quarta-feira, novembro 30
Assim começa o livro...
— Este sorvete — informa gravemente o dono da sorveteria — tem sabor diferente de qualquer outro que o senhor possa imaginar. Não digo isso porque é da casa. Já fiz muito sorvete que não era lá essas coisas. Falar verdade, eu não sou sorveteiro, nunca fui. Sorveteiro no sentido de nascer para fazer sorvete e ter consciência do que está fazendo.
Fazer sempre bem, não digo sempre melhor, porque sorvete não se aprimora, fique o senhor sabendo. Não se aprende nem se desaprende com o tempo. Ou o homem faz, de vocação, aquele sorvete que é o tal, o único, que põe o freguês delirando, causa uma felicidade para sempre, ou...ou produz isso que há por aí.
Já notou que não existe sorvete no Rio? Eu sabia que o senhor ia citar aquele de Ipanema, um outro de Vila Isabel. É. Não vou dizer que não prestam. São regulares. Nem sou de falar mal de colegas. Me refiro a sorvetes, não a sorveteiros. Podem ser de boa-fé, por que não? Conheço muitos, distintos como pessoas, escrupulosos, eles mesmos escolhem as frutas, não facilitam em matéria de higiene, aplicam suas receitas com exatidão... Vai-se ver, saiu um sorvete chochinho, um açúcar gelado, ou pedrento ou derretido. É o comum, meu senhor. Ninguém sabe fazer sorvete.
Eu também não sei, já disse. Portanto, não pense que desmereço os colegas para me elevar aos cornos da Lua. Então como faço este que, pondo de lado a modéstia, é o grande sorvete do mundo? Ah, o senhor não vai acreditar. E talvez eu não deva tomar o seu tempo com essas coisas. Mas simpatizei com o seu ar. Noto que não é um freguês como os outros, que querem apenas se refrescar, pouco lhes importa o que ponham na boca. Vi pela maneira como olhou para a lista de sorvetes. Como reparou em cada nome de fruta ou sabor, comparando os gostos, refletindo... Sentindo prazer, eu sei, já em pensar nos sorvetes. Não era indecisão. Era prazer. Sim, o amigo sabe o que é sorvete.
Mas não respondi à sua pergunta. Este sorvete que vai provar e nunca mais lhe esquecerá o gosto e lhe dará uma tristeza infinita de não o encontrar em outro bairro qualquer, mesmo em outros países... é segredo de um artista húngaro, que passou pelo Rio há dois anos. Digo artista, porque não merece outro nome. O de batismo não posso dizer. Esqueci. Ou melhor, nunca cheguei a aprender direito como se escreve e se pronuncia. Era um homem estranho, de pouca fala, nos conhecemos por acaso, salvei-lhe a vida com um empurrão, no justo momento em que um carro ia esmagá-lo. Para manifestar sua gratidão, me deu a fórmula.
É uma fórmula que vem passando de pai a filho, desde o século XVI — XVI ou XVIII, não estou bem certo. Sabe por que os sorvetes de frutas naturais são chamados de italianos? Porque um italiano andou pela Hungria e lá se apossou da fórmula. Apossou-se, é modo de dizer. O italiano fez tudo para roubá-la, cometeu até dois assassinatos, sem conseguir as quinze mágicas. São quinze linhas, não mais. À base de imitação, levou para a Itália um tipo de sorvete que só de longe lembra este meu. Não é a mesma coisa, claro. O verdadeiro sorvete é uma criação de arte de um húngaro falecido há séculos e transmitido como legado de família. Eu sou depositário da fórmula, e pratico-a sem mérito. O meu amigo húngaro, que pouco depois sumiu, tinha no sangue a tradição e a arte de sorvete.
Já notou que não existe sorvete no Rio? Eu sabia que o senhor ia citar aquele de Ipanema, um outro de Vila Isabel. É. Não vou dizer que não prestam. São regulares. Nem sou de falar mal de colegas. Me refiro a sorvetes, não a sorveteiros. Podem ser de boa-fé, por que não? Conheço muitos, distintos como pessoas, escrupulosos, eles mesmos escolhem as frutas, não facilitam em matéria de higiene, aplicam suas receitas com exatidão... Vai-se ver, saiu um sorvete chochinho, um açúcar gelado, ou pedrento ou derretido. É o comum, meu senhor. Ninguém sabe fazer sorvete.
Eu também não sei, já disse. Portanto, não pense que desmereço os colegas para me elevar aos cornos da Lua. Então como faço este que, pondo de lado a modéstia, é o grande sorvete do mundo? Ah, o senhor não vai acreditar. E talvez eu não deva tomar o seu tempo com essas coisas. Mas simpatizei com o seu ar. Noto que não é um freguês como os outros, que querem apenas se refrescar, pouco lhes importa o que ponham na boca. Vi pela maneira como olhou para a lista de sorvetes. Como reparou em cada nome de fruta ou sabor, comparando os gostos, refletindo... Sentindo prazer, eu sei, já em pensar nos sorvetes. Não era indecisão. Era prazer. Sim, o amigo sabe o que é sorvete.
Mas não respondi à sua pergunta. Este sorvete que vai provar e nunca mais lhe esquecerá o gosto e lhe dará uma tristeza infinita de não o encontrar em outro bairro qualquer, mesmo em outros países... é segredo de um artista húngaro, que passou pelo Rio há dois anos. Digo artista, porque não merece outro nome. O de batismo não posso dizer. Esqueci. Ou melhor, nunca cheguei a aprender direito como se escreve e se pronuncia. Era um homem estranho, de pouca fala, nos conhecemos por acaso, salvei-lhe a vida com um empurrão, no justo momento em que um carro ia esmagá-lo. Para manifestar sua gratidão, me deu a fórmula.
É uma fórmula que vem passando de pai a filho, desde o século XVI — XVI ou XVIII, não estou bem certo. Sabe por que os sorvetes de frutas naturais são chamados de italianos? Porque um italiano andou pela Hungria e lá se apossou da fórmula. Apossou-se, é modo de dizer. O italiano fez tudo para roubá-la, cometeu até dois assassinatos, sem conseguir as quinze mágicas. São quinze linhas, não mais. À base de imitação, levou para a Itália um tipo de sorvete que só de longe lembra este meu. Não é a mesma coisa, claro. O verdadeiro sorvete é uma criação de arte de um húngaro falecido há séculos e transmitido como legado de família. Eu sou depositário da fórmula, e pratico-a sem mérito. O meu amigo húngaro, que pouco depois sumiu, tinha no sangue a tradição e a arte de sorvete.
Este o senhor vai tomar por conta da casa. Mas não espalhe, hem?, que meu sorvete é diferente de todos os outros do Brasil e do Universo. Ninguém até agora reparou nisso, e não quero complicações. Só me abri com o amigo porque percebi logo que estava à altura de receber minha confidência. Vou-lhe dizer mais: este aqui eu só fabrico para um grupo mínimo de pessoas, os entendidos, os marcados. O resto é para a multidão. Boca de siri, ouviu?
