Tinha catorze anos quando, em Lourenço Marques, num fim de tarde, durante as férias grandes, isto é, de inverno, meu pai me trouxe, para me alimentar o vício da leitura, um livro de formato robusto, que se intitulava Os Melhores Contos Americanos e se inscrevia numa série que dava pelo nome de Antologias Universais. Entre outros títulos de autores mais conhecidos que ali figuravam, um me saltou aos olhos e ao espírito, pela sua ameaça latente: “Os Assassinos”. Era seu autor um desconhecido: Ernest Hemingway. Outros, igualmente estranhos, o acompanhavam: Faulkner (“O Funeral de um Negro”), Saroyan (“Setenta Mil Assírios”). Todos estes contos representaram, para mim, naquele tempo, um considerável alarme estético. Literalmente, desarrumaram-me, deixaram-me sem saber o que pensar de tudo aquilo. João Gaspar Simões, o director editorial e o responsável pela colecção e pelo volume, avisava, desde logo, em termos um tanto vagos mas suficientemente inquietantes, quanto do “projecto” do autor americano: “a purificação da narrativa de todos os elementos não essenciais a ela.” O conto, por via do título, prometia ao adolescente romântico que eu era baldes de acção, mas tudo quanto ali encontrava era um diálogo porfiado, seco, agressivo, brutal, ameaçando tudo, mas conduzindo aparentemente a algo que ficava, para sempre, fora do meu campo de visão. Muito barulho para nada? Nem por isso: ficava-se literalmente esmagado, desligado de vez de não sei quantas ilusões de vida e de arte. É que era aquela uma arte seca, descascada, despojada de artifícios e de adjectivos, curtamente declarativa e, como muito mais tarde observaria o escritor E. L. Doctorow, “uma arte rigorosa de grande poder compressor”. O autor de “The Short Happy Life of Francis Macomber” – conto magistral, implacável e horrorosamente revelador – trazia à narrativa moderna uma dentada forte e inapagável, embora o seu enfoque e o seu processo não fossem de aplicação ilimitada. Como observava o citado Doctorow, “ele era inquestionavelmente um génio, mas era-o daquela espécie que publicita os seus próprios limites.” Por outras palavras Hemingway não era Henry James nem poderia aspirar a ser Proust ou Thomas Mann. Mas o seu estilo tenaz, anti-literário era, como observará Anthony Burgess, no seu admirável e compacto livro dedicado ao autor de A Moveable Feast, “uma música nova e reconhecida como tal.”
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Em Havana, Hemingway está omnipresente. É o grande ícon cultural, o inevitável caça-turistas, os quais atravancam a Bodeguita Del Medio, no Empedrado, onde o escritor ia beber, com regularidade, os seus “mojitos”. Na Calle Obispo, encontra-se também, no seu extremo ocidental, o bar Floridita, onde o autor de Death in the Afternoon ia beber, entre o fim da manhã e o meio da tarde, aquela dúzia de daiquiris duplos, cuja confecção ajudara a aperfeiçoar (aos quais acrescentava um largo copo cheio, que levava consigo, “for the road”). O daiquiri “aperfeiçoado” leva hoje, para turista ver, o nome do escritor. Terminada a libação, ia para casa ler, conversar, ver, de vez em quando, algum filme: tinha em casa um projector, com o qual revia, uma vez por outra, o único filme extraído de obra sua, que realmente estimava: The Killers, de Robert Siodmak, com Burt Lancaster, Ava Gardner e Edmond O’Brien, no elenco. Eis, nas próprias palavras do escritor, um resumo da sua vida em Havana:” Tive sempre sorte, a escrever em Cuba... Mudei-me de Key West para cá em 1938 e aluguei esta finca e comprei-a, finalmente, quando se publicou Por Quem os Sinos Dobram. É um bom lugar para trabalhar porque está fora da cidade e encravado numa colina... Levanto-me cedo quando o sol nasce e ponho-me a trabalhar e quando termino vou nadar e bebo um copo e leio os jornais de Nova Iorque e de Miami. Depois do trabalho pode-se ir pescar ou praticar tiro aos pombos, pela tarde. Mary [a quarta mulher] e eu lemos e ouvimos música e vamos deitar-nos. Algumas vezes vamos à cidade ou a um concerto. Outras, a uma peleja ou ver um filme e, a seguir, ao Floridita.”
Na magnífica Finca, que legou, por testamento, ao povo cubano, tudo se conserva modelarmente intacto e acarinhado: parece ainda habitado, com os donos apenas temporariamente ausentes. Ampla, arejada, cheia de livros bem arrumados – nove mil exemplares, fora os que terão ficado pelo caminho. Garcia Marquez, que lhe dedicou um livro, manipulou com amorosa minúcia a biblioteca e ali terá encontrado nas margens dos livros (lidos e anotados) certa observação crítica, no mais puro hemingwayês: “Pura merda de elefante”. Foi também Garcia Marquez quem, ao contemplar a sapateira preservada na Finca, falou nos “seus grandes sapatos de morto”.
Na minha imaginação, nunca vira a Finca tão ampla e cercada por um jardim tão vasto e generoso, Neste, debaixo de um telheiro, imobiliza-se para sempre, o Pilar que, pilotado pelo inseparável Gregorio Fuentes (Grigorine) se fazia ao mar, para pesca graúda e, ocasionalmente, para dar caça aos submarinos alemães... Ali, em Cuba, de algum modo, Hemingway foi feliz, escrevendo. Porque, numa carta de 1940, ao seu amigo e editor Charles Scribner, dizia: “Tenho de escrever para ser feliz”.
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Eugénio Lisboa
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