quarta-feira, fevereiro 28
A leitora
A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.
Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,
branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.
António Ramos Rosa
O cego e o crocodilo
Um dia Abdu preparou uma armadilha na beira do rio para pegar um crocodilo. Que sorte! Pegou um logo em seguida! Mas em vez de levar a presa para o terreiro da sua concessão, resolveu fazer uma senhora marotagem. Catou uma pedra bem grande e arrebentou a cabeça do crocodilo. Depois escondeu o bicho num arbusto. Feito isso, voltou tranquilamente para casa.
Abdu esperou um tempinho e foi convencer o chefe da aldeia a organizar uma caçada de crocodilos. E propôs:
- Quem chegar primeiro com um crocodilo morto ganha uma gorda recompensa.
O chefe pensou um pouco e respondeu:
- Abdu, gostei da ideia! Vamos organizar logo essa caçada!
Encontrou Fatu na soleira de casa. A moça ouviu tudo. Abdu contou como tinha matado o crocodilo, onde tinha escondido, que dali a pouco iria buscá-lo e, como seria o primeiro, ele é que ganharia o prêmio. Enquanto Abdu, com o rosto iluminado de contentamento, revelava sua molecagem à bela amada, um cego passou em silêncio e ouviu a história toda.
"Desta vez eu pego esse espertalhão", disse consigo mesmo o ceguinho, que foi direto para o lugar em que Abdu tinha escondido o crocodilo. Chegando lá, deixou-se cair no barro. Sujou de propósito a roupa e aguardou perto do crocodilo, morto desde a manhã.
Nesse meio tempo, Abdu voltou para casa, vestiu seu lindo bubu azul, finamente bordado, e passou de novo pela casa de Fatu.
- Está na hora - disse à namorada. - A caçada já começou, vou capturar meu crocodilo!
E partiu rindo sozinho na direção do rio, com um enorme bastão na mão. As mulheres que cruzaram com ele se espantaram ao vê-lo tão bem vestido assim, quando todos os homens estavam quase nus na beira do rio, com suas flechas e zagaias.
Abdu explicava a elas:
- Sou tão bom caçador, que vou matar um crocodilo com a maior facilidade e nem vou me sujar! Não tenham dúvida, eu é que vou ganhar a competição!
Nenhum dos caçadores da aldeia tinha conseguido caçar crocodilo algum, quando Abdu chegou no lugar onde tinha escondido sua caça de manhã. Deu com o ceguinho, sentado junto do arbusto. Sem se perturbar, Abdu pegou sua caça e disse ao ceguinho:
- Acabo de matar um crocodilo.
O cego lhe pediu licença para avaliar o peso e o tamanho do bicho. Abdu concordou e colocou o bicho nos ombros do cego. Este deixou o crocodilo cair no barro, e então pôs de novo nos ombros o bichão todo enlameado. Abdu, que agora começava a ficar com pressa, pediu-lhe para devolver o fardo. Mas este, de repente, pôs-se a berrar, pedindo socorro! Abdu entendeu na hora que o ceguinho queria lhe pregar uma peça.
Os outros caçadores chegaram correndo. Abdu quis explicar a situação.
- Chega de conversa! Chega de mentira! - responderam os caçadores, que já tinham sido vítimas das malandragens de Abdu bem mais de uma vez.
Como Abdu continuava a protestar, os caçadores decidiram que cabia ao chefe resolver o assunto.
Foram para a casa do chefe, que todos respeitavam. Lá, primeiro um, depois o outro disseram ter matado o crocodilo.
O chefe, que os ouviu e observou atentamente, declarou:
- Abdu mentiu muitas vezes para a gente. Está sempre querendo nos tapear. Sempre quer ser mais esperto que os outros. É um vigarista, um impostor! Como Abdu, tão bem vestido com seu lindo bubu bordado, pode dizer que está voltando da caça? Olhem só para o ceguinho. Está tão enlameado quanto o crocodilo. Com certeza foi ele que matou o bicho.
Abdu não pôde dizer nada. E o que diria diante daquele raciocínio tão lógico do chefe?
Foi-se embora cabisbaixo. O ceguinho recebeu o prêmio prometido.
É verdade, todo espertalhão sempre acaba encontrando outro mais esperto que ele.
Abdu esperou um tempinho e foi convencer o chefe da aldeia a organizar uma caçada de crocodilos. E propôs:
- Quem chegar primeiro com um crocodilo morto ganha uma gorda recompensa.
O chefe pensou um pouco e respondeu:
- Abdu, gostei da ideia! Vamos organizar logo essa caçada!
Naquela mesma tarde, os homens saíram para caçar crocodilo. Abdu sabia que eles praticamente não tinham chance de pegar um antes dele. Voltou correndo para sua cabana, enquanto os caçadores se espalhavam pela beira do rio, com arcos e flechas envenenadas. Abdu sabia que eles voltariam provavelmente de mãos abanando. Estava feliz da vida com a situação: ele seria o único a trazer um crocodilo! Estava tão feliz que correu para a casa da sua doce amada para lhe contar o segredo. A bela Fatu compreenderia a alegria dele...
Encontrou Fatu na soleira de casa. A moça ouviu tudo. Abdu contou como tinha matado o crocodilo, onde tinha escondido, que dali a pouco iria buscá-lo e, como seria o primeiro, ele é que ganharia o prêmio. Enquanto Abdu, com o rosto iluminado de contentamento, revelava sua molecagem à bela amada, um cego passou em silêncio e ouviu a história toda.
"Desta vez eu pego esse espertalhão", disse consigo mesmo o ceguinho, que foi direto para o lugar em que Abdu tinha escondido o crocodilo. Chegando lá, deixou-se cair no barro. Sujou de propósito a roupa e aguardou perto do crocodilo, morto desde a manhã.
Nesse meio tempo, Abdu voltou para casa, vestiu seu lindo bubu azul, finamente bordado, e passou de novo pela casa de Fatu.
- Está na hora - disse à namorada. - A caçada já começou, vou capturar meu crocodilo!
E partiu rindo sozinho na direção do rio, com um enorme bastão na mão. As mulheres que cruzaram com ele se espantaram ao vê-lo tão bem vestido assim, quando todos os homens estavam quase nus na beira do rio, com suas flechas e zagaias.
Abdu explicava a elas:
- Sou tão bom caçador, que vou matar um crocodilo com a maior facilidade e nem vou me sujar! Não tenham dúvida, eu é que vou ganhar a competição!