(O sorvete húngaro)
segunda-feira, novembro 28
Os dias felizes
Penko Gelev |
Estou há dois meses a viver numa pequena ilha africana. Bem sei: já não se fazem ilhas como antigamente, ilhas verdadeiras, ou seja, lugares isolados, apartados do mundo. Esta coluna faz prova disso mesmo: se a estão a ler significa que não estou numa ilha. Isolamento, nos dias que correm, é um luxo ao alcance de poucos. Ainda assim, esta minha Ilha de Moçambique mantém algum do mistério, do encanto e dos inúmeros incômodos de uma ilha à moda antiga.
Morar numa pequena ilha, longe de um grande centro urbano, começa por ser um exercício de simplicidade. Aprendemos a viver com o mínimo — e depressa descobrimos que o mínimo pode ser o máximo. Hoje, por exemplo, sei como responder àquela irritante pergunta de questionário de férias: “Que livro levaria para uma ilha deserta?” — “Um livro eletrônico!”
No meu caso, para ser preciso, é um iPad. Todas as manhãs baixo e leio a edição completa d’O Globo. Além disso, criei nestes últimos sessenta dias uma biblioteca virtual que, se tivesse existência em papel, ocuparia duas ou três malas grandes. Alguns destes e-books são títulos que me habituei a levar quando viajo, porque me ajudam a escrever: “O livro do desassossego” de Bernardo Soares (Fernando Pessoa); “O outono do patriarca”, de García Márquez; “O mandarim” e “A relíquia”, de Eça de Queirós; “Meu quintal é maior do que o mundo”, de Manoel de Barros, entre vários outros.
As livrarias ainda me fazem falta, mas apenas pelo ritual de entrar, olhar os livros, passar os dedos pelas capas. Não tenho saudade alguma dos shoppings e das grandes superfícies comerciais. Descobri que passo muito bem sem a maior parte dos produtos que, vivendo numa cidade grande, me sentia compelido a comprar.
Escrevo esta coluna numa sexta-feira. Não numa qualquer sexta-feira, mas na famosa Black Friday, um movimento que os americanos conseguiram exportar para o resto do mundo, e que consiste em convencer os consumidores de que precisam comprar tudo aquilo de que não necessitam por um preço talvez inferior ao de ontem, mas não ao de anteontem ou ao de amanhã. E as pessoas compram. Algumas endividam-se para comprar.
A Black Friday é o tiro de largada da grande corrida consumista do Natal. Em alguns estados americanos os funcionários públicos são dispensados do serviço para poderem dar azo a uma espécie de furioso ímpeto predatório, só comparável à febre que arrebata os machos de certas espécies na época do acasalamento. Longas filas de consumidores desesperados aguardam de noite, ao frio, pela abertura das lojas. Há casos de lutas. Tumultos explodem aqui e ali.
Só o nome do desastre me parece sensato. Registre-se, a título de curiosidade, que nos primeiros anos do movimento, os lojistas ainda se esforçaram por alterar a designação de Black Friday para Big Friday, mas sem sucesso. Então ficou assim mesmo: a sexta-feira infausta.
Espreitando através da janela do meu laptop tenho um vislumbre desse mundo ansioso. A seguir, assustado, ergo os olhos e o que vejo são as ruas plácidas e ensolaradas desta pequena cidade índica e árabe e afro-portuguesa, com os seus raros e minúsculos bazares, onde se vende uma única marca de sabonetes ou de chocolates, ao lado dos panos africanos (capulanas), e dos enormes e refulgentes búzios que o mar oferece às praias.
“Não é difícil ser feliz”, costumava dizer a minha avó. “Basta ter água limpa, dióspiros e o fulgor do sol.”
A minha avó gostava de dióspiros (caquis). Quem quiser pode substituir por pitangas, romãs, bananas, mangas ou jabuticabas. Acredito que também seja possível ser feliz com maçãs, embora nunca tenha conseguido perceber como foi possível a serpente seduzir Eva com um fruto tão desinteressante. Para mim, a Árvore da Ciência do Bem e do Mal não pode ser senão a romãzeira.
Fui um menino afortunado. Costumava sentar-me no quintal, com a minha avó, vendo as galinhas ciscando entre o capim. O quintal era imenso, como o universo, e a minha avó reinava sobre todas as coisas. Era uma mulher redonda e rija, com cabelos crespos e olhos muito azuis, num feliz acerto dos sangues mais desencontrados. Nestes últimos dias regressei a esse passado feliz, não tanto por via das romãs, que aqui não encontro, mas da simplicidade.
É tão bom não ter. Não preciso de mais do que umas bermudas gastas (nas noites quentes, nem disso) para mergulhar nestas águas mansas, sem dor e sem pecado. Sim, eu sei que o Trump, etc., e o Temer, etc., e as crianças na Síria etc., e o fim do mundo logo ao virar da esquina. Mas — o que querem? — mergulho no mar, com o meu amor pela mão, e não há maldade que me atinja, nem tempo que me desgaste, nem fim que alcance este meu diminuto e remoto mundo.
Fim de convênios põe Bibliotecas Parque em risco
As Bibliotecas Parque, projeto que já foi uma das vitrines do governo do estado na área de cultura, e que ficou seriamente ameaçado pela crise financeira, vive agora uma nova fase de incertezas. Os convênios com as prefeituras do Rio e de Niterói, que deram sobrevida à iniciativa, terminam em dezembro e não se sabe ainda se serão renovados. Com o colapso financeiro do estado, a gestão das unidades do Centro, da Rocinha e de Manguinhos, que demanda R$ 1,5 milhão por mês, foi assumida na maior parte por Eduardo Paes em novembro de 2015.
Já a unidade de Niterói, que custa cerca de R$ 250 mil mensais, ficou com o prefeito reeleito Rodrigo Neves. Como não há ainda sinal de renovação dos contratos, o Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), organização social responsável pela operação das bibliotecas, deu aviso prévio a todos os 153 funcionários, conforme antecipou a coluna de Ancelmo Gois no GLOBO.
O diretor de operações e finanças do IDG, Henrique Oliveira, admite a possibilidade de rescisão da OS, caso os convênios municipais não sejam renovados. A desmobilização dos funcionários, diz ele, ainda pode ser revertida.
- Essa desmobilização, no primeiro momento, não afeta em nada as bibliotecas. Vamos iniciar dezembro funcionando em horário normal, de terça a sábado, e com a ideia de manter nossa rotina de atividades. Seria leviano dizer que já existe segurança jurídica e econômica para o próximo ano, mas há um movimento para viabilizar isso - afirmou.
