sábado, abril 19

A terra vertical

A mitologia conta que, quando encontraram a ilha da Madeira, não puderam adentrar a mata de tão espessa. Por canto nenhum se subia à ilha, cheia de alturas à vista larga e, contudo, sem modo de pousar os pés. Também conta que, esticados nos barcos, os homens de então foguearam a natureza. Circundaram como entenderam e foguearam por toda a parte. Sete anos mais tarde, quando aconteceu de alguém voltar a encontrar nossa terra, a ilha ainda ardia. Os fumos faziam grandeza nos promontórios junto às águas, as chamas subiam para depois das nuvens vindas do interior das maiores caldeiras, onde as gargantas secas dos vulcões tinham nutrido floras exuberantes. Diz-se que, de tão bela a ilha e suas plantas, tão belas flores aqui se nasciam, ainda voavam pássaros lastimando o incêndio. Pássaros maravilhosos. Muitos ter-se-ão extinguido por lhes doer de gritar e por lhes doer de tristeza. Tantos terão acabado como labaredas em fuga mar fora, pequenos cadáveres incandescentes que se sepultaram nas águas.
Quando os homens de outrora puseram pé na ilha, ainda assim se perguntavam que caminho havia daqui para algum lugar, porque tudo subia sem parar, e muita terra é como apenas paredões onde se projectam sombras e aquilo que cai. Quiseram, de qualquer modo, povoar. Foram chegando do reino com avidez de mais fortuna, e o mar era abundante, e o chão voltava lentamente a florir, a reimaginar cada uma de suas flores, colorindo tudo, subindo e descendo e perfumando.

Diz-se que a ilha já inventaria suas flores só pela memória, sem semente nem água. E, àquele tempo, foi lançando pelo vento um chamado para bichos alados que foram voltando. A nossa ilha propende para a primavera. E as flores não têm vertigem. Os homens e as mulheres que foram ficando, para qualquer sustento que nossa terra pudesse dar, tiveram de mudar para pés de cabra. Pessoas de terras íngremes, terras verticais, sem medo do tamanho dos olhos, da vastidão que qualquer caminho faz diante do corpo, muito para cima, muito para baixo. Nada fica para a frente, senão a lisura infinita do mar. Como pode ser liso e imenso o mar, que se vê quieto, igual a uma pedra arrepiada em quase todos os dias do nosso ano.

A mitologia diz que podem ter sido cem anos de incêndio. Muito para lá de sete. Muito mais tempo, como nas histórias lendárias que ninguém sabe quem inventou. De qualquer jeito, o que ficou nas convicções dos ilhéus foi que mais se sobe e desce do que se avança. E mais se faz um madeirense na combustão do que na friúra. Por causa disto, quando se sofre, é sobretudo por destino que se pensa sofrer. O que implica uma bravura inesgotável, mas também, por defeito, uma resignação que obriga a aguentar. O ilhéu aguenta. Sete ou cem anos.

*

O Buraco da Caldeira, o esconso sombrio onde nossa casa foi feita, fica num cotovelo antes da Ribeira Brava. No Sítio do Jardim, acima da Chamorra, na freguesia de Campanário. Em mil setecentos e noventa e oito caiu do imenso rochedo do Ilhéu, no meio do nosso mar, uma pernada que o desfigurou. Antes que caísse, dizem os livros, era igual à torre dos sinos. Era um ilhéu igual ao cimo de uma igreja que estivesse afundada. O nome da nossa freguesia vem daí. Dessa igreja afundada que um abalo qualquer destruiu.

Quem passa estrada regional fora, a dado momento, uma altura de encosta sobe muito para lá dos olhos e vai para dentro, onde já não podem entrar carros. Naquele cotovelo, na verdade, para mais subir ou mais descer, já só por pé de cabra. Um pé depois do outro, fincado como der nas veredas que levam até à praia diante do Ilhéu, ou até ao cimo onde moramos nós. Não se pode subir para depois de onde é nossa casa, a casa dos Pardieiros. A rocha é bastante mais alta, mas não há vereda. Já é só lugar de pássaro. Ali para cima, é lugar de pássaro, não se caminha. Até para ser quem éramos, já nos conferiam uma metade de asa. Mas, na verdade, qualquer madeirense tem uma metade de asa.

Quando amanheci, espantado, o céu era rosado de mil vezes mil flamingos que migravam. Não existem flamingos na nossa ilha e nem devem existir mil vezes mil flamingos cor-de-rosa no mundo inteiro. Nem acredito que flamingos voassem tão alto para cima de encostas como estas. Era certamente a visão de um milagre qualquer. Um olhar extasiado que viesse de dentro. Estaria a ver o meu próprio interior, que chegava à revelia do que é possível e à revelia da tristeza que queriam atribuir ao nascimento de meu irmão. E eu levantei meus braços como se pudesse colher os flamingos, comecei a gritar de euforia. Aves belas eram aves felizes, faziam uma mancha imensa no céu que parecia florir mais do que nosso chão. Eu chamava meu pai e chamava minha mãe e ninguém vinha ou ninguém me ouvia, porque talvez eu sonhasse, talvez não estivesse a ver nem a gritar de verdade. Mas eu gritei. Queria que todos chegassem às suas portas e vissem como já a cobrir o mar ia gigante um povo voador lindo, tão lindo, um povo de pássaros que voara por nossas casas só para nos maravilhar, porque a vida fazia maravilha. Fazia sempre maravilha.