Nenhum dos caçadores da aldeia tinha conseguido caçar crocodilo algum, quando Abdu chegou no lugar onde tinha escondido sua caça de manhã. Deu com o ceguinho, sentado junto do arbusto. Sem se perturbar, Abdu pegou sua caça e disse ao ceguinho:
- Acabo de matar um crocodilo.
O cego lhe pediu licença para avaliar o peso e o tamanho do bicho. Abdu concordou e colocou o bicho nos ombros do cego. Este deixou o crocodilo cair no barro, e então pôs de novo nos ombros o bichão todo enlameado. Abdu, que agora começava a ficar com pressa, pediu-lhe para devolver o fardo. Mas este, de repente, pôs-se a berrar, pedindo socorro! Abdu entendeu na hora que o ceguinho queria lhe pregar uma peça.
Os outros caçadores chegaram correndo. Abdu quis explicar a situação.
- Chega de conversa! Chega de mentira! - responderam os caçadores, que já tinham sido vítimas das malandragens de Abdu bem mais de uma vez.
Como Abdu continuava a protestar, os caçadores decidiram que cabia ao chefe resolver o assunto.
Foram para a casa do chefe, que todos respeitavam. Lá, primeiro um, depois o outro disseram ter matado o crocodilo.
O chefe, que os ouviu e observou atentamente, declarou:
- Abdu mentiu muitas vezes para a gente. Está sempre querendo nos tapear. Sempre quer ser mais esperto que os outros. É um vigarista, um impostor! Como Abdu, tão bem vestido com seu lindo bubu bordado, pode dizer que está voltando da caça? Olhem só para o ceguinho. Está tão enlameado quanto o crocodilo. Com certeza foi ele que matou o bicho.
Abdu não pôde dizer nada. E o que diria diante daquele raciocínio tão lógico do chefe?
Foi-se embora cabisbaixo. O ceguinho recebeu o prêmio prometido.
É verdade, todo espertalhão sempre acaba encontrando outro mais esperto que ele.
terça-feira, fevereiro 27
Chatos e outros tipos
Ernest Ange Duez |
Dom Quixote era do time dos chatos. Não deixava nem os moinhos em paz.
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A onipresença dos chatos é notícia. Há sempre pelo menos um clamando no deserto.
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Chato persistente é pleonasmo. Chato obstinado é uma praga.
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Diante de um chato, melhor é contar até vinte.
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Gastronomicamente falando, o preferido pelos concretistas é o molho madeira.
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Digam o que disserem os especialistas, o exercício de viver ainda é o mais cansativo.
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Estranho é pensar que os modernistas de 22 andavam de bonde.
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Era um poeta que, julgando ter um rei na barriga, dizia ter sido engravidado pela Poesia.
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Minha querida amiga, eu fico triste quando não me dás atenção e dizes que nada temos em comum. Temos, sim: nós dois não gostamos muito de mim.
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Um poeta corre sempre o venturoso risco de dizer palavras ao vento e vê-las fugir transformadas em pássaros.
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Até os últimos anos do século XX, morrer de amor era tão comum que nos atestados constava a expressão “causas naturais”.
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Que pecado, os mortos de olhos tão fechadamente verdes.
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De um poeta não lido, o sonho de consumo não é consumir, é ser consumido.
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Um poema concreto há de ser sólido do piso até o teto.
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Nos dias em que a presunção nos toma, julgamos estar plagiando Shakespeare.
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Se eu continuar assim morto por mais alguns dias, tenho chance de entrar no Guinness.
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Pretendo morrer poeticamente, quando descobrir como.
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Pode não ser o caso, mas um morto parece sempre estar sabendo muito bem o que faz.
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Pobres mortos: nunca mais o amor, as aflições, a vontade de morrer.
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Boas fotos são aquelas em que não pareço nada comigo.
***
Até no campeonato de velhice eu fracassei: fui vice.
Raul Drewnick
As pessoas e seus livros
Lembro que logo que entrei na faculdade de direito, os olhos do meu pai brilhavam ao me ver perambulando com aquelas dezenas de livros que eu mal compreendia. Francesco Carnelutti, Cândido Dinamarco, Maria Helena Diniz, Franco Montoro, Dalmo Dallari. O simples fato de ver os livros ao meu lado já parecia ser quase suficiente para alegrar aqueles olhos de pai professor, que, no fundo, sabia que frequentemente eu lia sobre teoria geral do direito civil pensando seriamente se meu açaí seria com banana ou com morango.
Até que um dia aquele olhar risonho foi tomado por uma nuvem negra e a expressão pacífica do pisciano ganhou ares de assombro. Ele não podia acreditar no que estava vendo. Ele não queria acreditar que a própria filha, tão Manus e tão alérgica a wasabi quanto ele, pudesse estar cometendo tamanha atrocidade. Ele se aproximou lentamente, como quem estica o pescoço assustado para observar uma vítima de acidente ou um animal selvagem, e me perguntou o que eu estava fazendo.
“Estudando”, eu respondi, um pouco desconcertada com a existência de dúvida perante uma cena tão autoexplicativa. Então ele disse aos solavancos com os olhos arregalados “VO. CÊ. ES. TÁ. GRI. FAN. DO. O. LI. VRO. COM. CA. NE. TA?”. Eu, cada vez mais desnorteada, respondi que sim, estava grifando com marca texto laranja e fazendo anotações com a caneta azul, afinal, o livro era meu, não era da biblioteca. Certo?
Foi então que eu descobri que as pessoas têm relações absolutamente distintas com seus livros. O que parece normalíssimo para alguns, parece um verdadeiro sacrilégio para outros. Temas como emprestar ou não emprestar, doar ou não doar, anotar ou não anotar, dobrar ou não dobrar, tornam-se dilemas tão shakespearianos quanto ser ou não ser.
Até que um dia aquele olhar risonho foi tomado por uma nuvem negra e a expressão pacífica do pisciano ganhou ares de assombro. Ele não podia acreditar no que estava vendo. Ele não queria acreditar que a própria filha, tão Manus e tão alérgica a wasabi quanto ele, pudesse estar cometendo tamanha atrocidade. Ele se aproximou lentamente, como quem estica o pescoço assustado para observar uma vítima de acidente ou um animal selvagem, e me perguntou o que eu estava fazendo.