O ex-deputado Luiz Alfredo Salomão, que lidera a equipe de transição do prefeito eleito Marcelo Crivella, se reuniu sexta-feira com a secretária estadual de Cultura, Eva Doris. Crivella, gripado, foi representado pelo seu vice Fernando MacDowell no encontro, realizado na Firjan. Um dos pontos na pauta foi justamente o futuro das três Bibliotecas Parque da cidade. A nova gestão demonstrou interesse em esticar o convênio com o governo do estado, algo prometido por Crivella na campanha eleitoral.
- Recebemos da secretária Eva Doris os dados do convênio e, no geral, achamos que está tudo certo. Não podemos abandonar as Bibliotecas Parque - afirmou Salomão.
A Secretaria estadual de Cultura informou que os entendimentos "avançam positivamente" em relação às bibliotecas no Rio. O órgão ainda não foi procurado pela equipe de Rodrigo Neves, mas ressaltou que "não considera a possibilidade de fechamento" da unidade niteroiense. Procurada, a secretaria de Cultura de Niterói foi reticente quanto à prorrogação do convênio atual e lembrou que a administração cabe ao governo do estado.
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Já a unidade de Niterói, que custa cerca de R$ 250 mil mensais, ficou com o prefeito reeleito Rodrigo Neves. Como não há ainda sinal de renovação dos contratos, o Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), organização social responsável pela operação das bibliotecas, deu aviso prévio a todos os 153 funcionários, conforme antecipou a coluna de Ancelmo Gois no GLOBO.
- Essa desmobilização, no primeiro momento, não afeta em nada as bibliotecas. Vamos iniciar dezembro funcionando em horário normal, de terça a sábado, e com a ideia de manter nossa rotina de atividades. Seria leviano dizer que já existe segurança jurídica e econômica para o próximo ano, mas há um movimento para viabilizar isso - afirmou.
O ex-deputado Luiz Alfredo Salomão, que lidera a equipe de transição do prefeito eleito Marcelo Crivella, se reuniu sexta-feira com a secretária estadual de Cultura, Eva Doris. Crivella, gripado, foi representado pelo seu vice Fernando MacDowell no encontro, realizado na Firjan. Um dos pontos na pauta foi justamente o futuro das três Bibliotecas Parque da cidade. A nova gestão demonstrou interesse em esticar o convênio com o governo do estado, algo prometido por Crivella na campanha eleitoral.
- Recebemos da secretária Eva Doris os dados do convênio e, no geral, achamos que está tudo certo. Não podemos abandonar as Bibliotecas Parque - afirmou Salomão.
A Secretaria estadual de Cultura informou que os entendimentos "avançam positivamente" em relação às bibliotecas no Rio. O órgão ainda não foi procurado pela equipe de Rodrigo Neves, mas ressaltou que "não considera a possibilidade de fechamento" da unidade niteroiense. Procurada, a secretaria de Cultura de Niterói foi reticente quanto à prorrogação do convênio atual e lembrou que a administração cabe ao governo do estado.
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domingo, novembro 27
A Morte e outras vivências
Sua principal atividade, agora, é cochilar. Cochila de manhã e à tarde, sentado no sofá. À noite, assim que se deita na cama, o sono lhe vem, generoso. O único pesadelo que tem, com alguma freqüência, é estar cochilando ou dormindo e não ouvir a campainha que a Morte, finalmente disposta a atendê-lo, toca e toca e, cansada, desiste de tocar.
***
Ser triste é, mais do que um direito, um dever do poeta.
***
Em Romeu e Julieta, cada vez que se topam dez personagens numa praça, morrem onze.
***
Reencontraram-se por acaso, cinco anos depois, numa festa. As mãos se apertaram, tão geladas quanto as palavras que por educação mantiveram nos lábios. “Bom te ver”, disse ele, disse ela também, e cada um se esgueirou para um canto do salão, com o rancor magnificamente disfarçado por um sorriso social.
***
O amor é sempre aquele assunto que pode nos salvar quando o leitor – e principalmente a leitora – já ameaça abrir o primeiro bocejo.
***
Conhecer-te a ti mesmo é tarefa que desempenharás sem muito esforço. Difícil, depois, será te aceitares.
***
O amor na velhice é lindo, desde que sejamos só espectadores – e um bocado míopes.
***
Eu te agradeço por me matares tão continuadamente, por me manteres tão amorosamente atento à tua crueldade que não tenho tempo sequer para pensar em flores e em estrelas, esses bisonhos objetos de inspiração dos poetas.
***
Se ela houvesse me estrangulado naquela manhã, teria usado luvas das quais se livraria imediatamente – não por temer conseqüências criminais, mas por nojo de meu pescoço plebeu.
***
Se soubesses o gozo que cada um dos teus elaborados suplícios trouxe à minha carne, morrerias de desgosto. Sinto falta deles, minha querida, e só de lembrá-los minha pele se arrepia, prazerosa.
***
Sinto-me como um morto provisório, um defunto em regime de experiência, ainda não autorizado a desfrutar de meu mais desejado direito: o de descansar em paz.
***
Já me dei bem melhor com a vida. Era uma época em que ela e eu ainda não estávamos cansados de fingir.
***
***
Poemas não têm a obrigação de ser sublimes, mas deveriam ser sempre honestos.
***
Quando alguém diz ser um mártir da literatura, deve-se, por amor à justiça, pensar no princípio da reciprocidade.
***
Eram belos seus olhos verdes. Garantiam-lhe sempre bons começos e eram depois uma agradável lembrança para as mulheres quando elas percebiam que, além deles, ele não tinha mais nada a oferecer.
Raul Drewnick
sexta-feira, novembro 25
Assim começa o livro...
Varandas da Eva Varandas da Eva: o nome do lugar.
Não era longe do porto, mas naquela época a noção de distância era outra. O tempo era mais longo, demorado, ninguém falava em desperdiçar horas ou minutos. Desprezávamos a velhice, ou a ideia de envelhecer; vivíamos perdidos no tempo, as tardes nos sufocavam, lentas: tardes paradas no mormaço. Já conhecíamos a noite: festas no Fast Clube e no antigo Barés, bailes a bordo dos navios da Booth Line, serenatas para a namorada de um inimigo e brigas na madrugada, lá na calçada do bar do Sujo, na praça da Saudade. Às vezes entrávamos pelos fundos do teatro Amazonas e espiávamos atores e cantores nos camarins, exibindo-se nervosamente diante do espelho, antes da primeira cena. Mas aquele lugar, Varandas da Eva, ainda era um mistério.
Ranulfo, tio Ran, o conhecia.
É um balneário lindo, e cheio de moças lindas, dizia ele. Mas vocês precisam crescer um pouquinho, as mulheres não gostam de fedelhos.
