta gente.

Não me preocupa, por exemplo, saber se devo ir receber o poderoso imperador do Beluchistã com ou sem colarinho; não consulto autoridades constitucionais para autorizar minha mulher a oferecer ou não lugares do seu automóvel a príncipes herdeiros — coisa, aliás, que é sempre agradável às senhoras de uma democracia; não sou obrigado, para obter um título nobiliárquico, de uma problemática monarquia, a andar pelos adelos, catando suspeitas bugigangas, e pedir a literatos das ante-salas palacianas que as proclamem raridades de beleza, a fim de encherem salões de casas de bailes e emocionarem os ingênuos com recordações de um passado que não devia ser avivado.

Afirmando isto, tenho que dizer as razões. Em primeiro lugar, tais bugigangas não têm, por si, em geral, beleza alguma; e, se a tiveram era emprestada pelas almas dos que se serviram delas. Semelhante beleza só pode ser sentida pelos descendentes dos seus primitivos donos.

Demais, elas perdem todo o interesse, todo o seu valor, tudo o que nelas possa haver de emocional, desde que percam a sua utilidade e desde que sejam retiradas dos seus lugares próprios. Há senhoras belas, no seu interior, com os seus móveis e as costuras; mas que não o são na rua, nas salas de baile e de teatro. O homem e as suas criações precisam, para refulgir, do seu ambiente próprio, penetrado, saturado das dores, dos anseios, das alegrias de sua alma; é com as emanações de sua vitalidade, é com as vibrações misteriosas de sua existência que as coisas se enchem de beleza.

É o sumo de sua vida que empresta beleza às coisas mortais; é a alma do personagem que faz a grandeza do drama, não são os versos, as metáforas, a linguagem em si, etc., etc. Estando ela ausente, por incapacidade do ator, o drama não vale nada.

Por isso, sinto-me bem contente de não ser obrigado a caçar, nos belchiores e cafundós domésticos, bugigangas, para agradar futuros e problemáticos imperantes, porque teria que dar a elas alma, tentativa em projeto que, além de inatingível, é supremamente sacrílego.

De resto, para ser completa essa reconstrução do passado ou essa visão dele, não se podia prescindir de certos utensílios de uso secreto e discreto, nem tampouco esquecer determinados instrumentos de tortura e suplício, empregados pelas autoridades e grão-senhores no castigo dos seus escravos.

Há, no passado, muitas coisas que devem ser desprezadas e inteiramente eliminadas, com o correr do tempo, para a felicidade da espécie, a exemplo do que a digestão faz, para a do indivíduo, com certas substâncias dos alimentos que ingerimos.

Mas… estou na cova e não devo relembrar aos viventes coisas dolorosas.

Os mortos não perseguem ninguém e só podem gozar da beatitude da super-existência aqueles que se purificam pelo arrependimento e destroem na sua alma todo o ódio, todo o despeito, todo o rancor.

Os que não conseguem isso — ai deles!

Alonguei-me nessas considerações intempestivas, quando a minha tenção era outra.

O meu propósito era dizer a vocês que o enterro esteve lindo. Eu posso dizer isto sem vaidade, porque o prazer dele, da sua magnificência, do seu luxo, não é propriamente meu, mas de vocês, e não há mal algum que um vivente tenha um naco de vaidade, mesmo quando é presidente de alguma coisa ou imortal da Academia de Letras.

Enterro e demais cerimônias fúnebres não interessam ao defunto; elas são feitas por vivos para vivos.

É uma tolice de certos senhores disporem nos seus testamentos como devem ser enterrados. Cada um enterra seu pai como pode — é uma sentença popular, cujo ensinamento deve ser tomado no sentido mais amplo possível, dando aos sobreviventes a responsabilidade total do enterro dos seus parentes e amigos, tanto na forma como no fundo.

O meu, feito por vocês, foi de truz. O carro estava soberbamente agaloado; os cavalos bem paramentados e empenachados; as riquíssimas coroas, além de ricas, eram lindas. Da Haddock Lobo, daquele casarão que ganhei com auxílio das ordens terceiras, das leis, do câmbio e outras fatalidades econômicas e sociais que fazem pobres a maior parte dos sujeitos e a mim me fizeram rico; da porta dele até o portão de São João Batista, o meu enterro foi um deslumbramento. Não havia, na rua, quem não perguntasse quem ia ali.

Triste destino o meu, esse de, nos instantes do meu enterramento, toda uma população de uma vasta cidade querer saber o meu nome e dali a minutos, com a última pá de terra deitada na minha sepultura, vir a ser esquecido, até pelos meus próprios parentes.

