quarta-feira, abril 16

Luanda

Tinha mais de dois meses a chuva não caía. Por todos os lados do musseque, os pequenos filhos do capim de novembro estavam vestidos com pele de poeira vermelha espalhada pelos ventos dos jipes das patrulhas zunindo no meio de ruas e becos, de cubatas∗ arrumadas à toa. Assim, quando vavó adiantou sentir esses calores muito quentes e os ventos a não querer mais soprar como antigamente, os vizinhos ouviram-lhe resmungar talvez nem dois dias iam passar sem a chuva sair.

Ora a manhã desse dia nasceu com as nuvens brancas — mangonheiras∗ no princípio; negras e malucas depois — a trepar em cima do musseque. E toda a gente deu razão em vavó Xíxi: ela tinha avisado, antes de sair embora na Baixa∗, a água ia vir mesmo.

A chuva saiu duas vezes, nessa manhã.


Primeiro, um vento raivoso deu berrida∗ nas nuvens todas fazendo-lhes correr do mar para cima do Kuanza∗. Depois, ao contrário, soprou-lhes do Kuanza para cima da cidade e do Mbengu∗. Nos quintais e nas portas, as pessoas perguntavam saber se saía chuva mesmo ou se era ainda brincadeira como noutros dias atrasados, as nuvens reuniam para chover mas vinha o vento e enxotava. Vavó Xíxi tinha avisado, é verdade, e na sua sabedoria de mais velha custava falar mentira. Mas se ouvia só ar quente às cambalhotas com os papéis e folhas e lixo, pondo rolos de poeira pelas ruas. Na confusão, as mulheres adiantavam fechar janelas e portas, meter os monas∗ para dentro da cubata, pois esse vento assim traz azar e doença, são os feiticeiros que lhe põem.

José Luandino Vieira

∗ cubata — habitação feita de restos de materiais de construção; barraco, casebre.
∗ mangonheiro — preguiçoso, lento; malandro, vadio.
∗ Baixa — parte baixa da cidade de Luanda; centro comercial.
∗ berrida — corrida. Dar barrida — dar uma corrida (em alguém); afugentar, afastar com violência; expulsar.
∗ Kuanza — principal rio de Angola; nasce no planalto do Bié e deságua ao sul de Luanda.
∗ Mbengu — rio de Angola, a norte de Luanda.
∗ mona — criança.

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