Invejávamos tio Ran, que até se enjoara de tantas noites dormidas no Varandas. A vida, para ele, dava outros sinais, descaía para outros caminhos. Enfastiado, sem graça, o queixo erguido, ele mal sorria, e lá do alto nos olhava, repetindo: Cresçam mais um pouco, cambada de fedelhos. Aí levo todos vocês ao balneário.
Minotauro, fortaço e afoito, quis ir antes. Foi barrado no portão alto, cuspiu na terra, deu meia-volta, quase marchando para trás. Era um destemido, o corpo grandalhão, e um jeito de encarar os outros com olho quente, de meter medo e intimidar. Mas a voz ainda hesitava: era aguda e grossa, de periquito rouco, e o rosto de moleque, assombrado, meio leso.
Gerinélson era mais paciente, rapaz melindroso, sabia esperar. Já namorava de dar beijos gulosos e acochos, e nos surpreendia em pleno domingo guiando uma lambreta velha, roubada do irmão. Na garupa, uma moça desconhecida, de outro bairro. Ou estrangeira. A máquina passava perto da gente, devagar, roncando, rodeando o tronco de uma árvore. Depois acelerava, sumindo na fumaceira. Ele sempre gostou de desaparecer, extraviar- -se. Gerinélson era e não era da nossa turma. Eu o considerava um dos nossos. Ele, não sei. Tinha uns segredos bem guardados, era cheio de reticências: não se mostrava, o rapaz.
O Tarso era o mais triste e envergonhado: nunca disse onde morava. Desconfiávamos que o teto dele era um dos barracos perto do igarapé de Manaus; um dia se meteu por ali e sumiu. Raro sair com a gente para um arrasta-pé. Ele recusava: Com esses sapatos velhos, não dá, mano. Um cineminha, sim: duas moedas de cada um, e pagávamos o ingresso do Tarso. E lá íamos ao Éden, Guarany ou Polytheama. Depois da matinê, ele escapulia, não ficava para ver as meninas da Escola Normal, nem as endiabradas do Santa Dorothea. Tarso queria vender picolés e frutas na rua, queria ganhar um dinheirinho só para entrar no Varandas da Eva. Mas era caro, não ia dar. Então tio Ranulfo prometeu: Quando chegar a hora, pago pra todos vocês.
Tio Ran, homem de palavra, foi generoso: espichou dinheiro para a entrada e a bebida. Depois tirou um maço de cédulas da carteira. Disse: Isso é para as mulheres. E nada de molecagem. Cada um de vocês deve ser um gentleman com aquelas princesas. Contamos as cédulas: dava e sobrava, era a nossa fortuna. Compramos na Casa Colombo um par de sapatos, e tia Mira costurou uma calça e uma camisa, tudo para o Tarso. Quando ele experimentou a roupa nova, parecia outro, ia chorar de alegria, mas Minotauro, maldoso, debochou: Deixa pra chorar depois da farra, rapaz. Quem fica feliz de roupinha nova é moça.
quinta-feira, novembro 24
A mágica Vila do Livo de Redu
Redu, uma pequena província da Bélgica, com 420 habitantes, Vila do Livro desde 1984 e é um dos locais mais visitados da região graças às livrarias e eventos literários.
Tudo começou na Páscoa de 1984, com o primeiro mercado de livros raros da região de Ardenes, quando livros foram espalhados pela cidade: celeiros, estábulos antigos, calçadas, tendas montadas especialmente para a ocasião, todo espaço virou espaço para livros. Fez tanto sucesso, 15 mil visitantes, que a Vila do Livro de Redu nasceu!
Hoje, a pequena vila tem cerca de 30 empresas (lembrando que são 420 habitantes), sendo 15 lojas de livros, onde é possível encontrar uma infinidade de livros sobre os mais diversos temas.
Atualmente, a Vila Livro de Redu recebe por ano mais de 200 mil visitantes de todo o mundo.
Hoje, a pequena vila tem cerca de 30 empresas (lembrando que são 420 habitantes), sendo 15 lojas de livros, onde é possível encontrar uma infinidade de livros sobre os mais diversos temas.
Atualmente, a Vila Livro de Redu recebe por ano mais de 200 mil visitantes de todo o mundo.
segunda-feira, novembro 21
Livraria 24 horas
A livraria é a Eslite Dunnan Bookstore. Aberta desde 1999, se tornou um ponto turístico da cidade, e está na lista das livrarias mais legais do mundo. Com a política de: fique o tempo que quiser, leia o quanto quiser, apenas não derrube café nos livros e não é necessário comprar nada, a livraria é uma atração nas noites da cidade.
Aí a primeira coisa que se pensa: mas será que tem movimento de noite, para valer a pena manter a livraria aberta 24h, sete dias por semana? Sim, tem muito movimento. Bares e boates não são muito populares em Taiwan. Então, além de se encontrarem no karaokê, os jovens se encontram nas livrarias. O horário que tem mais movimento na livraria é das 10 da noite às 2 da manhã. Esse vídeo mostra o movimento na livraria a meia noite de um sábado.
E em tempos de internet, era de se imaginar que o movimento da livraria fosse diminuir com as vendas online. Ao contrário do que se imagina, as vendas aumentaram 15% em 2013. Parte da renda da livraria não vem dos livros, a livraria também vende uma variedade de produtos (comida, vinhos, chás, música, filmes e séries, jóias, relógios, brinquedos, acessórios para casa e escritório).
Além da livraria 24 horas, há um mercado de rua na frente da Eslite Dunnan. Pessoas são encorajadas a levarem seus produtos para vender na frente da livraria. Assim, além de ganharem dinheiro com a venda, podem ajustar as ideias ao gosto do público. A foto do The New York Times (abaixo) mostra a entrada da livraria e o mercado.
Parece ser um ambiente muito agradável para passar algumas horas descobrindo novos livros.
Aí a primeira coisa que se pensa: mas será que tem movimento de noite, para valer a pena manter a livraria aberta 24h, sete dias por semana? Sim, tem muito movimento. Bares e boates não são muito populares em Taiwan. Então, além de se encontrarem no karaokê, os jovens se encontram nas livrarias. O horário que tem mais movimento na livraria é das 10 da noite às 2 da manhã. Esse vídeo mostra o movimento na livraria a meia noite de um sábado.
Além da livraria 24 horas, há um mercado de rua na frente da Eslite Dunnan. Pessoas são encorajadas a levarem seus produtos para vender na frente da livraria. Assim, além de ganharem dinheiro com a venda, podem ajustar as ideias ao gosto do público. A foto do The New York Times (abaixo) mostra a entrada da livraria e o mercado.
Parece ser um ambiente muito agradável para passar algumas horas descobrindo novos livros.
sábado, novembro 19
Que expliquem os entendidos
As gotas da chuva
“Eu sou forte. Mas estou cansado.” Li na internet. Leio muitas frases inspiradoras. Essa talvez tenha sido a primeira em que há uma expiração. Nós aguentamos tanta coisa!… O mundo se renovou, e não contou a ninguém. A chuva cai e me recuso a assistir minhas certezas escoarem para os bueiros. Desculpem-me, não queria soar pesado em uma segunda-feira. É um fato, não uma reclamação, assim como o som das gotas lá fora.