Faço esta reflexão somente por fazer, porque, desde muito, havia encontrado, no fundo das coisas humanas, um vazio absoluto.

Essa convicção me veio com as meditações seguidas que me foram provocadas pelo fato de meu filho Carlos, com quem gastei uma fortuna em mestres, a quem formei, a quem coloquei altamente, não saber nada desta vida, até menos do que eu.

Adivinhei isto e fiquei a matutar como que é que ele gozava de tanta consideração fácil e eu apenas merecia uma contrariedade? Eu, que…

Carlos, meu filho, se leres isto, dá o teu ordenado àquele pobre rapaz que te fez as sabatinas por “tuta-e-meia”; e contenta-te com o que herdaste do teu pai e com o que tem tua mulher! Se não fizeres… ai de ti!

Nem o Carlos nem vocês outros, espero, encontrarão nesta última observação matéria para ter queixa de mim. Eu não tenho mais amizade, nem inimizade.

Os vivos me merecem unicamente piedade; e o que me deu esta situação deliciosa em que estou, foi ter sido, às vezes, profundamente bom. Atualmente, sou sempre…

Não seria, portanto, agora que, perto da terra, estou, entretanto, longe dela, que havia de fazer recriminações a meu filho ou tentar desmoralizá-lo. Minha missão, quando me consentem, é fazer bem e aconselhar o arrependimento.

Agradeço a vocês o cuidado que tiveram com o meu enterro; mas, seja-me permitido, caros parentes e amigos, dizer a vocês uma coisa. Tudo estava lindo e rico; mas um cuidado vocês não tiveram. Por que vocês não forneceram librés novas aos cocheiros das caleças, sobretudo, ao do coche, que estava vestido de tal maneira andrajosa que causava dó?

Se vocês tiverem que fazer outro enterro, não se esqueçam de vestir bem os pobres cocheiros, com o que o defunto, caso seja como eu, ficará muito satisfeito. O brilho do cortejo será maior e vocês terão prestado uma obra de caridade.

Era o que eu tinha a dizer a vocês. Não me despeço, pelo simples motivo de que estou sempre junto de vocês. É tudo isto do

José Boaventura da Silva.

N.B. – Residência, segundo a Santa Casa: Cemitério de São João Batista da Lagoa; e segundo a sabedoria universal, em toda a parte. – J.B.S.”

Posso garantir que transladei esta carta para aqui, sem omissão de uma vírgula.

Lima Barreto

quarta-feira, abril 23

Medicação diária

 


Do livro falemos

Um livro torna-me muito mais livre.
Um livro abre-me imensas portas.
Antes do livro, era semilivre.
Sem livro, as portas estavam tortas

e não abriam. Mas os livros abrem
portas, mesmo se tortas, porque sabem
endireitar tudo o que está torto
e ressuscitar tudo o que está morto.

Porque o livro tem vida e saber
e, muitas vezes, tem até sabor.
O saber dá-nos imenso poder

e o sabor dá-nos muito prazer!
O livro sabe, pode e contenta,
condimentado com sal e pimenta!

Eugénio Lisboa

Livros andantes

Quem possui muitos livros e tem o hábito de, à noite, visitá-los, percorrendo as estantes para encontrar determinado título, aprende que os livros são danados para “andar”. É que quem gosta de livro e vai durante a noite atrás de um específico na estante, ao se deparar com outro que atrai sua atenção, coloca este fora da prateleira para no dia seguinte buscá-lo. E começa a fazer isso com tantos que esquece o lugar onde cada um estava. Assim ao encontrar determinado livro fora do seu lugar fica com a impressão de que ele caminhou.

José Sarney, "As baleias das crianças"

Bartolominha e o pelicano

Vivia em ilha ventada, onde mais ninguém. Chamava se Bartolominha, era minha avó favorita. O lugar dela era mais arejado que o céu, exposto ao longe e ao esquecer. Seu marido, Bastante António, sempre fora o faroleiro. Exercia aquelas luzes, noite adentro, sem que nenhuma vez tenha faltado no seu alto posto. 
Mesmo sem salário durante consecutivos anos, ele se manteve em fiel atividade. Esqueceram se dele ali, os dos serviços centrais, lá onde o dinheiro brilha e a gente apodrece. Impassível, sem se queixumar, o avô Bastante se impunha a si mesmo, infalível, nessa missão de iluminar as grandes rochas da costa. Nunca por seu lapso barco algum desfaleceu de encontro à rebentação.

De pouco lhe valeu tanta diligência: Bastante António morreu quando subia a enorme escada em caracol. Seu corpo subia mais rápido que o coração. Num segundo, essa intermitente luz de dentro deixou de lhe iluminar o peito. A notícia chegou nos anos depois quando um ocasional barco passou por nossa cidade.