“Estudando”, eu respondi, um pouco desconcertada com a existência de dúvida perante uma cena tão autoexplicativa. Então ele disse aos solavancos com os olhos arregalados “VO. CÊ. ES. TÁ. GRI. FAN. DO. O. LI. VRO. COM. CA. NE. TA?”. Eu, cada vez mais desnorteada, respondi que sim, estava grifando com marca texto laranja e fazendo anotações com a caneta azul, afinal, o livro era meu, não era da biblioteca. Certo?
Foi então que eu descobri que as pessoas têm relações absolutamente distintas com seus livros. O que parece normalíssimo para alguns, parece um verdadeiro sacrilégio para outros. Temas como emprestar ou não emprestar, doar ou não doar, anotar ou não anotar, dobrar ou não dobrar, tornam-se dilemas tão shakespearianos quanto ser ou não ser.
Eu confesso que realmente adoro anotar coisas nos meus livros. Puxar setas, grifar frases, colocar asteriscos. E não tenho qualquer problema em fazer isso a caneta. Até com caneta vermelha, se for preciso. Meus livros frequentemente se parecem com a bandeira do orgulho gay. No entanto, tenho a mais profunda aversão a pessoas que dobram a pontinha da página para marcar algo que julguem relevante. Isso sim me tira do sério.
Minha mãe faz algumas anotações, mas sempre a lápis. Meu pai é absolutamente incapaz de interferir nas linhas. Quando muito, coloca seu nome na primeira página. Minha tia compra o livro, lê e doa. Acho a coisa mais linda do mundo. E não tenho a menor capacidade de fazer o mesmo. Preferiria doar dinheiro vivo para bibliotecas públicas do que doar meus livros. Simplesmente não consigo evitar esse sentimento egoísta de amar prateleiras gorduchas.
Outro dia minha irmã me perguntou por que eu não tinha um Kindle. Eu, antes de lembrar daquele aparelho para ler livros digitais, confundi Kindle com kinder e me perguntei por que minha irmã achava que eu deveria ter ovos de chocolate recheados com surpresas nessa fase da vida. Mas depois que entendi, respondi, quase ofendida, “Ué Nina, porque eu gosto de livros!”. Ela me olhou com aquela cara de administradora hi-tech e disse “os livros não deixam de ser livros por serem digitais”. Até hoje não sei bem o que pensar, me mantendo no conservadorismo do papel.
Soma-se a isso a traumática experiência de emprestar livros. Quantos livros foram e não voltaram? Quantos livros ficaram nas nossas prateleiras sem que saibamos exatamente quem nos emprestou? Trata-se de uma prática cujos índices de insucesso rondam os 98%.
Ninguém dá atenção para esse assunto, mas a relação das pessoas com os seus livros é tão íntima quanto uma vida de casal. Há pormenores, traumas, manias. Há sutilezas, pânicos, bloqueios. Prefiro que mexam no meu queijo do que mexam nos meus livros. Eu hein, vai que dobram a pontinha da página.
segunda-feira, fevereiro 26
Nossa imaginação precisa da literatura mais do que nunca
Vamos partir de uma situação que grande parte de nós já vivenciou. Estamos saindo do cinema, depois de termos visto uma adaptação de um livro do qual gostamos muito. Na verdade, até que gostamos do filme também: o sentido foi mantido, a escolha do elenco foi adequada, e a trilha sonora reforçou a camada afetiva da narrativa. Por que então sentimos que algo está fora do lugar? Eu penso logo em Fim de Caso, do inglês Graham Greene, levado às telas por Neil Jordan. Mas você pode pensar em Harry Potter, em Alice no País das Maravilhas, em qualquer um dos filmes baseados em romances do Cormac McCarthy. No meu caso, eu tinha a Julianne Moore no papel feminino principal, e com ela nada pode dar muito errado, né? Então, por que me senti um pouco traída e com uma sensação de que havia faltado alguma coisa?
O que sempre falta em um filme sou eu. Parto dessa ideia simples e poderosa, sugerida pelo teórico Wolfgang Iser em um de seus livros, para afirmar que nunca precisamos tanto ler ficção e poesia quanto hoje, porque nunca precisamos tanto de faíscas que ponham em movimento o mecanismo livre da nossa imaginação. Nenhuma forma de arte ou objeto cultural guarda a potência escondida por aquele monte de palavras impressas na página.
Essa potência vem, entre outros aspectos, do tanto que a literatura exige de nós, leitores. Não falo do esforço de compreender um texto, nem da atenção que as histórias e poemas exigem de nós – embora sejam incontornáveis também. Penso no tanto que precisamos investir de nós, como sujeitos afetivos e como corpos sensíveis, para que as palavras se tornem um mundo no qual penetramos. É sempre bom ver Julianne Moore na tela... O problema é que ela, ali, toma o espaço que, de alguma forma, eu havia preenchido na narrativa quando a li.
Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente. Trata-se de uma energia que o teórico Hans Ulrich Gumbrecht chama de “presença” e que remete a um contato com o mundo que afeta o corpo do indivíduo para além e para aquém do pensamento racional.
Muitos eventos produzem presença, é claro: jogos e exercícios esportivos, shows de música, encontros com amigos, cerimônias religiosas e relações amorosas e sexuais são exemplos óbvios. Por que, então, defender uma prática eminentemente intelectual, como a experiência literária, com o objetivo de “produzir presença”, isto é, de despertar sensações corpóreas e afetos? A resposta está, como já evoquei mais acima, na potência guardada pela ficção e a poesia para disparar a imaginação. Mas o que é, afinal, a imaginação, essa noção tão corriqueira e sobre a qual refletimos tão pouco?
Proponho pensar a imaginação como um espaço de liberdade ilimitada, no qual, a partir de estímulos do mundo exterior, somos confrontados (mas também despertados) a responder com memórias, sentimentos, crenças e conhecimentos para forjar, em última instância, aquilo de faz de cada um de nós diferente dos demais. A leitura de textos literários é uma forma privilegiada de disparar esse mecanismo imenso, porque demanda de nós todas essas reações de modo ininterrupto, exige que nosso corpo esteja ele próprio presente no espaço ficcional com que nos deparamos, sob pena de não existir espaço ficcional algum.
Mais ainda, a experiência literária nos dá a chance de vivenciarmos possibilidades que, no cotidiano, estão fechadas a nós: de explorarmos essas possibilidades como se estivéssemos, de fato, presentes. E a imaginação é o palco em que a vivência dessas possibilidades é encenada, por meio do jogo entre identificações e rejeições.