Alguns perderam tanto, acreditam. Cadê aquela sensação de porto seguro, a doce pequena segurança, enquanto recebemos notícias graves a cada instante? O que se esconde por debaixo das superluas? Uma era termina, mas qual é a que começa? Muitas perguntas terminadas em reticências e um misto de admiração e espanto similar a dos indígenas que encaram as caravelas vindas além-mar pela primeira e última vez.
Encaro mais como uma maratona de testes. Só que os portões estão sempre abertos, e a entrada é inevitável. Importa mesmo se é merecido ou justo? Pessoas queridas se foram. A morte é um fato, então o que fazer? Resignar não é resposta. Seguimos adiante. Caímos no céu em um solo para germinar algo, não para se perder em poças.
Recentemente, perdi um amigo para uma doença autoimune. Uma condição que iria surgir, independentemente do que ele fizesse. Inevitável. O fato é que não acabou aí. Não pode. Em meio a tudo isso, algo novo precisa surgir. Não se sabe o que, mas há um sol por trás das nuvens. É a ele que devemos alcançar. Mortes não podem ser um fim absoluto, mas uma renovação. É o sentido da vida.
Recebemos a tocha. Carregar um legado é difícil, ainda não mais quando o pedimos. O show continua, com ou sem nós. O melhor a fazer e seguir o trabalho. Como falei para uma amiga cuja madrinha morreu, você pensará em algo, mantenha o coração aberto. Vocês precisam ler o texto da Dani Haicai, de uma lindeza grandiosa que sei que fará um bom serviço. A madrinha dela se orgulhará.
Em meio a tempestade, um pequeno feixe de luz. É o suficiente para se aquecer e caminhar. Afinal, o replicante Roy Batty resumiu em seus últimos instantes que todos os momentos grandiosos se perderão como lágrimas na chuva. Hora de morrer. E a pomba voa para o alto em um céu limpo. Max, Marli, tantos outros. Estamos aqui. Vocês não serão esquecidos. Porque a obra continua, a vida importa e a chuva limpa.
Daniel Russell Ribas
Alguns perderam tanto, acreditam. Cadê aquela sensação de porto seguro, a doce pequena segurança, enquanto recebemos notícias graves a cada instante? O que se esconde por debaixo das superluas? Uma era termina, mas qual é a que começa? Muitas perguntas terminadas em reticências e um misto de admiração e espanto similar a dos indígenas que encaram as caravelas vindas além-mar pela primeira e última vez.
Recentemente, perdi um amigo para uma doença autoimune. Uma condição que iria surgir, independentemente do que ele fizesse. Inevitável. O fato é que não acabou aí. Não pode. Em meio a tudo isso, algo novo precisa surgir. Não se sabe o que, mas há um sol por trás das nuvens. É a ele que devemos alcançar. Mortes não podem ser um fim absoluto, mas uma renovação. É o sentido da vida.
Recebemos a tocha. Carregar um legado é difícil, ainda não mais quando o pedimos. O show continua, com ou sem nós. O melhor a fazer e seguir o trabalho. Como falei para uma amiga cuja madrinha morreu, você pensará em algo, mantenha o coração aberto. Vocês precisam ler o texto da Dani Haicai, de uma lindeza grandiosa que sei que fará um bom serviço. A madrinha dela se orgulhará.
Em meio a tempestade, um pequeno feixe de luz. É o suficiente para se aquecer e caminhar. Afinal, o replicante Roy Batty resumiu em seus últimos instantes que todos os momentos grandiosos se perderão como lágrimas na chuva. Hora de morrer. E a pomba voa para o alto em um céu limpo. Max, Marli, tantos outros. Estamos aqui. Vocês não serão esquecidos. Porque a obra continua, a vida importa e a chuva limpa.
Daniel Russell Ribas
sexta-feira, novembro 18
Maus hábitos
Albert Camus |
Na história da literatura, houve muitos escritores que bebiam demais – e basta ler o livro de Hemigway Paris É Uma Festa para perceber que a festa incluía mesmo muito álcool (sobretudo vinho, que era o que Hemingway nesses primeiros tempos podia pagar). Os poetas simbolistas eram valentes bebedores de absinto (a «fada verde») – Rimbaud, ao que parece combinava-o com haxixe – e bebiam-no às cinco em ponto como se fosse chá. Scott Fitzgerald era alcoólico, o que afectou a sua produção literária. Faulkner tinha a febre das apostas em corridas de cavalos – e muitos outros autores gostavam do jogo (Dostoievski, evidentemente!). O cigarrinho também esteve muitas vezes na mesma mão que segurava a caneta; num livro muito giro de Javier Marías chamado Vidas Escritas que li há anos – e, se não me engano, colige crónicas que o espanhol escreveu num jornal – descobri que Joseph Conrad deixava constantemente cigarros acesos nos cinzeiros e teve várias ameaças de incêndio em casa. Fumava também Cortázar (fotografado de cigarro na mão tantas vezes) e o peruano Julio Ramón Ribeyro, que até escreveu um conto chamado «Só para Fumadores». E fumavam Duras, Beckett, Camus, Orwell, Henry Miller, Octavio Paz e muitos, muitos outros. Se os ajudaram a escrever o que escreveram – e acredito que sim – vivam os maus hábitos…
Ler para umja criança fortalece os vínculos afetivos
Joseph DeCamp |
Além de estimular habilidades cognitivas e intelectuais, a leitura traz benefícios sociais e emocionais para quem compartilha a história. Ouvir narrativas na primeira infância, isto é, de zero a seis anos, contribui para melhorar o relacionamento entre a criança e o adulto, estreitando vínculos fundamentais para o desenvolvimento infantil pleno e saudável.
A formação da personalidade está diretamente ligada a este relacionamento entre a criança e o adulto. Por isso, vale a participação dos pais, avós, professores e cuidadores oferecendo a leitura para as crianças e aproveitando o momento de forma alegre e prazerosa. Para a coordenadora de Mobilização Social da Fundação Itaú Social, Cláudia Sintoni, os adultos devem inclusive escolher livros pelos quais também se interessem.
“O maior benefício da leitura é esse vínculo, esse afeto, essa relação que está sendo criada mediada pelo livro”, diz Cláudia.
Para que a experiência seja realmente de troca, e não vire uma leitura automática, o adulto deve ter em mente que a disponibilidade importa mais do que o tempo. Por exemplo, passar 15 minutos todos os dias lendo com a criança é mais efetivo do que forçar um momento de leitura, ou querer ler uma história até o fim quando a criança não está disposta.