A família, de pronto, se fez ao mar. Havia que resgatar Bartolominha. A avó não podia ficar assim sem amparo naquela tão distante solidão. Acompanhei os restantes nessa missão de recuperar nossa idosa parente. Muito quem chorava era minha mãe, sua dileta filha. Durante a viagem de barco ela se inconsolava: quem sabe a avó, entretanto, já desistira de viver e não tinha tido quem a enterrasse?

Desembarcámos com o peito enrodilhado, olhando a medo os recantos do sítio. Suspiramos alto quando Bartolominha veio às rochas, envolta em sua capulana, a mesma que eu nela sempre recordava. Quando lhe falamos em sair dali, ela se contrafez. Minai, viéramos buscá-la? Pois que fôssemos na mesma via de regresso, que ela dali não arredava. Argumentou meu pai que ela não podia viver isolada de tudo, em lugar tão despertencido de gente. Falou meu tio que ali não chegava nem desembarcava notícia. Minha mãe acrescentou muitas lágrimas, com alma entalada na garganta.

Bartolominha respondeu, sem palavra, apontando a campa junto ao farol. Depois, se afastou e ficou de costas olhando o mar. Era como se, em silêncio, nos convocasse. Alinhamos com ela, perfilados frente ao oceano. Que queria ela dizer, assim muda e queda? Usava o oceano como argumento? Meu tio ainda insistiu:

—Quem lhe arranja sustento?

Nos mostrou, então, o pelicano. Era um bicho que ela criara desde pequenino. A ave se afeiçoara, mais doméstica que um familiar. A pontos de ir e vir e, todos os dias, lhe trazer peixe para ela se refeiçoar.

—Tenho que ficar aqui, regar o farol. Foi o meu Bastante que me pediu para eu não deixar emagracer este farol.

Regressamos sem a conseguir demover. Eu fiquei com o pensamento roendo me o sono. Durante noites fui roubado ao descanso. Podia eu deixar o assunto assim? Não, eu não podia desistir.

E voltei a visitar a ilha. Demorei me ali uns tantos dias. Juntei argumento, aliciei convite. A avó que viesse que eu lhe daria guarida e aconchego em minha nova casa. Mas nada. O mesmo sorriso desdenhoso lhe vinha aos lábios. Depois lhe sugeri que viesse comigo viajar por terras lindas.

—Só quero viajar quando for completamente cega.

Estranhei. Nem respondi, esperando que mais se explicasse. E sim, ela continuou:

—É que eu vivi tudo tão bonito que só quero visitar lugares que já estejam dentro mim.

Arrumei a vontade. A velha senhora tinha raízes fundas. Em desfecho de conversa, eu lhe disse que, quando fosse, no dia seguinte, deixaria um barco amarrado nas árvores da praia. Para o que desse. Ela encolheu os ombros, enjeitando de vez a minha teimosia.

Nessa noite, jantamos em silêncio sob o peso de uma não dita despedida. Bartolominha proclamou o seu cansaço e anunciou que se ia retirar para seu quarto. Fizera do farol o seu aposento. Ela subiu os primeiros degraus e, antes de desaparecer no escuro, chamou o pelicano. Deitava se com o bicho. Dormiam, inclusive, na mesma cama. Ele lhe estendia as asas e ela adormecia abraçada ao passarão. Dizia que assim seu corpo aprenderia a arte de voar.

—Uma dessas tardes vou com ele, por esses aforas.

Deitei me olhando as estrelas como buracos no fundo preto de um tecto. Me deixei adormecer mas logo fui despertado por um estranho pesadelo. Na realidade, eu não sonhava com nada. Nem mesmo entendia o porquê desse meu impulso ao erguer me da esteira. Era como se eu fosse guiado por vozes, escuro adentro. Me dirigi à campa e raspei as areias com os pés. Descobri então que o buraco era raso: a sepultura não tinha fundura nenhuma. Quando me debrucei sobre os restos vi os ossos que se esfarelavam. Eram ossos de pássaro. E um muito volumoso bico.

O meu coração bateu, desordenado. Subi as escadas, tão veloz que as tonturas quase me roubaram do mundo. Não cheguei a tempo. Junto ao patamar do farol ainda toquei uma pena branca, esvoadiça. Fiquei na varanda com o vento me vestindo a alma. Num certo momento, ainda pensei vislumbrar Bartolominha revoando como se dançasse na fugaz intermitência do farol. Desde essa noite sou eu o faroleiro da ilha do avô Bastante. E aceno quando passam as grandes aves.

Mia Couto, "Na berma de nenhuma estrada"