Resta pensar por que é tão importante encenar possibilidades. Em primeiro lugar, como o escritor Bernardo Carvalho destacou recentemente, estamos vivendo uma confusão generalizada entre realidade e representação artística, em que esta última vem sofrendo sanções violentas, por se haver perdido a medida da diferença entre o real e a retomada desse real em obras artísticas. Carvalho inicia seu texto afirmando, muito acertadamente, que rejeitar ou proibir a representação ficcional do horror que há no mundo é sintoma de um desespero – o desespero causado pela impossibilidade de eliminarmos o horror real. Além disso, diz ele mais adiante, recusar a legitimidade ou a existência de determinadas obras de arte denota o temor à ambivalência dos nossos próprios desejos, sentimentos e certezas.
Aprendemos desde cedo que, para que haja vida em sociedade, não podemos pôr em prática, na vida cotidiana, toda essa ambivalência. Um dos poderes da obra de arte é, precisamente, o de oferecer uma experiência cuja própria premissa é a existência de paradoxos – afinal, a ficção cria um mundo que, fora dela, não existe, mas no qual precisamos acreditar. A imaginação entra em cena para ampliar as contradições, sem, contudo, tornar a experiência incoerente: estamos, agora, no domínio da associação livre e espontânea entre o que lemos, o que lembramos, o que sabemos e sentimos. Idealmente, ao lermos uma obra literária, não caímos na confusão entre a realidade e a representação dela, e sim nos conectamos a uma realidade cotidianamente inacessível, por meio da interação entre o que o texto propõe e a nossa imaginação. Nesta, acessamos aqueles que somos, mas também aqueles que poderíamos ser – maravilhosos ou terríveis.
Há, ainda, outra defesa para a primazia da literatura como “disparadora” da imaginação. Para ela, recorro a uma história real, que se desenrola neste momento, na Universidade Stanford, uma das melhores do mundo e, além disso, localizada em meio ao Vale do Silício. Lá, hoje se desenvolve boa parte das pesquisas científicas mais importantes sobre inteligência artificial – assunto, aliás, que até pouco tempo atrás só era central em obras de ficção científica (e nem me deixem começar a falar da imaginação de gente como Ursula Le Guin ou Philip K. Dick!)
Em Stanford, encontramos uma dessas figuras que só um ambiente absurdamente privilegiado é capaz de produzir (e de que meritocracia nenhuma, sozinha, pode dar conta): o americano Sam Ginn está no terceiro ano de sua graduação, e irá se formar em ciência da computação e... em literatura comparada (desde 2014, a universidade oferece e incentiva a prática de dupla graduação em computação e em uma área das humanidades). O principal interesse de Sam é na replicação artificial da consciência humana. E um dos principais autores que guiam a pesquisa dele não é um neurocientista ou um programador como ele próprio, mas o filósofo Martin Heidegger (ele fala sobre isso nesta entrevista incrível). Vale contar, também, que, quando não está em sala de aula, Sam atua no laboratório de inteligência artificial da universidade, um trabalho pelo qual recebe, aos 20 anos, um salário que deixaria bastante felizes muitos pesquisadores brasileiros experientes.
No começo deste mês, em um evento em homenagem à obra de Gumbrecht, Sam lembrou a uma plateia formada por professores e pesquisadores de história, filosofia e literatura, que muitas elucubrações que sempre haviam sido do domínio da ficção hoje se tornaram objeto de pesquisas reais. Disse ainda que, se aos cientistas cabem os esforços e a ambição virtualmente irrestritos de inventar o futuro, cabe a nós, das ditas humanidades, oferecer um terreno aberto de discussão sobre esse futuro. Esse terreno constituiria uma base não propriamente ética (o que seria um encargo que excede as nossas capacidades, por mais que alguns de nós se achem aptos a ele...), mas simplesmente humanista, no melhor sentido do termo: um espaço de debate não calcado em posições preconcebidas ou objetivos concretamente delimitados. Entre os futuros imaginados por jovens como ele, Sam mencionou – provocando taquicardia em muitos, e em mim – a possibilidade concreta de uma existência em que a morte terá sido derrotada pela ciência. Se isso será bom ou ruim, não me cabe dizer. Sei apenas que a imaginação humana tem muito trabalho pela frente, e que nenhum esforço da literatura para despertá-la terá sido em vão.
Ligia G. Diniz
Daniela Zekina |
Essa potência vem, entre outros aspectos, do tanto que a literatura exige de nós, leitores. Não falo do esforço de compreender um texto, nem da atenção que as histórias e poemas exigem de nós – embora sejam incontornáveis também. Penso no tanto que precisamos investir de nós, como sujeitos afetivos e como corpos sensíveis, para que as palavras se tornem um mundo no qual penetramos. É sempre bom ver Julianne Moore na tela... O problema é que ela, ali, toma o espaço que, de alguma forma, eu havia preenchido na narrativa quando a li.
Somos bombardeados todo dia, o dia inteiro, por informações. Estamos saturados de dados e de interpretações. A literatura – para além do prazer intelectual, inegável – oferece algo diferente. Trata-se de uma energia que o teórico Hans Ulrich Gumbrecht chama de “presença” e que remete a um contato com o mundo que afeta o corpo do indivíduo para além e para aquém do pensamento racional.
Muitos eventos produzem presença, é claro: jogos e exercícios esportivos, shows de música, encontros com amigos, cerimônias religiosas e relações amorosas e sexuais são exemplos óbvios. Por que, então, defender uma prática eminentemente intelectual, como a experiência literária, com o objetivo de “produzir presença”, isto é, de despertar sensações corpóreas e afetos? A resposta está, como já evoquei mais acima, na potência guardada pela ficção e a poesia para disparar a imaginação. Mas o que é, afinal, a imaginação, essa noção tão corriqueira e sobre a qual refletimos tão pouco?
Proponho pensar a imaginação como um espaço de liberdade ilimitada, no qual, a partir de estímulos do mundo exterior, somos confrontados (mas também despertados) a responder com memórias, sentimentos, crenças e conhecimentos para forjar, em última instância, aquilo de faz de cada um de nós diferente dos demais. A leitura de textos literários é uma forma privilegiada de disparar esse mecanismo imenso, porque demanda de nós todas essas reações de modo ininterrupto, exige que nosso corpo esteja ele próprio presente no espaço ficcional com que nos deparamos, sob pena de não existir espaço ficcional algum.