“O livro tem que estar ali fácil, e fazer parte da rotina. Tem de ser na hora que for gostoso para os dois, e os dois aproveitarem esse momento. Por isso que a gente fala que o vínculo é o mais importante”, lembra Cláudia.
Como a leitura representa um momento de troca de afeto entre adulto e criança, é importante que aconteça naturalmente. Muitas vezes, os pais ficam preocupados por ter pouco tempo em sua rotina, e acabam criando uma barreira que desmotiva a leitura.
Para resolver isso, Cláudia dá uma dica: pais que trabalham muito o dia inteiro podem experimentar a leitura como um momento de descontração, e até mesmo antiestresse.“A gente fala para o adulto que a primeira coisa é ele ter esse pensamento, de que poder ser muito bom e muito gostoso para ele também. Pode ser um presente para o adulto”, diz Cláudia.
terça-feira, novembro 15
As gotas da chuva
“Eu sou forte. Mas estou cansado.” Li na internet. Leio muitas frases inspiradoras. Essa talvez tenha sido a primeira em que há uma expiração. Nós aguentamos tanta coisa!… O mundo se renovou, e não contou a ninguém. A chuva cai e me recuso a assistir minhas certezas escoarem para os bueiros. Desculpem-me, não queria soar pesado em uma segunda-feira. É um fato, não uma reclamação, assim como o som das gotas lá fora.
Alguns perderam tanto, acreditam. Cadê aquela sensação de porto seguro, a doce pequena segurança, enquanto recebemos notícias graves a cada instante? O que se esconde por debaixo das superluas? Uma era termina, mas qual é a que começa? Muitas perguntas terminadas em reticências e um misto de admiração e espanto similar a dos indígenas que encaram as caravelas vindas além-mar pela primeira e última vez.
Encaro mais como uma maratona de testes. Só que os portões estão sempre abertos, e a entrada é inevitável. Importa mesmo se é merecido ou justo? Pessoas queridas se foram. A morte é um fato, então o que fazer? Resignar não é resposta. Seguimos adiante. Caímos no céu em um solo para germinar algo, não para se perder em poças.
Recentemente, perdi um amigo para uma doença autoimune. Uma condição que iria surgir, independentemente do que ele fizesse. Inevitável. O fato é que não acabou aí. Não pode. Em meio a tudo isso, algo novo precisa surgir. Não se sabe o que, mas há um sol por trás das nuvens. É a ele que devemos alcançar. Mortes não podem ser um fim absoluto, mas uma renovação. É o sentido da vida.
Recebemos a tocha. Carregar um legado é difícil, ainda não mais quando o pedimos. O show continua, com ou sem nós. O melhor a fazer e seguir o trabalho. Como falei para uma amiga cuja madrinha morreu, você pensará em algo, mantenha o coração aberto. Vocês precisam ler o texto da Dani Haicai, de uma lindeza grandiosa que sei que fará um bom serviço. A madrinha dela se orgulhará.
Em meio a tempestade, um pequeno feixe de luz. É o suficiente para se aquecer e caminhar. Afinal, o replicante Roy Batty resumiu em seus últimos instantes que todos os momentos grandiosos se perderão como lágrimas na chuva. Hora de morrer. E a pomba voa para o alto em um céu limpo. Max, Marli, tantos outros. Estamos aqui. Vocês não serão esquecidos. Porque a obra continua, a vida importa e a chuva limpa.
Daniel Russell Ribas
Alguns perderam tanto, acreditam. Cadê aquela sensação de porto seguro, a doce pequena segurança, enquanto recebemos notícias graves a cada instante? O que se esconde por debaixo das superluas? Uma era termina, mas qual é a que começa? Muitas perguntas terminadas em reticências e um misto de admiração e espanto similar a dos indígenas que encaram as caravelas vindas além-mar pela primeira e última vez.
Recentemente, perdi um amigo para uma doença autoimune. Uma condição que iria surgir, independentemente do que ele fizesse. Inevitável. O fato é que não acabou aí. Não pode. Em meio a tudo isso, algo novo precisa surgir. Não se sabe o que, mas há um sol por trás das nuvens. É a ele que devemos alcançar. Mortes não podem ser um fim absoluto, mas uma renovação. É o sentido da vida.
Recebemos a tocha. Carregar um legado é difícil, ainda não mais quando o pedimos. O show continua, com ou sem nós. O melhor a fazer e seguir o trabalho. Como falei para uma amiga cuja madrinha morreu, você pensará em algo, mantenha o coração aberto. Vocês precisam ler o texto da Dani Haicai, de uma lindeza grandiosa que sei que fará um bom serviço. A madrinha dela se orgulhará.
Em meio a tempestade, um pequeno feixe de luz. É o suficiente para se aquecer e caminhar. Afinal, o replicante Roy Batty resumiu em seus últimos instantes que todos os momentos grandiosos se perderão como lágrimas na chuva. Hora de morrer. E a pomba voa para o alto em um céu limpo. Max, Marli, tantos outros. Estamos aqui. Vocês não serão esquecidos. Porque a obra continua, a vida importa e a chuva limpa.
Daniel Russell Ribas
A porta de entrada para a viagem pelo conhecimento...
As bibliotecas, no sentido amplo da palavra, existem há quase tanto tempo quanto os registros escritos. A intenção de criá-las parte de vários princípios e desejos conscientes e inconscientes. Talvez um dos mais comuns seja o fato de querermos guardar, colecionar e organizar a informação de modo que esta seja compartilhada entre aqueles que desejam buscá-las.
O fato é que na sociedade de hoje as bibliotecas, além de serem criadas para guardar, registrar e organizar os documentos e as informações, exercem um outro papel mais social. Talvez possamos dizer que estão sendo criadas também com a intenção de se tornar um espaço de convivência, e não apenas de conveniência.
De fato, houve uma grande evolução desses espaços desde a criação das bibliotecas até os dias de hoje. Porém, falar em fim é, ao meu ver, um pouco catastrófico, acredito mais na transformação dos espaços.
Hoje, no Brasil, existem muitos programas e iniciativas no sentido de fazer chegar o livro e as bibliotecas a toda a população. São ideias brilhantes, algumas premiadas, que se proliferam por todo o país. Entretanto, ainda é preciso fortalecê-las e também organizá-las.
Não podemos apenas criar os espaços, comprar o acervo e fazer inaugurações. Antes disso precisamos entender o que o leitor deseja ter nesses espaços, e o que busca de verdade. Muitas vezes ele nem sabe o que deseja. Quer apenas ter um novo espaço para preencher seus vazios, para ter um pouco de esperança, um espaço de lazer e convivência.
O espaço da convivência está muito ligado com a questão do prazer de se sentir bem. É sempre algo novo. Algo que atrai. Quando é criada uma praça, todo mundo sabe o que vai fazer ali. Um cinema, um teatro, atrai a todos para o lazer, a convivência e o prazer.
