sábado, setembro 5

De um caderno cinzento

“Como não é possível, infelizmente, ver o futuro, não sabemos até que ponto — no mais profundo sentido — pertencemos ainda à Idade Média.” (Jung)

Escritor é aquele que aprende a todo momento de qualquer pessoa.

“Joguei o verso nobre aos cães negros da prosa.” (Victor Hugo)

O estranho, o imprevisível, é o próprio homem: que não é bom, está sozinho e espera.

Se A acredita em Deus, se B não acredita em Deus, se C não sabe se Deus existe, isso nada é para mim. A existência de Deus e a não existência de Deus estão fora do meu alcance; apenas emocionalmente, intuitivamente, irracionalmente, afetivamente, humanamente, posso adivinhar a esperança de Deus, do mesmo modo que emocionalmente, intuitivamente etc., posso, em contrapartida, adivinhar o desespero da ausência de Deus ou a orfandade cósmica ou o ser-em-nada. E a isso chamo esperança-desespero ou condição humana.

Do alpendre no 1 vejo a vaidade; do alpendre no 2, o orgulho; do no 3, a vida depois da minha morte; do alpendre N vejo os séculos; do alpendre Y vejo a finitude do sistema solar… (O show só funciona na lucidez de certas madrugadas.)

Tenho uma única superstição e chega: viver dá azar.

Brasil Brésil Brazil Brasul Brasol Brasal Braçal Bachsil Barsil Abrasil Brasalho Braúsa Brothsil Brasell Cabrasil Pobresil.

Aos 74 anos morre Morandi. Nunca desejou ir a Paris; achava que vender seus quadros por mais de duzentos dólares era furto. Seu amor: o entretom surdo; seu mundo: a copa e a cozinha à luz dos crepúsculos; sua arte: conseguiu pintar o silêncio.


De um poeta japonês: “Meu amor é como a relva oculta no recesso da montanha: embora se alastre, ninguém o sabe”.

Heine teve duas paixões na vida: as mulheres bonitas e a Revolução Francesa. Stendhal dizia ao fim da vida que só lhe restavam dois prazeres constantes: Saint-Simon e espinafre.

Os anjos, bons e maus, não são invisíveis; nossa vista é que é fraca.

O casamento é uma lenta intervenção cirúrgica que tem o poder de separar duas criaturas cruel e desesperadamente agarradas uma à outra.

Não sabemos nada de nada. Mas preste atenção: nem mesmo chegamos a saber que não sabemos nada de nada.

Todas as mulheres, fiéis ou não, aguardam em febre a volta de Ulisses.

Todos os homens percebem o todo: o artista percebe também, ou de preferência, os detalhes.

— Se a gente aos quarenta anos ficasse maduro de todo…

— Sim…

— Seria a plenitude, nem dor, nem prazer, a plenitude espiritual

ou mental, como você quiser.

— E não é?

— Quase. Infelizmente, pelo menos no meu caso e no da maioria, há certas partes para sempre verdes e outras irremissivelmente passadas.

Estou pagando imposto de renda como um milionário, isto é, muito pouco.

Tinha dezessete ou dezoito anos quando o trem de Minas parou numa noite chuvosa na estação de Nova Iguaçu, e fiquei a ouvir um saxofone tocando um choro num clube popular ali perto, e, com uma súbita profundidade absurda, estúpida, adivinhei, esmagado, o resto de minha vida.

Paulo Mendes Campos (Manchete, 31/10/1964)

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