Mais ainda, a experiência literária nos dá a chance de vivenciarmos possibilidades que, no cotidiano, estão fechadas a nós: de explorarmos essas possibilidades como se estivéssemos, de fato, presentes. E a imaginação é o palco em que a vivência dessas possibilidades é encenada, por meio do jogo entre identificações e rejeições.
Resta pensar por que é tão importante encenar possibilidades. Em primeiro lugar, como o escritor Bernardo Carvalho destacou recentemente, estamos vivendo uma confusão generalizada entre realidade e representação artística, em que esta última vem sofrendo sanções violentas, por se haver perdido a medida da diferença entre o real e a retomada desse real em obras artísticas. Carvalho inicia seu texto afirmando, muito acertadamente, que rejeitar ou proibir a representação ficcional do horror que há no mundo é sintoma de um desespero – o desespero causado pela impossibilidade de eliminarmos o horror real. Além disso, diz ele mais adiante, recusar a legitimidade ou a existência de determinadas obras de arte denota o temor à ambivalência dos nossos próprios desejos, sentimentos e certezas.
Aprendemos desde cedo que, para que haja vida em sociedade, não podemos pôr em prática, na vida cotidiana, toda essa ambivalência. Um dos poderes da obra de arte é, precisamente, o de oferecer uma experiência cuja própria premissa é a existência de paradoxos – afinal, a ficção cria um mundo que, fora dela, não existe, mas no qual precisamos acreditar. A imaginação entra em cena para ampliar as contradições, sem, contudo, tornar a experiência incoerente: estamos, agora, no domínio da associação livre e espontânea entre o que lemos, o que lembramos, o que sabemos e sentimos. Idealmente, ao lermos uma obra literária, não caímos na confusão entre a realidade e a representação dela, e sim nos conectamos a uma realidade cotidianamente inacessível, por meio da interação entre o que o texto propõe e a nossa imaginação. Nesta, acessamos aqueles que somos, mas também aqueles que poderíamos ser – maravilhosos ou terríveis.
Há, ainda, outra defesa para a primazia da literatura como “disparadora” da imaginação. Para ela, recorro a uma história real, que se desenrola neste momento, na Universidade Stanford, uma das melhores do mundo e, além disso, localizada em meio ao Vale do Silício. Lá, hoje se desenvolve boa parte das pesquisas científicas mais importantes sobre inteligência artificial – assunto, aliás, que até pouco tempo atrás só era central em obras de ficção científica (e nem me deixem começar a falar da imaginação de gente como Ursula Le Guin ou Philip K. Dick!)
Em Stanford, encontramos uma dessas figuras que só um ambiente absurdamente privilegiado é capaz de produzir (e de que meritocracia nenhuma, sozinha, pode dar conta): o americano Sam Ginn está no terceiro ano de sua graduação, e irá se formar em ciência da computação e... em literatura comparada (desde 2014, a universidade oferece e incentiva a prática de dupla graduação em computação e em uma área das humanidades). O principal interesse de Sam é na replicação artificial da consciência humana. E um dos principais autores que guiam a pesquisa dele não é um neurocientista ou um programador como ele próprio, mas o filósofo Martin Heidegger (ele fala sobre isso nesta entrevista incrível). Vale contar, também, que, quando não está em sala de aula, Sam atua no laboratório de inteligência artificial da universidade, um trabalho pelo qual recebe, aos 20 anos, um salário que deixaria bastante felizes muitos pesquisadores brasileiros experientes.
No começo deste mês, em um evento em homenagem à obra de Gumbrecht, Sam lembrou a uma plateia formada por professores e pesquisadores de história, filosofia e literatura, que muitas elucubrações que sempre haviam sido do domínio da ficção hoje se tornaram objeto de pesquisas reais. Disse ainda que, se aos cientistas cabem os esforços e a ambição virtualmente irrestritos de inventar o futuro, cabe a nós, das ditas humanidades, oferecer um terreno aberto de discussão sobre esse futuro. Esse terreno constituiria uma base não propriamente ética (o que seria um encargo que excede as nossas capacidades, por mais que alguns de nós se achem aptos a ele...), mas simplesmente humanista, no melhor sentido do termo: um espaço de debate não calcado em posições preconcebidas ou objetivos concretamente delimitados. Entre os futuros imaginados por jovens como ele, Sam mencionou – provocando taquicardia em muitos, e em mim – a possibilidade concreta de uma existência em que a morte terá sido derrotada pela ciência. Se isso será bom ou ruim, não me cabe dizer. Sei apenas que a imaginação humana tem muito trabalho pela frente, e que nenhum esforço da literatura para despertá-la terá sido em vão.
Ligia G. Diniz
Língua muda
Trocar de computador virou provação a qualquer usuário comum. Quem não se tornou um iniciado em informática tem de percorrer uma estrada acidentada, cada vez mais complexa e sem sentido.
Os sistemas e aplicativos que vêm instalados de fábrica estão repletos de porcarias que nunca serão utilizadas pela maioria de nós. Mas servem para nos impor navegações desnecessárias, na tentativa de vender outras porcarias. E para criar um labirinto insondável, capaz de tornar mais lento e complicado o funcionamento da máquina. Claro, porcarias de difícil remoção, que terminam exigindo a presença — e os custos — de um técnico.
Os chamados cabos crossover ou cabos cruzados nunca foram popularizados e têm operação pouco amigável a usuários comuns, embora sirvam para ligar o computador antigo ao novo e permitir a transferência direta da maior parte do conteúdo instalado. As placas de rede mais modernas prometem o mesmo, mas nem sempre prometer é fazer. Ou seja, alternativas eficientes àquela gincana por HDs internos e externos, pen drives, horas infindáveis de trabalho e paciência continuam inacessíveis à maioria.
Depois de tudo funcionando, a desagradável surpresa para quem, como eu, escreve todos os dias: só existem versões de bons dicionários da língua portuguesa compatíveis até o Windows 7. Liguei para as editoras dos nossos principais dicionários. Péssimo atendimento, falta de informações e nenhum interesse em resolver meu problema — que é de muitos — ou ouvir sugestões de consumidor.
É possível instalar em paralelo uma máquina virtual, com algum sistema operacional antigo compatível com os dicionários. Ou seja, tem-se a opção de comprar uma máquina de última geração e maquiá-la para parecer mais antiga. Um espetáculo!
Esse é o retrato perfeito dessa modernidade incapaz de entender a importância de uma língua que não foi construída em bits e é guardada na nobreza dos dicionários. O mesmo labirinto da falta de identidade que tenta dar solenidade aos computadores usando o som sintetizado das teclas das velhas máquinas de datilografia. Ou colocando sons de telefones de baquelita nos smartphones.