Mas e a biblioteca? Na verdade como esse espaço ”biblioteca” pode ser algo atraente e considerado uma instituição cultural na sociedade de hoje?
Com tantas tecnologias, modernos computadores, rapidez nas informações e outras modernidades sendo oferecidas, fica difícil, em um primeiro momento, imaginar que isso é possível.
Mas se nosso olhar for mais atento, se olharmos com mais atenção, sem critérios pré-estabelecidos, podemos perceber como isso se torna verdade.
Talvez seja bom convidar o outro a olhar também com os nossos olhos, emprestar para ele aquilo que já olhamos. Fazer um convite com palavras silenciosas ou talvez com palavras que falem um pouco mais alto, sem gritar.
Entender o que as pessoas desejam talvez seja o primeiro passo para fazermos as escolhas certas. Escolha do acervo, do espaço em si e tudo que ele pode oferecer.
Não pode ser ao contrário, criar os espaços, selecionar os acervos e abrir a “PORTA DA FELICIDADE”.
Temos que fazer antes um reconhecimento daquilo que aquela comunidade deseja, seja ela escolar, universitária, popular ou especializada. Só assim podemos construir em conjunto. Só assim vira a construção de um desejo e não uma invasão ou imposição de regras e conceitos.
Quem busca deve encontrar aquilo que procura e mais alguma coisa; pode até encontrar aquilo que nunca pensou em buscar e adorou ter encontrado.
A biblioteca pode ser esse espaço interativo, uma instituição cultural que, além de livros e informações em outros suportes, oferece outras práticas distintas, culturais, educativas e de expressão popular, para assim exercer um papel muito importante que também é seu. O papel de atuar no desenvolvimento da cidadania da população que ela atende.
Lucia Fidalgo (Revista Aprendizagem, Edição 05 - mar/abr-2008)
O fato é que na sociedade de hoje as bibliotecas, além de serem criadas para guardar, registrar e organizar os documentos e as informações, exercem um outro papel mais social. Talvez possamos dizer que estão sendo criadas também com a intenção de se tornar um espaço de convivência, e não apenas de conveniência.
Konstantin Kazanchev |
Convivência com a leitura no sentido amplo da palavra, de que lemos tudo e não apenas aquilo que está escrito. Já se tornou comum ouvir falar no fim dos livros e das bibliotecas. Tais previsões afirmam que o livro de papel e os espaços fechados, com estantes e mesas, ficarão apenas na lembrança de cada um de nós e a informação fluirá de maneira quase instantânea.
De fato, houve uma grande evolução desses espaços desde a criação das bibliotecas até os dias de hoje. Porém, falar em fim é, ao meu ver, um pouco catastrófico, acredito mais na transformação dos espaços.
Hoje, no Brasil, existem muitos programas e iniciativas no sentido de fazer chegar o livro e as bibliotecas a toda a população. São ideias brilhantes, algumas premiadas, que se proliferam por todo o país. Entretanto, ainda é preciso fortalecê-las e também organizá-las.
Não podemos apenas criar os espaços, comprar o acervo e fazer inaugurações. Antes disso precisamos entender o que o leitor deseja ter nesses espaços, e o que busca de verdade. Muitas vezes ele nem sabe o que deseja. Quer apenas ter um novo espaço para preencher seus vazios, para ter um pouco de esperança, um espaço de lazer e convivência.
O espaço da convivência está muito ligado com a questão do prazer de se sentir bem. É sempre algo novo. Algo que atrai. Quando é criada uma praça, todo mundo sabe o que vai fazer ali. Um cinema, um teatro, atrai a todos para o lazer, a convivência e o prazer.
Mas e a biblioteca? Na verdade como esse espaço ”biblioteca” pode ser algo atraente e considerado uma instituição cultural na sociedade de hoje?
Com tantas tecnologias, modernos computadores, rapidez nas informações e outras modernidades sendo oferecidas, fica difícil, em um primeiro momento, imaginar que isso é possível.
Mas se nosso olhar for mais atento, se olharmos com mais atenção, sem critérios pré-estabelecidos, podemos perceber como isso se torna verdade.
Talvez seja bom convidar o outro a olhar também com os nossos olhos, emprestar para ele aquilo que já olhamos. Fazer um convite com palavras silenciosas ou talvez com palavras que falem um pouco mais alto, sem gritar.
Entender o que as pessoas desejam talvez seja o primeiro passo para fazermos as escolhas certas. Escolha do acervo, do espaço em si e tudo que ele pode oferecer.
Não pode ser ao contrário, criar os espaços, selecionar os acervos e abrir a “PORTA DA FELICIDADE”.
Temos que fazer antes um reconhecimento daquilo que aquela comunidade deseja, seja ela escolar, universitária, popular ou especializada. Só assim podemos construir em conjunto. Só assim vira a construção de um desejo e não uma invasão ou imposição de regras e conceitos.
Quem busca deve encontrar aquilo que procura e mais alguma coisa; pode até encontrar aquilo que nunca pensou em buscar e adorou ter encontrado.
A biblioteca pode ser esse espaço interativo, uma instituição cultural que, além de livros e informações em outros suportes, oferece outras práticas distintas, culturais, educativas e de expressão popular, para assim exercer um papel muito importante que também é seu. O papel de atuar no desenvolvimento da cidadania da população que ela atende.
Lucia Fidalgo (Revista Aprendizagem, Edição 05 - mar/abr-2008)
segunda-feira, novembro 14
A literatura contra o trânsito
Quem mora e/ou trabalha na capital anda por estes dias com os nervos em franja. Não só a cidade está toda em obras – obras que acontecem em todo o lado ao mesmo tempo e que neutralizaram muitas zonas de estacionamento –, como o trânsito está tão insuportável que mesmo os de índole mais paciente não podem deixar de perder a calma, vociferar, chegar a casa zangados ao fim de um dia de trabalho. E quem não mora em Lisboa sabe-o pelos jornais, pois não param as críticas à Câmara por esta bizarra operação de estética global. Temos de fazer alguma coisa… No Canadá, a literatura decidiu virar-se contra o trânsito (a literatura até para isto serve, calculem) e vários artistas inundaram as ruas com 10 000 livros, numa espécie de manifestação chamada Literature vs Traffic criada por um grupo que se autodenomina Luzinterruptus e que pretende levar a cultura a lugares que são marcados pela poluição e a velocidade. Encheram literalmente o alcatrão de livros iluminados (doados pelo Exército de Salvação) e deixaram-nos lá para quem quisesse ir buscá-los e lê-los. A «instalação» só durou dez horas (a rua era necessária à circulação de carros na manhã seguinte), mas a imagem diz que valeu a pena.
domingo, novembro 13
Um cinturão
As minhas primeiras relações com a justiça foram dolorosas e deixaram-me funda impressão. Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e figurei na qualidade de réu. Certamente já me haviam feito representar esse papel, mas ninguém me dera a entender que se tratava de julgamento. Batiam-me porque podiam bater-me, e isto era natural.
