A língua alemã não é uma língua exótica. Noventa e cinco milhões de pessoas no mundo têm o alemão como língua materna. São pessoas letradas e escolarizadas. Além disso, o alemão é lido e compreendido por outras pessoas, muitas delas nas humanidades e nas ciências, que precisam usá-la profissionalmente como segunda língua. É uma língua em que grandes escritores se revelaram: Goethe, Schiller, Hesse, Grimm, Günter Grass, Rilke, entre outros. Há centenas de dicionários em alemão, sobre o alemão, do alemão para outras línguas. Portanto, traduzir um romance ou um conto, um ensaio filosófico, deveria apresentar simplesmente, ou somente, os problemas normais de uma tradução: uma ou outra dificuldade de se achar equivalência de uma expressão típica, de algum conceito alheio ao leitor em português. Isso não aconteceu com o romance que escolhi para leitura nesta semana.
Estou pasma com a má qualidade da leitura por causa de problemas na tradução de Marcelo Backes do livro de Saša Stanišić, "Antes da Festa". O tradutor cometeu erros crassos de português como a palavra acento usada no lugar de assento.
“Agora faz exatamente um ano, no dia anterior à última Festa, que Ulli arrumou sua Garagem, botou um punhado de acentos, cinco mesas e um aquecedor, pendurou uma cortina de tule vermelho e amarelo diante da única janela, pregando na parede…” [p.18]Note-se: mesmo que fossem assentos, não se pode usar a expressão um punhado. Punhado é o que cabe em um punho. [ “…botou, alguns assentos, cinco mesas…”] seria o mais correto.
“O povoado em cadeiras. A ordem dos acentos é um tema explosivo. Quem irá ficar com a mesa de bar na parte da frente, junto à figueira?” [p. 28]Além dessas belezas acima, o tradutor optou por usar um texto em português quase ao pé da letra do que está em alemão. Ou seja subjugou o entendimento em português para preservar a fidelidade às expressões, à ordem de palavras, ou a modos de dizer que não fazem sentido em português. Temos, assim, frases como:
“Com o sistema de climatização de hoje em dia, até a lua seria possível.” [p. 37]
“O povoado reza diariamente por um mero mais ou menos.” [p.31]
“Certa vez, os que estavam procurando cogumelos.” [p.41]Ou problemas com um parágrafo inteiro, notem que o itálico é meu:
“O tenente-coronel Schramm acompanhou os coletores de cogumelos até o parâmetro extremo.[sic] [?] Numerosos eram os cogumelos ao lado do caminho. [sic] [Porque não usar a forma direta? “Eram numerosos os cogumelos ao longo do caminho?”] Mas aquelas pessoas não sabiam mais se podiam ou não colhê-los. De modo que Schramm tomou a iniciativa e botou um cogumelo bem suculento no cesto da menina. E depois foi obrigado a ver que nem era um boleto. [sic] [?] A mãe voltou a tirá-lo do cesto sem dizer palavra.” [p.45]Erros de grafia abundam:
“No verão, a morte anda não era uma ideia, no verão o senhor Schramm queria tentar a vida mais uma vez, talvez se apaixonar.” [p.110]Mais tarde somos agraciados com um português com grafia excepcional. A intenção é dar ao texto um cunho de antigo, de ter sido escrito no século XVI, pois o capítulo começa “No ano da graça de 1587…”. Mas o tiro saiu pela culatra e o maneirismo da letra ‘l’ dobrada, das palavras um começarem com ‘h’ , não surtiu o efeito desejado pois a essa altura já são tantos os problemas com a leitura, que esse detalhe se torna uma distração a mais.
“Os homens se junctaram em roda. Parecia até que tentavam esconder o leitão. O mandachuva dividiu o ar ao meio movendo as mãos à esquerda e à direita — e já os homens abriram hum buraco no centro.” [p. 70]Enfim, chegada à página 110, desisti da leitura. É muito pouco caso com o leitor. Deixei uma queixa no site da editora, mas eles não se dignaram a responder. Não quero colocar a culpa exclusivamente no tradutor, ainda que 90% da responsabilidade seja dele. Há duas pessoas mencionadas como responsáveis pela revisão: Rafael Alverne e Thais Carlo. Não vejo sinais do trabalho deles. Talvez estivessem de férias, ou pior, confiaram em programas de computação para a revisão. Esses programas não percebem erros entre assento e acento, ou seja não sabem as diferenças entre palavras homófonas. Fato é que ninguém responsável por esta publicação leu o livro. Uma vergonha.
A Editora Foz perde sua credibilidade porque publica um livro ilegível. O autor alemão não entenderá a razão de sua obra não ter sucesso no Brasil, quando é sucesso em outros cantos do mundo. Os leitores que mantêm editora, autor, tradutor e revisores trabalhando, pois compram o livro, não podem fazer nada além de reclamar, ou será que deveríamos ir ao Procom? Dá vontade.
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