Fazer sempre bem, não digo sempre melhor, porque sorvete não se aprimora, fique o senhor sabendo. Não se aprende nem se desaprende com o tempo. Ou o homem faz, de vocação, aquele sorvete que é o tal, o único, que põe o freguês delirando, causa uma felicidade para sempre, ou...ou produz isso que há por aí.
Já notou que não existe sorvete no Rio? Eu sabia que o senhor ia citar aquele de Ipanema, um outro de Vila Isabel. É. Não vou dizer que não prestam. São regulares. Nem sou de falar mal de colegas. Me refiro a sorvetes, não a sorveteiros. Podem ser de boa-fé, por que não? Conheço muitos, distintos como pessoas, escrupulosos, eles mesmos escolhem as frutas, não facilitam em matéria de higiene, aplicam suas receitas com exatidão... Vai-se ver, saiu um sorvete chochinho, um açúcar gelado, ou pedrento ou derretido. É o comum, meu senhor. Ninguém sabe fazer sorvete.
Eu também não sei, já disse. Portanto, não pense que desmereço os colegas para me elevar aos cornos da Lua. Então como faço este que, pondo de lado a modéstia, é o grande sorvete do mundo? Ah, o senhor não vai acreditar. E talvez eu não deva tomar o seu tempo com essas coisas. Mas simpatizei com o seu ar. Noto que não é um freguês como os outros, que querem apenas se refrescar, pouco lhes importa o que ponham na boca. Vi pela maneira como olhou para a lista de sorvetes. Como reparou em cada nome de fruta ou sabor, comparando os gostos, refletindo... Sentindo prazer, eu sei, já em pensar nos sorvetes. Não era indecisão. Era prazer. Sim, o amigo sabe o que é sorvete.
Mas não respondi à sua pergunta. Este sorvete que vai provar e nunca mais lhe esquecerá o gosto e lhe dará uma tristeza infinita de não o encontrar em outro bairro qualquer, mesmo em outros países... é segredo de um artista húngaro, que passou pelo Rio há dois anos. Digo artista, porque não merece outro nome. O de batismo não posso dizer. Esqueci. Ou melhor, nunca cheguei a aprender direito como se escreve e se pronuncia. Era um homem estranho, de pouca fala, nos conhecemos por acaso, salvei-lhe a vida com um empurrão, no justo momento em que um carro ia esmagá-lo. Para manifestar sua gratidão, me deu a fórmula.
É uma fórmula que vem passando de pai a filho, desde o século XVI — XVI ou XVIII, não estou bem certo. Sabe por que os sorvetes de frutas naturais são chamados de italianos? Porque um italiano andou pela Hungria e lá se apossou da fórmula. Apossou-se, é modo de dizer. O italiano fez tudo para roubá-la, cometeu até dois assassinatos, sem conseguir as quinze mágicas. São quinze linhas, não mais. À base de imitação, levou para a Itália um tipo de sorvete que só de longe lembra este meu. Não é a mesma coisa, claro. O verdadeiro sorvete é uma criação de arte de um húngaro falecido há séculos e transmitido como legado de família. Eu sou depositário da fórmula, e pratico-a sem mérito. O meu amigo húngaro, que pouco depois sumiu, tinha no sangue a tradição e a arte de sorvete.
Já notou que não existe sorvete no Rio? Eu sabia que o senhor ia citar aquele de Ipanema, um outro de Vila Isabel. É. Não vou dizer que não prestam. São regulares. Nem sou de falar mal de colegas. Me refiro a sorvetes, não a sorveteiros. Podem ser de boa-fé, por que não? Conheço muitos, distintos como pessoas, escrupulosos, eles mesmos escolhem as frutas, não facilitam em matéria de higiene, aplicam suas receitas com exatidão... Vai-se ver, saiu um sorvete chochinho, um açúcar gelado, ou pedrento ou derretido. É o comum, meu senhor. Ninguém sabe fazer sorvete.
Eu também não sei, já disse. Portanto, não pense que desmereço os colegas para me elevar aos cornos da Lua. Então como faço este que, pondo de lado a modéstia, é o grande sorvete do mundo? Ah, o senhor não vai acreditar. E talvez eu não deva tomar o seu tempo com essas coisas. Mas simpatizei com o seu ar. Noto que não é um freguês como os outros, que querem apenas se refrescar, pouco lhes importa o que ponham na boca. Vi pela maneira como olhou para a lista de sorvetes. Como reparou em cada nome de fruta ou sabor, comparando os gostos, refletindo... Sentindo prazer, eu sei, já em pensar nos sorvetes. Não era indecisão. Era prazer. Sim, o amigo sabe o que é sorvete.
Mas não respondi à sua pergunta. Este sorvete que vai provar e nunca mais lhe esquecerá o gosto e lhe dará uma tristeza infinita de não o encontrar em outro bairro qualquer, mesmo em outros países... é segredo de um artista húngaro, que passou pelo Rio há dois anos. Digo artista, porque não merece outro nome. O de batismo não posso dizer. Esqueci. Ou melhor, nunca cheguei a aprender direito como se escreve e se pronuncia. Era um homem estranho, de pouca fala, nos conhecemos por acaso, salvei-lhe a vida com um empurrão, no justo momento em que um carro ia esmagá-lo. Para manifestar sua gratidão, me deu a fórmula.
É uma fórmula que vem passando de pai a filho, desde o século XVI — XVI ou XVIII, não estou bem certo. Sabe por que os sorvetes de frutas naturais são chamados de italianos? Porque um italiano andou pela Hungria e lá se apossou da fórmula. Apossou-se, é modo de dizer. O italiano fez tudo para roubá-la, cometeu até dois assassinatos, sem conseguir as quinze mágicas. São quinze linhas, não mais. À base de imitação, levou para a Itália um tipo de sorvete que só de longe lembra este meu. Não é a mesma coisa, claro. O verdadeiro sorvete é uma criação de arte de um húngaro falecido há séculos e transmitido como legado de família. Eu sou depositário da fórmula, e pratico-a sem mérito. O meu amigo húngaro, que pouco depois sumiu, tinha no sangue a tradição e a arte de sorvete.
Este o senhor vai tomar por conta da casa. Mas não espalhe, hem?, que meu sorvete é diferente de todos os outros do Brasil e do Universo. Ninguém até agora reparou nisso, e não quero complicações. Só me abri com o amigo porque percebi logo que estava à altura de receber minha confidência. Vou-lhe dizer mais: este aqui eu só fabrico para um grupo mínimo de pessoas, os entendidos, os marcados. O resto é para a multidão. Boca de siri, ouviu?
(O sorvete húngaro)
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