Os golpes que recebi antes do caso do cinturão, puramente físicos, desapareciam quando findava a dor. Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas. Moído, virando a cabeça com dificuldade, eu distinguia nas costelas grandes lanhos vermelhos. Deitaram-me, enrolaram-me em panos molhados com água de sal – e houve uma discussão na família. Minha avó, que nos visitava, condenou o procedimento da filha e esta afligiu-se. Irritada, ferira-me à toa, sem querer. Não guardei ódio a minha mãe: o culpado era o nó. Se não fosse ele, a flagelação me haveria causado menor estrago. E estaria esquecida. A história do cinturão, que veio pouco depois, avivou-a.
Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.
Meu pai dormia na rede, armada na sala enorme. Tudo é nebuloso. Paredes extraordinariamente afastadas, rede infinita, os armadores longe, e meu pai acordando, levantando-se de mau humor, batendo com os chinelos no chão, a cara enferrujada. Naturalmente não me lembro da ferrugem, das rugas, da voz áspera, do tempo que ele consumiu rosnando uma exigência. Sei que estava bastante zangado, e isto me trouxe a covardia habitual. Desejei vê-lo dirigir-se a minha mãe e a José Baía, pessoas grandes, que não levavam pancada. Tentei ansiosamente fixar-me nessa esperança frágil. A força de meu pai encontraria resistência e gastar-se-ia em palavras.
Débil e ignorante, incapaz de conversa ou defesa, fui encolher-me num canto, para lá dos caixões verdes. Se o pavor não me segurasse, tentaria escapulir-me: pela porta da frente chegaria ao açude, pela do corredor acharia o pé do turco. Devo ter pensado nisso, imóvel, atrás dos caixões. Só queria que minha mãe, sinhá Leopoldina, Amaro e José Baía surgissem de repente, me livrassem daquele perigo.
Ninguém veio, meu pai me descobriu acocorado e sem fôlego, colado ao muro, e arrancou-me dali violentamente, reclamando um cinturão. Onde estava o cinturão? Eu não sabia, mas era difícil explicar-me: atrapalhava-me, gaguejava, embrutecido, sem atinar com o motivo da raiva. Os modos brutais, coléricos, atavam-me; os sons duros morriam, desprovidos de significação.
Não consigo reproduzir toda a cena. Juntando vagas lembranças dela a fatos que se deram depois, imagino os berros de meu pai, a zanga terrível, a minha tremura infeliz. Provavelmente fui sacudido. O assombro gelava-me o sangue, escancarava-me os olhos.
Onde estava o cinturão? Impossível responder. Ainda que tivesse escondido o infame objeto, emudeceria, tão apavorado me achava. Situações deste gênero constituíram as maiores torturas da minha infância, e as conseqüências delas me acompanharam.
O homem não me perguntava se eu tinha guardado a miserável correia: ordenava que a entregasse imediatamente. Os seus gritos me entravam na cabeça, nunca ninguém se esgoelou de semelhante maneira.
Onde estava o cinturão? Hoje não posso ouvir uma pessoa falar alto. O coração bate-me forte, desanima, como se fosse parar, a voz emperra, a vista escurece, uma cólera doida agita coisas adormecidas cá dentro. A horrível sensação de que me furam os tímpanos com pontas de ferro.
Onde estava o cinturão? A pergunta repisada ficou-me na lembrança: parece que foi pregada a martelo.
A fúria louca ia aumentar, causar-me sério desgosto. Conservar-me-ia ali desmaiado, encolhido, movendo os dedos frios, os beiços trêmulos e silenciosos. Se o moleque José ou um cachorro entrasse na sala, talvez as pancadas se transferissem. O moleque e os cachorros eram inocentes, mas não se tratava disto. Responsabilizando qualquer deles, meu pai me esqueceria, deixar-me-ia fugir, esconder-me na beira do açude ou no quintal. Minha mãe, José Baía, Amaro, sinhá Leopoldina, o moleque e os cachorros da fazenda abandonaram-me. Aperto na garganta, a casa a girar, o meu corpo a cair lento, voando, abelhas de todos os cortiços enchendo-me os ouvidos – e, nesse zunzum, a pergunta medonha. Náusea, sono. Onde estava o cinturão? Dormir muito, atrás de caixões, livre do martírio.
Havia uma neblina, e não percebi direito os movimentos de meu pai. Não o vi aproximar-se do torno e pegar o chicote. A mão cabeluda prendeu-me, arrastou-me para o meio da sala, a folha de couro fustigou-me as costas. Uivos, alarido inútil, estertor. Já então eu devia saber que gogos e adulações exasperavam o algoz. Nenhum socorro. José Baía, meu amigo, era um pobre-diabo.
Achava-me num deserto. A casa escura, triste; as pessoas tristes. Penso com horror nesse ermo, recordo-me de cemitérios e de ruínas mal-assombradas. Cerravam-se as portas e as janelas, do teto negro pendiam teias de aranha. Nos quartos lúgubres minha irmãzinha engatinhava, começava a aprendizagem dolorosa.
Junto de mim, um homem furioso, segurando-me um braço, açoitando-me. Talvez as vergastadas não fossem muito fortes: comparadas ao que senti depois, quando me ensinaram a carta de A B C, valiam pouco. Certamente o meu choro, os saltos, as tentativas para rodopiar na sala como carrapeta eram menos um sinal de dor que a explosão do medo reprimido. Estivera sem bulir, quase sem respirar. Agora esvaziava os pulmões, movia-me num desespero.
O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação da fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.
Solto, fui enroscar-me perto dos caixões, coçar as pisaduras, engolir soluços, gemer baixinho e embalar-me com os gemidos. Antes de adormecer, cansado, vi meu pai dirigir-se à rede, afastar as varandas, sentar-se e logo se levantar, agarrando uma tira de sola, o maldito cinturão, a que desprendera a fivela quando se deitara. Resmungou e entrou a passear agitado. Tive a impressão de que ia falar-me: baixou a cabeça, a cara enrugada serenou, os olhos esmoreceram, procuraram o refúgio onde me abatia, aniquilado.
Pareceu-me que a figura imponente minguava – e a minha desgraça diminuiu. Se meu pai se tivesse chegado a mim, eu o teria recebido sem o arrepio que a presença dele sempre me deu. Não se aproximou: conservou-se longe, rondando, inquieto. Depois se afastou.
Sozinho, vi-o de novo cruel e forte, soprando, espumando. E ali permaneci, miúdo, insignificante, tão insignificante e miúdo como as aranhas que trabalhavam na telha negra.
Foi esse o primeiro contato que tive com a justiça.
Graciliano Ramos
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