quarta-feira, setembro 2

O próximo livro

Onde está o meu irmão que morreu? Onde estão os outros que morreram? E, já agora, onde estão os vivos? Daqui a nada saio para almoçar, neste bairro pobre e feio. Não liguem: tudo é feio para mim, hoje. Vagos ruídos de vizinhos, uma ambulância muito ao longe, uma máquina qualquer, não sei onde, a consertar não sei quê. Apetecia-me ser pequeno, apetecia-me sorrir.

Acabei um livro e não tenho a mínima ideia do que vou escrever a seguir. Não tenho a mínima ideia, sequer, se virá outro livro. Sinto-me como um cão à procura de um osso enterrado que não sabe onde está. Cavo aqui com as patas da frente, cavo acolá e nada. Se calhar acabaram-se os ossos, se calhar acabei. É sempre assim e o medo de não ser mais capaz é horrível. Um vazio, uma angústia. Não sei fazer mais nada, desde que me conheço não faço mais nada. Sento-me nesta cadeira, sento-me naquela. Eu só queria sentir qualquer coisa a inchar cá dentro, ainda não bem palavras, uma coisinha qualquer, mesmo mínima, que depois, pouco a pouco, se transforma, cresce, ganha sentido, vai aparecendo. Então costumo marcar uma data e começo. Começo com horas quieto diante do papel até que uma frase surge, a princípio torta, lenta, lá principia a andar, ganha velocidade, vai arranjando forma. Não tenho plano, não sei o que é: é uma voz que dita e eu sigo-a. A mão move-se e a cabeça, longe, a vigiar. O material aperfeiçoa-se página a página, os diversos elementos estruturam-se, os parágrafos adquirem forma, vão nascendo mais vozes, o livro articula--se aos solavancos. Agora falta-me tudo. Levanto a cabeça, vejo o sol na varanda árvores, o prédio em frente, todas as janelas fechadas. Como não alcanço a rua tudo parece deserto, tudo está deserto. Um pássaro às vezes, as folhas quase imóveis. Se ao menos eu. Se ao menos eu o quê? Ponho estas sentenças porque tenho de fazer a crónica. Duas por mês. Ponho as sentenças sem alma nenhuma. A quem podem interessar? Sardinheiras na varanda, imóveis também. Pontitos brancos a flutuarem junto às árvores, não pássaros, sementes ou assim. Onde está o meu irmão que morreu? Onde estão os outros que morreram? E, já agora, onde estão os vivos? Daqui a nada saio para almoçar, neste bairro pobre e feio. Não liguem: tudo é feio para mim, hoje. Vagos ruídos de vizinhos, uma ambulância muito ao longe, uma máquina qualquer, não sei onde, a consertar não sei quê. Apetecia-me ser pequeno, apetecia-me sorrir. A doença de um amigo preocupa-me. Olha, lembrei-me de Angola. Foi assim uma recordação fugidia que desapareceu logo. Mas a cor da terra, mas os cheiros, mas a população com latas, junto ao arame farpado, a pedir comida. Províncias ultramarinas - Portugal uno e indivisível do Minho a Timor. Como era possível uma frase destas? Eu uno e indivisível do Minho a Timor. Catongueses, sul-africanos, o raio que os parta, tudo aos tiros. ?O capitão
- Você é do contra.
Ele não era do contra, os militares fazem o que lhes mandam e eu a ferver de raiva.
- Acha que sim?
A estupidez da violência. Chega de Angola, chega da fronteira com a Zâmbia: passaram tantos anos. Mentira: não passaram. Adiante. E o livro nada. E eu nada igualmente. Fuma um caricoco, rapaz, fuma um caricoco.
A manhã, na janela, principia a crescer. O sol nos ramos. O ruído da ambulância sumiu-se há que tempos. Que silêncio. No outro dia fui ao hospital. Está tudo bem. Comovi-me por estar tudo bem, julgo que consegui não mostrar. Há alturas em que a gente não se importa de não existir. Importa-se. Temos medo. O silêncio dos médicos, depois de nos observarem, antes de começarem a falar. O que irão dizer? Aquela pausa arrepia um bocadinho, nós fingimos que não, calados, sérios. Pegar numa lata ferrugenta, do outro lado do arame farpado, não a pedir comida, a pedir saúde. Voltar com a saúde para a palhota, comê-la com os dedos, chupá-los no fim. No restaurante não são latas, são pratos: será assim tão diferente? Batas, batas, batas, macas, macas, macas, gente a dar com um pau.
- Tome lá mais um bocadinho de vida
ou seja restos de vida no meio da ferrugem.
- Como correu lá no hospital?
- Correu bem
enquanto se mastiga. Correu bem. Enquanto se engole
- Correu bem
ao limpar a boca
- Correu bem.
ao afastar a lata
- Correu bem. Mais uns tempos ainda até que
- Há aí um problema, temos que ver melhor.
Um problema, o que será um problema? E o livro sem vir. Se me propusessem
- Damos-lhe mais cem anos se abdicar dos seus livros
não aceitava. Mesmo doente escrevia. Oxalá continue a escrever, oxalá as palavras comecem a vir, oxalá não demorem muito tempo. É que não tenho mais nada
António Lobo Antunes, revista Visão, em 11 de Junho de 2015

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