Quando os flamingos eram mais nada no horizonte, quando não havia bulício algum, nenhum bater de asas, entrei. Fui saber de meus pais em redor de Pouquinho e pedi: posso pegar meu irmão, nosso santo. E minha mãe me disse os bons dias e cobriu os olhos para não chorar e não chorou, porque eu imediatamente afirmei: vou cuidarde ti, meu irmão. Vais aprender tudo o que faz urgência na nossa vida aqui ao dependuro desta encosta. Vais nadar comigo por toda a volta do Ilhéu, vais escurecer a pele no calhau e vais ficar forte. Muito mais forte que os homens do mar. Porque tu vais saber tudo e vais ser esperto. Quem sabe coisas fortalece para depois do ferro. Fica bom para mandar no mundo. E eu comecei a rir. Queria rir. E prometi que lhe contaria tudo sobre os pardais, os gatos-bravos e os torrões que atirávamos aos poços. Ele saberia de como se faziam as fisgas e porque haveriam os estrangeiros de falar palavras diferentes. Prometi que Pouquinho haveria de ir aos pêros, aos tabaibos e às bêberas, e certamente ia gostar de pitangas tanto quanto eu. Nasciam pitangas pelo nosso mato, caminho abaixo. Ninguém as plantava ou cuidava. Simplesmente apareciam. Eram por ali sem preço nem fim. Muito do que se comia era abundância da mata da ilha, e as famílias seguiam colhendo para saciarem fomes, que faltava nenhuma fome na Madeira. As bocas nem falavam como deviam por se abrirem com o vazio do estômago, a dor de certa morte à espera. A fome é uma certa morte à espera.

Naquela manhã, o meu pai quis apertar-me no seu abraço mas eu senti que era difícil. Ficou atrapalhado e precisava de sair para fabricar. Trabalharia cheio de hesitações, distrações, muitos medos e alguma vergonha. A descer para as hortas nos nicos de lavra que tínhamos, o meu enorme pai estava emudecido e de pouca fé. Eu não saberia o que fazer. Mas julguei que melhoraria. Confiei que melhoraria. E então jurei que passaram mil vezes mil flamingos cor-de-rosa por sobre nossas cabeças. Juro. Eu disse. Eram tantos que o sol atravessava por brechas como se estivesse roto o céu. A minha mãe respondia: filho, a mãe não sente valor no corpo. Traz um bocado de pão, que tu és bonito.

De todas as vezes que fazia o que era pedido ou esperado, eu era bonito. Não havia melhor coisa para ser.

*

Veio logo cedo o padre Estêvão para lamúrias e rezas. Fora impedido por lonjuras no dia anterior. Mas sabia de Pouquinho e estava cheio de palavrinhas cândidas para motivar a família à recuperação. Padre Estêvão era deitado a salvações e chegara cansado da subida, com seus agrados prejudicados, meio sem ar e cheio de sede. Eu fui cuidar da água e fui cuidar de mais pão, e pousei tudo na camilha para que se servisse, de onde estava sentado numa cadeira almofadada com Pouquinho ao colo dizendo ideias muito bíblicas. A minha mãe agradecia-lhe tanto. Era toda grata aos padres porque acreditava muito, como todos nós, que intercediam perante Deus. Teriam modo de andar para dentro e fora da transcendência a oficiar assuntos de almas. Eram tão importantes, os padres, eram fundamentais para o sentido extremo da vida. E ele perguntou: buzico, e teu pai. Eu respondi: fabrica, meu pai fabrica as hortas, senhor padre Estêvão. E minha mãe pediu: chama teu pai. Que venha abençoar-se da presença do senhor padre, diz-lhe que veio ver o menino nosso. Fui ao precipício e apupei: uuuuuuh, paizinho, venha ao padre. Ao fundo, depois da casa da senhora Agostinha do Brinco, mas antes da casa da senhora Luisinha do Guerra, que fica mesmo acima da estrada, o meu pai ergueu a cabeça e parou de fabricar para se levantar. Começou logo a levantar-se na vereda porque, embora a sobrevivência fosse elementar, tinha a cabeça parada na aflição que havia em casa, e mais valia que estivesse em casa para se afligir de perto.

*

Com dez anos de idade, eu já cozinharia quase tudo. Era habituado ao fogo e às facas. Não se dava muito tempo à infância. Ser-se pequeno precisava de prestar serviço, tinha de se atarefar as crianças para que as famílias não sucumbissem às dificuldades, que eram quase todas as mesmas por toda a parte. As pobrezas e os temores repartiam-se como por justiça democrática. Não havia muita gente excluída de um destino assim. Cozinhar era cumprir uma infância útil, para ser decente e ter amanhã.