A chateação transformou-se em desolação quando visitei lojas das principais redes de livrarias, em São Paulo. O “ponto alto” foi encontrar um vendedor de uma delas, no Shopping Iguatemi, que não sabia o que é dicionário. Era muito jovem, vá lá, mas é desolador ver um vendedor de livraria não ter o registro da palavra “dicionário” no próprio repertório linguístico. E ainda perguntar, antipático, “Dicionário?!”, com aquela empáfia enfadonha dos jovens ignorantes. Sim, parece mentira, mas o moço realmente não sabia o que é um dicionário.
Buscou ajuda de um colega mais experiente e o meu quadro de solidão de consumidor mudou pouco: o homem, bem passado dos quarenta, não conseguia conversar a respeito da versão eletrônica do produto porque não tinha qualquer familiaridade com o mundo digital. Balbuciou algo do tipo “Parece que vem um CD dentro do livro” ao me mostrar os exemplares impressos, mas empacou quando eu disse que aquelas versões eram incompatíveis com meu sistema operacional. Saí sem decifrar quais palavras do meu vocabulário ele não conhecia.
E por falar em livrarias, é impressionante essa febre atual de livros sem palavras, que servem apenas para colorir e estão salvando o mercado editorial. Santo Deus! Faz lembrar o que disse o escritor José Saramago diante dos econômicos 140 caracteres do Twitter, antevendo que nessa pisada o homem ainda vai acabar “chegando ao grunhido”.
Continuo sem bons dicionários no computador. Como viajo muito, será bem “animador” tirar da estante para enfiar na mala livrões que pesam, no barato, uma tonelada de ausência de inteligência do mercado digital.
Muito mais grave é testemunhar uma perigosa realidade: a língua portuguesa está virando estrangeira em Pindorama. Quando o dicionário passa a ser tratado com irrelevância, quando o “pai dos burros” vira filho bastardo de cavalos batizados, azar do futuro.
Conversando com um amigo também iniciado em dicionários, constatamos desolados que vamos convivendo com esse fenômeno mais visível nas grandes cidades: livrarias cheias de zumbis. Exemplares primitivos de uma espécie que, não demora, terá polegares diferentes, próprios para teclar em dispositivos cada vez mais minúsculos — como o resultado que geram. E sairão por aí espalhando seus grunhidos digitais.
Os sistemas e aplicativos que vêm instalados de fábrica estão repletos de porcarias que nunca serão utilizadas pela maioria de nós. Mas servem para nos impor navegações desnecessárias, na tentativa de vender outras porcarias. E para criar um labirinto insondável, capaz de tornar mais lento e complicado o funcionamento da máquina. Claro, porcarias de difícil remoção, que terminam exigindo a presença — e os custos — de um técnico.
Os chamados cabos crossover ou cabos cruzados nunca foram popularizados e têm operação pouco amigável a usuários comuns, embora sirvam para ligar o computador antigo ao novo e permitir a transferência direta da maior parte do conteúdo instalado. As placas de rede mais modernas prometem o mesmo, mas nem sempre prometer é fazer. Ou seja, alternativas eficientes àquela gincana por HDs internos e externos, pen drives, horas infindáveis de trabalho e paciência continuam inacessíveis à maioria.
Depois de tudo funcionando, a desagradável surpresa para quem, como eu, escreve todos os dias: só existem versões de bons dicionários da língua portuguesa compatíveis até o Windows 7. Liguei para as editoras dos nossos principais dicionários. Péssimo atendimento, falta de informações e nenhum interesse em resolver meu problema — que é de muitos — ou ouvir sugestões de consumidor.
É possível instalar em paralelo uma máquina virtual, com algum sistema operacional antigo compatível com os dicionários. Ou seja, tem-se a opção de comprar uma máquina de última geração e maquiá-la para parecer mais antiga. Um espetáculo!
Esse é o retrato perfeito dessa modernidade incapaz de entender a importância de uma língua que não foi construída em bits e é guardada na nobreza dos dicionários. O mesmo labirinto da falta de identidade que tenta dar solenidade aos computadores usando o som sintetizado das teclas das velhas máquinas de datilografia. Ou colocando sons de telefones de baquelita nos smartphones.
A chateação transformou-se em desolação quando visitei lojas das principais redes de livrarias, em São Paulo. O “ponto alto” foi encontrar um vendedor de uma delas, no Shopping Iguatemi, que não sabia o que é dicionário. Era muito jovem, vá lá, mas é desolador ver um vendedor de livraria não ter o registro da palavra “dicionário” no próprio repertório linguístico. E ainda perguntar, antipático, “Dicionário?!”, com aquela empáfia enfadonha dos jovens ignorantes. Sim, parece mentira, mas o moço realmente não sabia o que é um dicionário.
Buscou ajuda de um colega mais experiente e o meu quadro de solidão de consumidor mudou pouco: o homem, bem passado dos quarenta, não conseguia conversar a respeito da versão eletrônica do produto porque não tinha qualquer familiaridade com o mundo digital. Balbuciou algo do tipo “Parece que vem um CD dentro do livro” ao me mostrar os exemplares impressos, mas empacou quando eu disse que aquelas versões eram incompatíveis com meu sistema operacional. Saí sem decifrar quais palavras do meu vocabulário ele não conhecia.
E por falar em livrarias, é impressionante essa febre atual de livros sem palavras, que servem apenas para colorir e estão salvando o mercado editorial. Santo Deus! Faz lembrar o que disse o escritor José Saramago diante dos econômicos 140 caracteres do Twitter, antevendo que nessa pisada o homem ainda vai acabar “chegando ao grunhido”.
Continuo sem bons dicionários no computador. Como viajo muito, será bem “animador” tirar da estante para enfiar na mala livrões que pesam, no barato, uma tonelada de ausência de inteligência do mercado digital.
Muito mais grave é testemunhar uma perigosa realidade: a língua portuguesa está virando estrangeira em Pindorama. Quando o dicionário passa a ser tratado com irrelevância, quando o “pai dos burros” vira filho bastardo de cavalos batizados, azar do futuro.
Conversando com um amigo também iniciado em dicionários, constatamos desolados que vamos convivendo com esse fenômeno mais visível nas grandes cidades: livrarias cheias de zumbis. Exemplares primitivos de uma espécie que, não demora, terá polegares diferentes, próprios para teclar em dispositivos cada vez mais minúsculos — como o resultado que geram. E sairão por aí espalhando seus grunhidos digitais.
domingo, fevereiro 25
Os loucos da província
Ele era o louco dos sábados. Um estrambótico simpático, com mania de pacificador, e feioso de dar dó.
