De início, homenageavam autores já falecidos, como Clarice Lispector. Depois, passaram aos que ainda estamos por aqui, e nos últimos três anos honraram com seu carinho Ferreira Gullar, Antônio Torres e a mim. Meses antes, começam a ler nossos livros. Não só em todas as escolas, envolvendo crianças e adolescentes, mas em clubes de livros e rodas de leitura, com adultos discutindo nossas obras.
Por isso, ao entrar na cidade, todo mundo me conhecia — de leituras e fotos. Eu andava pelas ruas, e moradores vinham me abraçar vestidos como meus personagens. Outros se levantavam das mesinhas diante dos bares e vinham comentar sobre o protagonista ou a situação de um romance. Cardápios de restaurantes davam nomes de meus livros aos pratos — por exemplo, “Aos quatro ventos” virou petisco com pastéis de quatro queijos diversos.
Festa Literária de Santa Maria Madalena (Catarina Lattanzi Cariello) |
Lojas ornamentaram fachadas com temas alusivos a minhas histórias. Na praça principal, cada escola montou uma tenda apresentando trabalhos que as crianças tinham feito sobre minha obra. E tinha barraca de livraria, de artesanato, de gastronomia local. Pousadas cheias. Uma grande movimentação turística, que incorporava shows e concertos, com o luxo de apresentação da Banda Euterpe, que existe há 120 anos.
Tudo feito em mutirão pelo conjunto da população. Com algum apoio do comércio e da prefeitura, sim, mas sem padrinho político nem dependência de leis de patrocínio cultural nem queixas agressivas pela falta de recursos.
Às vezes, nos grandes centros, a gente perde a noção de quanto o Brasil profundo é capaz de fazer, a nos dar alento e vigor. Santa Maria Madalena e sua Flim comprovam isso, mas não estão sozinhas. Em matéria de festas literárias, desde que a Flip em Paraty virou modelo para dezenas de outras pelo Brasil adentro, elas se sucedem.
Não apenas em polos turísticos a revitalizar seus atrativos, como sucedeu em Olinda, Araxá, Poços de Caldas, Cachoeira, São João del Rey e tantos outros lugares. Mas também pela apropriação de uma boa ideia a serviço de comunidades até então carentes de uma atividade agregadora desse tipo — como quando surgiram a Flupp e a Flup Pensa, nas UPPs e periferia do Rio, a partir do empenho de entusiastas como Julio Ludemir e Ecio Salles, em iniciativas já consolidadas, revelando autores de outras vivências, que enriquecem a todos nós. Por vezes, contam com o apoio de meios acadêmicos mais antenados — como a Universidade das Quebradas e do Grande Rio no caso da Flupp.
Ou de Passo Fundo, nas memoráveis Jornadas que reuniam cinco mil pessoas sob uma lona de circo para discutir leitura. Ou de Maringá, onde o efeito dos bons professores transparece nas perguntas da plateia. Ou do Cole, congresso de leitura que reúne anualmente em Campinas alguns milhares de interessados no assunto.
O pessoal do livro é assim mesmo. Gosta de conversar sobre o que lê e lhe desperta entusiasmo. Faz questão de compartilhar com os outros a alegria da leitura. Mas reclama que há três anos o governo não lança edital para atualizar bibliotecas escolares com literatura (e como se levam dois anos para preparar e distribuir as encomendas, serão ao menos cinco anos deixando as crianças sem livros novos).
Os encontros se multiplicam. Em Araxá, em Santarém. Sempre na certeza de que bons livros e bons leitores podem ajudar a sair deste pântano medíocre em que caímos. Mesmo que os patrocínios oficiais não se mantenham da mesma forma.
Às vezes, é uma professora aposentada que desenvolve um projeto pessoal (como a Cris, em Petrópolis), professores inventivos ligados a uma ONG (o caso de Arari, Pindaré Mirim, Vitória do Mearim, Santa Rita, Itapecuru, no Maranhão) ou um livreiro que vira animador cultural — como vi em Ponta Grossa ou em Tangará da Serra, Sinop, Sorriso, Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. Admiro há anos escolas particulares de excepcional qualidade, que não deixam a peteca cair — como a Projeto (Porto Alegre), a Balão Vermelho (Juiz de Fora), a Miraflores (Niterói).
Já vi escolas públicas se mobilizarem de forma admirável, como a de Guaratiba a congregar pais e vizinhos, a de Itapoã cobrando pedágio dos motoristas para organizar uma feira de livros e levar autores.
Tudo isso dá alento. Sobretudo na escuridão destes dias de indignação cívica, vergonha do balcão de barganhas políticas, descrença em decisões judiciais incoerentes. Em meio à névoa do desânimo, esses anônimos não nos deixam perder a fé no Brasil. São maiores que políticos desonestos e insensatos, sempre a disputar holofotes, mentir sem escrúpulos e encobrir crimes mútuos.
Ana Maria Machado
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