Metidos por dentro do Buraco da Caldeira, na casa mais subida e mais pobre, éramos bastos de nossas fazendas e uma levada vinha rente ao nosso telhado com a água mais limpa. Da levada, sem qualquer desafio, descíamos a água necessária e era generosa até para chuveirar os banhos que sabiam tão bem no tempo do verão. Tratado destas competências, eu fui a mando do almoço para se convidar o padre à sopa e a uma perna de frango. Padre Estêvão nunca ali vinha. Era uma visita tão importante que eu não poderia falhar nos temperos nem haveria de deixar que suspeitasse que desprezávamos o que Deus nos trazia à mesa. Meu pai, querendo aproximar-se do padre, mas também querendo garantir que o almoço se faria com requinte, andava quarto e cozinha a espiar e a dar instruções. Dizia: vigia, tu não ponhas senão dois grãos de sal. Vigia, tu desceste água da manhã. Por me fazer tantas encomendas, eu nem sempre o escutava e perguntava: como é.

Para as pessoas pobres dos recônditos da ilha, que o padre entrasse em casa, subido de meia hora a pé pela encosta desde a estrada, era igual a vir o corpo de Cristo do tempo da Páscoa. O próprio corpo de Cristo naquela cruz de beijar, a suar de estafa e sede. Haveria de estar Deus e os santos inclinados à sua varanda para saber com que ternura lhe receberíamos o funcionário. Sobre meus ombros recaía tal responsabilidade. Mas de meus ombros se levantava também a força. Meu pai dizia: Paulinho, à tarde, fabricamos juntos, que é preciso puxar dos dois lados para passar o ferro naquele chão. E eu respondi: sim, senhor meu pai. Senti-me bonito. Cozinhei e sorri.

Pouquinho, de quando em vez, choramingava. Muito ligeirinho sem maldade. Tinha fome. Amamentava com qualquer minutinho. Era tão pequenino que devia encher com uns pingos de leite. A seguir, dormia. Padre Estêvão dizia que o crio ainda não tinha pretensão do mundo. Estava em negação. Devia ser verdade. Pouquinho levou muitos dias a abrir os olhos. Não era normal. Ficou mais de uma semana com eles fechados. Pensámos até que ele só veria para dentro. Talvez cegasse. Mas não era verdade. Certamente ficou demorado a ver para dentro, sim, antes da contingência de ver para fora e cegar para o interior, como acontece com todas as pessoas, uma a uma.

Quando estávamos a almoçar, todos gabando o sabor e bendizendo muitas sortes, chegaram vozes de mais abaixo, até mais abaixo da casa da senhora Agostinha, que apupavam por ali qualquer súplica. Meu pai foi acudir para saber que era. Pela rocha num eco vinha o som daquelas vozes que falavam de cachorros. Uns cachorros que fugiram. Bem se escutava, mesmo da mesa na cozinha de onde não me deixaram levantar e onde padre Estêvão repetia a sensatez bíblica que me devia ajudar. E eu prometia cumprir. Cumpriria tudo, mas queria saber de que cachorros se falava ali para fora. Coitados. Ou seriam perigosos. Talvez mordam as pessoas e os bichos domésticos. Talvez tenham fome. Alguns cachorros carregavam os piores espíritos. Pensavam em matar. Matavam tudo quanto pudessem e devoravam até tocos de árvores. Roíam mais que toupeiras e ratazanas.

Como o padre não se calava de tanta dedicação bíblica, fizemos uma oração à espera que meu pai voltasse a entrar. Suspendemos a refeição. Não pude escutar mais nada. Dizer palavras sagradas impunha que as pensasse por inteiro. Uma a uma, cada uma dita para ser sentida. Quem reza sem pensar está a oferecer-se ao diabo, deixa que a boca o traia, usa-a sem paixão. Fora como me ensinaram. Quem reza sem pensar faz o mesmo que trincar o dedo ao invés do pão. Padre Estêvão sabia de coração orações grandes. Nunca mais acabavam. Meu pai, que descera a ver que fazer às súplicas que por ali se gritavam, demorava. A comida esfriava e eu já sabia que meu cozinhado ficaria mal visto. Gostaria de deixar de ser impaciente, mas rabiava. Tinha uma infância aguda. Sofria de infantilidade drástica, máxima. Não era por ser à deriva das ideias, era por ter tantas ideias e tão poucos recursos e autoridade sobre mim mesmo. Tudo em mim se ajeitava a dominar o mundo. Mas minha condição era a de uma subalternidade absoluta. Minha idade subalterna passava lenta diante da urgência. Estava demasiado a acontecer para que soubesse ficar parado à espera. Minha mãe dizia: Paulinho, tira o cotovelo da mesa. Paulinho, não se balançam as pernas assim. Eu procurava aquietar-me, igual a parar o próprio coração de bater. Minha natureza era a do movimento. Quase sempre me movia antes de saber para onde ou por que razão. A cabeça nunca era mais rápida do que os nervos no corpo. A cabeça esperava razões e explicações, o corpo seguia a vertigem. Era um animal ativado pela simples evidência de pulsar.
Valter Hugo Mãe, "Deus na escuridão"

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