Os pontos azuis e vermelhos brilhavam, longe, às oito da manhã, e quase sempre nos sábados quentes do equador. As manchas coloridas cresciam na avenida Getúlio Vargas, se alongavam em figuras geométricas, e quando passavam em frente à janela do meu quarto davam forma e volume ao corpo.
Vermelhos o rosto, o pescoço e a cabeça calva; azuis e brancas as listras do pijama, inesquecível. Ali marchava o Bombalá, o primeiro louco da minha vida de jovem ginasiano.
Marchava descalço, à frente da banda da PM; os soldados-músicos não molestavam seu maestro distraído, de passos incertos e sinuosos. Vez ou outra, Bombalá estacava para admirar um pássaro, que só ele enxergava; depois ria, batia asas e conversava com a ave, que já voava, longe; mas o papo se prolongava num diálogo secreto: o homem na terra, o pássaro no silêncio do espaço, enquanto a banda militar passava como um estrondo de metais e tambores na manhã incomum.
Foi num sábado tumultuado que a gente viu o Bombalá de muito perto. Qualquer música ao vivo e em movimento o atraía, e dessa vez eram os hinos patrióticos e marchas militares interpretados pelas bandas do Colégio Estadual do Amazonas e do Rui Barbosa.
Ensaiávamos de uniforme completo, tão adaptado ao clima quente e úmido: camisa de manga comprida com abotoaduras, gravata preta com a insígnia dourada, cinturão de couro sobre a calça comprida de flanela cinza, botas e meias pretas. Os alunos do Rui Barbosa usavam um uniforme azul, da cor da bandeira pátria.
As bandas tocavam músicas diferentes, e marchavam em direções opostas, mas na mesma pista da avenida. O encontro era inevitável; o choque e a batalha, imprevisíveis.
Lembro que voaram baquetas e cornetas, a boca de uma tuba sufocou uma cabeça miúda, os metais se chocavam numa gritaria de gralhas, e o Chiado, do segundo ginasial, tombou ensanguentado nas pedras cinzentas.
A valentia e o destemor podiam ser atributos da idade, mas o ódio mútuo era inexplicável. No auge da selvageria surgiu o estrambótico de pijama listrado. Ficou plantado entre os que vinham à direita da avenida e os que iam à esquerda, mas agora tudo estava confuso, fundido na mesma massa de rancor e sangue. Impávido, ele gesticulava como um maestro do outro mundo, e gritava, cheio de alegria: “Cambada de doidos! Eu sou o Bombalá e não sei quem sou, mas vim em paz e quero a paz!”.
Só louco mesmo para alimentar tanta fantasia de paz entre bandos inimigos e furiosos, numa batalha em que todos perderiam. Mas foi assim que terminaram os ensaios para o desfile do Dia da Pátria naquele sábado: 5 de setembro de 1964.
Às vezes, quando a banda da PM dava meia-volta na Getúlio Vargas, o Bombalá prosseguia sua marcha sem cadência na larga avenida, a cabeça raspada, escaldada pelo sol a pino, os pés esfolados pelas pedras em brasa. Da janela do quarto, eu seguia com o olhar o maestro pacificador. Aos poucos a cabeça e o pijama se tornavam pontos vermelhos e azuis, e essa mancha colorida entrava na Joaquim Nabuco, continuava pela Vila Municipal até o fim da cidade, depois se embrenhava na floresta, atravessava o Brasil até aparecer na minha lembrança em pleno carnaval na rua do Sumidouro, onde o fedor do rio Pinheiros é insuportável, e o Bloco dos Duendes batuca e pula numa alegria doida de Bombalá.
Os pontos azuis e vermelhos brilhavam, longe, às oito da manhã, e quase sempre nos sábados quentes do equador. As manchas coloridas cresciam na avenida Getúlio Vargas, se alongavam em figuras geométricas, e quando passavam em frente à janela do meu quarto davam forma e volume ao corpo.
Vermelhos o rosto, o pescoço e a cabeça calva; azuis e brancas as listras do pijama, inesquecível. Ali marchava o Bombalá, o primeiro louco da minha vida de jovem ginasiano.
Marchava descalço, à frente da banda da PM; os soldados-músicos não molestavam seu maestro distraído, de passos incertos e sinuosos. Vez ou outra, Bombalá estacava para admirar um pássaro, que só ele enxergava; depois ria, batia asas e conversava com a ave, que já voava, longe; mas o papo se prolongava num diálogo secreto: o homem na terra, o pássaro no silêncio do espaço, enquanto a banda militar passava como um estrondo de metais e tambores na manhã incomum.
Ensaiávamos de uniforme completo, tão adaptado ao clima quente e úmido: camisa de manga comprida com abotoaduras, gravata preta com a insígnia dourada, cinturão de couro sobre a calça comprida de flanela cinza, botas e meias pretas. Os alunos do Rui Barbosa usavam um uniforme azul, da cor da bandeira pátria.
As bandas tocavam músicas diferentes, e marchavam em direções opostas, mas na mesma pista da avenida. O encontro era inevitável; o choque e a batalha, imprevisíveis.
Lembro que voaram baquetas e cornetas, a boca de uma tuba sufocou uma cabeça miúda, os metais se chocavam numa gritaria de gralhas, e o Chiado, do segundo ginasial, tombou ensanguentado nas pedras cinzentas.
A valentia e o destemor podiam ser atributos da idade, mas o ódio mútuo era inexplicável. No auge da selvageria surgiu o estrambótico de pijama listrado. Ficou plantado entre os que vinham à direita da avenida e os que iam à esquerda, mas agora tudo estava confuso, fundido na mesma massa de rancor e sangue. Impávido, ele gesticulava como um maestro do outro mundo, e gritava, cheio de alegria: “Cambada de doidos! Eu sou o Bombalá e não sei quem sou, mas vim em paz e quero a paz!”.
Só louco mesmo para alimentar tanta fantasia de paz entre bandos inimigos e furiosos, numa batalha em que todos perderiam. Mas foi assim que terminaram os ensaios para o desfile do Dia da Pátria naquele sábado: 5 de setembro de 1964.
