Saul Bellow por Ramon Muniz |
Aquele senhor falou alto, queria que eu ouvisse. Decerto, não desperdiçava chance de predicar. Eu jamais soube quem era, onde lecionava ou se possuía obra publicada, mas foi por causa dele que li e estudei Bellow. Neste centenário do autor de Herzog e O legado de Humboldt, eis que tenho oportunidade repassar a crença: nos romances de Saul Bellow, o aprendizado que vale por dezenas de oficinas e manuais!
Suas criações também nos levam à necessária e negligenciada indagação: “os ficcionistas contemporâneos têm feito da literatura pelo menos metade do que ela é capaz?”. E não se trata de pergunta retórica, que sugere resposta negativa, mas sim de manter saudável questionamento. O próprio trabalho de Bellow reflete um espírito inquieto, que jamais se rendeu à tentação das fórmulas exitosas, de deitar nas soluções que ele conquistou a cada título publicado.
Não que sua produção seja tão diversa que impossibilite identificar linhas de força. Apesar de pouco estudado no Brasil, em outros países ele possui respeitável fortuna crítica, com dezenas de livros e centenas de resenhas, ensaios e pesquisas acadêmicas. Seus comentadores costumam frequentar os mesmos tópicos: as fissuras do humanismo e das teorias do século 20, a condição do pós-guerra, a questão dos imigrantes, religião, alteridade, tragicomicidade, ambiguidades, contradições, etc. A afinação e a vibração dessas cordas, no entanto, variam enormemente — algo que se coloca à mostra de modo decisivo na construção das personagens.
É provável que você já tenha se encontrado algumas vezes com o ensaio Relendo Saul Bellow, do também renomado escritor Philip Roth. Entre outros tantos meios, esse texto já foi veiculado naFolha de S. Paulo, no livro Entre nós: um escritor e seus colegas falam de trabalho, e como introdução à recente edição brasileira de Herzog. A popularidade da exegese se repete em outros idiomas, o que se justifica pelo acerto do método: costurar as análises a partir das tão aparentadas e tão diversas personagens de Bellow.
Desde logo, Roth cita a grandiosidade de As aventuras de Augie March, com sua representação de um mundo ainda capaz de animar, deslumbrar, fascinar; com seu protagonista disposto a viver esse mundo para além das limitações que lhe suspeitam, anunciam ou entregam como herança ancestral. Augie se declara americano nascido em Chicago, e não reconhece qualquer autoridade que constranja sua demanda por cidadania e realização — nem mesmo a da própria vida, quando esta transcorre aquém das pretensões.
A ousadia do personagem filho de imigrantes não é outra coisa senão a expressão do próprio sonho americano. Como ressalta o prefácio de Christopher Hitchens: “As duas palavras-chave que resumem as ambições do romance de Bellow são democrático e cosmopolita. Não inteiramente por coincidência, essas são também as duas grandes esperanças da América”.
Dois trechos do romance expressam a condição social de seu autor, marcado pelo pertencimento a uma família de imigrantes na América da primeira metade do século 20, e movido também pela superação de tais grilhões! Em algum momento do livro, o narrador constata que “Todas as influências estavam enfileiradas, esperando por mim. Eu nasci e lá estavam elas para me formar, e é por isso que eu falo mais delas do que de mim”. Na abertura da obra, contudo, Augie anunciara sua postura altiva: “faço as coisas do jeito que aprendi sozinho a fazer, estilo livre”.
Como quase todos os seus demais livros, As aventuras de Augie March tem muito de autobiográfico — o que, no caso de Bellow, não assoma como fragilidade, pois talvez sua maior personagem não seja senão o próprio Saul Bellow.
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