Penko Gelev |
Estou há dois meses a viver numa pequena ilha africana. Bem sei: já não se fazem ilhas como antigamente, ilhas verdadeiras, ou seja, lugares isolados, apartados do mundo. Esta coluna faz prova disso mesmo: se a estão a ler significa que não estou numa ilha. Isolamento, nos dias que correm, é um luxo ao alcance de poucos. Ainda assim, esta minha Ilha de Moçambique mantém algum do mistério, do encanto e dos inúmeros incômodos de uma ilha à moda antiga.
Morar numa pequena ilha, longe de um grande centro urbano, começa por ser um exercício de simplicidade. Aprendemos a viver com o mínimo — e depressa descobrimos que o mínimo pode ser o máximo. Hoje, por exemplo, sei como responder àquela irritante pergunta de questionário de férias: “Que livro levaria para uma ilha deserta?” — “Um livro eletrônico!”
No meu caso, para ser preciso, é um iPad. Todas as manhãs baixo e leio a edição completa d’O Globo. Além disso, criei nestes últimos sessenta dias uma biblioteca virtual que, se tivesse existência em papel, ocuparia duas ou três malas grandes. Alguns destes e-books são títulos que me habituei a levar quando viajo, porque me ajudam a escrever: “O livro do desassossego” de Bernardo Soares (Fernando Pessoa); “O outono do patriarca”, de García Márquez; “O mandarim” e “A relíquia”, de Eça de Queirós; “Meu quintal é maior do que o mundo”, de Manoel de Barros, entre vários outros.
As livrarias ainda me fazem falta, mas apenas pelo ritual de entrar, olhar os livros, passar os dedos pelas capas. Não tenho saudade alguma dos shoppings e das grandes superfícies comerciais. Descobri que passo muito bem sem a maior parte dos produtos que, vivendo numa cidade grande, me sentia compelido a comprar.
Escrevo esta coluna numa sexta-feira. Não numa qualquer sexta-feira, mas na famosa Black Friday, um movimento que os americanos conseguiram exportar para o resto do mundo, e que consiste em convencer os consumidores de que precisam comprar tudo aquilo de que não necessitam por um preço talvez inferior ao de ontem, mas não ao de anteontem ou ao de amanhã. E as pessoas compram. Algumas endividam-se para comprar.
A Black Friday é o tiro de largada da grande corrida consumista do Natal. Em alguns estados americanos os funcionários públicos são dispensados do serviço para poderem dar azo a uma espécie de furioso ímpeto predatório, só comparável à febre que arrebata os machos de certas espécies na época do acasalamento. Longas filas de consumidores desesperados aguardam de noite, ao frio, pela abertura das lojas. Há casos de lutas. Tumultos explodem aqui e ali.
Só o nome do desastre me parece sensato. Registre-se, a título de curiosidade, que nos primeiros anos do movimento, os lojistas ainda se esforçaram por alterar a designação de Black Friday para Big Friday, mas sem sucesso. Então ficou assim mesmo: a sexta-feira infausta.
Espreitando através da janela do meu laptop tenho um vislumbre desse mundo ansioso. A seguir, assustado, ergo os olhos e o que vejo são as ruas plácidas e ensolaradas desta pequena cidade índica e árabe e afro-portuguesa, com os seus raros e minúsculos bazares, onde se vende uma única marca de sabonetes ou de chocolates, ao lado dos panos africanos (capulanas), e dos enormes e refulgentes búzios que o mar oferece às praias.
“Não é difícil ser feliz”, costumava dizer a minha avó. “Basta ter água limpa, dióspiros e o fulgor do sol.”
A minha avó gostava de dióspiros (caquis). Quem quiser pode substituir por pitangas, romãs, bananas, mangas ou jabuticabas. Acredito que também seja possível ser feliz com maçãs, embora nunca tenha conseguido perceber como foi possível a serpente seduzir Eva com um fruto tão desinteressante. Para mim, a Árvore da Ciência do Bem e do Mal não pode ser senão a romãzeira.
Fui um menino afortunado. Costumava sentar-me no quintal, com a minha avó, vendo as galinhas ciscando entre o capim. O quintal era imenso, como o universo, e a minha avó reinava sobre todas as coisas. Era uma mulher redonda e rija, com cabelos crespos e olhos muito azuis, num feliz acerto dos sangues mais desencontrados. Nestes últimos dias regressei a esse passado feliz, não tanto por via das romãs, que aqui não encontro, mas da simplicidade.
É tão bom não ter. Não preciso de mais do que umas bermudas gastas (nas noites quentes, nem disso) para mergulhar nestas águas mansas, sem dor e sem pecado. Sim, eu sei que o Trump, etc., e o Temer, etc., e as crianças na Síria etc., e o fim do mundo logo ao virar da esquina. Mas — o que querem? — mergulho no mar, com o meu amor pela mão, e não há maldade que me atinja, nem tempo que me desgaste, nem fim que alcance este meu diminuto e remoto mundo.
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