Conversando com minha mãe, ela, católica praticante, sugeriu que nos orientássemos com o padre responsável pela igreja de São Cristóvão, que, por coincidência, era natural da colônia italiana de Rodeiro, portanto, filho de família amiga. No domingo pela manhã, logo após a missa das sete, ele nos recebeu e, sinceramente entusiasmado pela idéia, colocou à disposição um cômodo, ao lado do salão paroquial.
Embalei os volumes com carinho, consegui transporte barato para as caixas. Na primeira oportunidade, comprei, de segunda mão, algumas estantes de aço, e, pessoalmente, organizei os títulos por gênero, nacionalidade e sobrenome do autor. Orgulhoso com a iniciativa, voltei para São Paulo e dormi noites de rei imaginando leitores descortinando novas janelas... Qual não foi minha decepção quando, após vários meses, constatei que raras pessoas haviam se interessado em conhecer o local e, destas, menos de uma dezena havia tomado livros de empréstimos...
Desapontado, erigi várias explicações possíveis. Mas quem me forneceu uma elucidação incontestável foi meu pai. Percebendo meu abatimento e inteirado do assunto, ele, diácono de uma igreja pentecostal, me disse, com clareza, Meu filho, o problema é que aqui no bairro a maioria do povo é evangélico... Ninguém vai por os pés para dentro do adro de uma igreja católica... Acatei seu argumento e busquei convencer minha mãe, sabendo que alimentava, de forma involuntária, uma tensão religiosa sob nosso teto. Fui ao padre, expliquei meu dilema, e, mesmo contrariado, ele aceitou a mudança.
Meu pai encarregou-se de ajeitar um novo lugar para instalação da biblioteca. Conseguiu um pequeno salão na sede do Esporte Clube Taquara Preta, na verdade um conjunto de compartimentos à beira do campo de futebol, onde funcionavam os dois vestiários, dos times da casa e do visitante, as salas de troféus e de reuniões, usada também para encontros da associação dos moradores do bairro. Transferidos os livros e as estantes de aço, ele se dispôs a, agora num espaço neutro, ser o bibliotecário – aposentado, dedicava as tardes a fichar os títulos e a providenciar os empréstimos que, aos poucos, foram surgindo.
Passado menos de um ano, entretanto, meu pai recebeu a visita de um rapaz, que conhecia de garoto, comunicando que a biblioteca não ia poder mais funcionar ali, porque a circulação de pessoas estava atrapalhando seus negócios. Ingênuo, ele ainda tentou explicar que não vendia nada, portanto não estava concorrendo com ninguém, mas o sujeito, impaciente, nem tentou esclarecer em que tipo de negócio estava metido. Simplesmente, ordenou que ele não voltasse mais àquele ponto.
Meu pai recorreu aos vizinhos, ao pastor, aos irmãos da igreja, mas, com medo, ninguém se decidiu a ajudá-lo. Pensou em procurar os políticos e até mesmo a polícia, mas foi desencorajado pela família. Os traficantes sequer deixaram que retirássemos os livros da sala. Abrigaram-se de maneira acintosa à frente da sede do time e impediram as reuniões da associação de moradores no local. Voltei lá alguns meses depois e pela vidraça quebrada observei os livros empoeirados se deteriorando. Tentei dialogar com o chefe da boca de fumo, conhecido dos tempos de adolescência, sem sucesso.
A igreja de São Cristóvão permanece lá, ano a ano esvaziando-se de fiéis – em 1950, os católicos representavam 93% dos brasileiros, 50 anos depois, 74% e, segundo o último censo do IBGE, 65%, enquanto os evangélicos já alcançam 22% do total da população.
Quanto à boca de fumo, os negócios vão de vento em popa.
Luiz Ruffato
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