Às vezes, quando a banda da PM dava meia-volta na Getúlio Vargas, o Bombalá prosseguia sua marcha sem cadência na larga avenida, a cabeça raspada, escaldada pelo sol a pino, os pés esfolados pelas pedras em brasa. Da janela do quarto, eu seguia com o olhar o maestro pacificador. Aos poucos a cabeça e o pijama se tornavam pontos vermelhos e azuis, e essa mancha colorida entrava na Joaquim Nabuco, continuava pela Vila Municipal até o fim da cidade, depois se embrenhava na floresta, atravessava o Brasil até aparecer na minha lembrança em pleno carnaval na rua do Sumidouro, onde o fedor do rio Pinheiros é insuportável, e o Bloco dos Duendes batuca e pula numa alegria doida de Bombalá.
A você, hipócrita leitor, meu igual, meu irmão (por supuesto!)
Há algo de muito íntimo em receber um livro com dedicatória: nestes tempos dominados pelo computador e pela pressa, ler algo escrito de próprio punho por pessoa que se estima pode ser uma experiência rara e emocionante
“Para Mercedes, por supuesto”: assim Gabriel García Márquez dedicou, para minha inveja, “O Amor nos Tempos do Cólera” a sua mulher, escancarando todo o seu amor com apenas duas palavrinhas — “por supuesto”. Na edição brasileira que tenho deste livro que há muito tempo acompanha os meus devaneios literários, meu pai escreveu a minha mãe: “Para você, o amor nos tempos do… amor” (romantismo que compensou dedicando “A Terrorista”, de Doris Lessing, com ironia — “Leia, mas não seja”. O conselho deve ter sido seguido, pois o casamento permaneceu firme). Já noutro exemplar, espanhol, um grande amigo me homenageou: “A mi hermano Marcelo Franco, ésta que es la más bonita novela escrita en Latinoamérica en la lengua de Cervantes”. Portanto, mantenho três edições do livro de García Márquez nas minhas estantes sempre atulhadas: uma toda anotada por mim e as duas com dedicatórias — vício de bibliômano.
Ler com atenção e colecionar dedicatórias é com certeza um dos sinais distintivos da bibliomania. Na verdade, uma das formas de reconhecer um bibliomaníaco é o fato de que lemos de fio a pavio qualquer livro: as orelhas, a dedicatória, as notas de rodapé, as referências bibliográficas e até o colofão. Holbrook Jackson, autor de uma preciosidade criminosamente ainda não traduzida no Brasil, “The Anatomy of Bibliomania”, reservou um capítulo inteiro de seu livro para discorrer sobre o prazer de colecionar livros com pedigree, aqueles que têm dedicatórias ou anotações de quem os possuiu. No meu caso, não sou exceção à regra: venho há anos comprando livros dedicados pelos próprios autores e consegui alguns itens dos quais me orgulho com exagero talvez doentio: Pedro Nava, Afonso Arinos, Erico Verissimo, Rubem Braga… Mas se esta faina de acumulação é estranha, Holbrook também nos lembra que a bibliomania causa menos males do que, diz ele, a “sanidade dos sãos”. Acho que procede (aliás, é curioso que a bibliomania seja vista com estranheza enquanto a cinefilia desfruta de status de atividade essencialmente intelectual. Mas não se animem os cinéfilos: a julgar pelos cadernos de cultura dos jornais, a leitura de quadrinhos já está quase ocupando o seu lugar).
Tenho fama de ser bom “dedicador” de livros. Amigos pedem-me conselhos quando se sentem embaraçados com a folha em branco e a necessidade de escrever nela algumas linhas para que o presente fique, por assim dizer, mais personalizado. Creio mesmo que esta minha pequena glória não seja imerecida e, para mantê-la, tenho minhas regras e truques. Revelo aqui apenas um: em desespero, grito por socorro — por exemplo, adaptei para uso próprio, muitas vezes, aquela dedicatória feita por meu pai, “Para você, o amor nos tempos do… amor”. Mas, para minha danação eterna, tendo à verborragia quando Cupido entra em cena. Há alguns anos, quando aquela que desorganizou o que estava organizado entrou em minha vida, passei a dar-lhe dezenas de livros, todos com longas e digressivas dedicatórias. Em troca, ganhava dela livros e presentes com cartões — quando havia algum cartão — com poucas linhas, geralmente algo direto do tipo “Para Marcelo” ou “Feliz aniversário”, e essa concisão, comparada com os meus cartapácios, me roubava noites de sono. Não gosto de pensar que meu caos interno tenha ficado preservado em dezenas de dedicatórias amontoadas em estantes alheias (há aí, percebo agora, uma sutil e freudiana forma de poder na relação entre um verborrágico e uma comedida). Contudo, noutras vezes acertei, ainda que também estivesse confuso: a uma mulher especial que meus transtornos não permitiram que fôssemos além, digamos, de uma espécie de modus vivendi sentimental, dei “Amor em Veneza”, de Andrea di Robilant, e, aproveitando o próprio título impresso na folha de rosto, escrevi: “Para B., AMOR EM VENEZA — e também em Goiânia”.
Em “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth, estruturado como se fosse uma longa sessão de análise, apenas repeti a única frase que o psicanalista diz a Portnoy depois de mais de duzentos e cinquenta páginas de reclamações do seu paciente (talvez, imagino, como reconhecimento da minha própria tagarelice): “Para B.: agora a gente pode começar?”. Tenho o consolo de pensar que ela, daqui a muitos anos, possa dar de cara por acaso, numa tarde preguiçosa ou numa noite insone, com esses livros perdidos nas estantes e, lendo o que escrevi, sinta condescendência pela minha desorganização sentimental, ternura pelo pouco que tivemos e uma vaga decepção pelas promessas não cumpridas dessas dedicatórias.
(Sigo pela senda romântica e me traio revelando outro truque: para os namorados, os sonetos de amor de Camões nunca falham. Ninguém resistiria a estes versos, ainda que eventualmente transcritos sem menção ao autor: “Mas, conquanto não pode haver desgosto/Onde esperança falta, lá me esconde/Amor um mal, que mata e não se vê:/Que dias há que na alma me tem posto/Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei por quê”. Ou estes: “Porque é tamanha a bem-aventurança/O dar-vos quanto tenho e quanto posso/Que, quanto mais vos pago, mais vos devo”. Usem, mas não espalhem a ideia. Ou usem e digam que os versos são do Renato Russo.)
Há um clássico problema decorrente de dedicar livros: pode-se encontrá-los num sebo. Como agir? Bem, há o método “Naipaul” e o método “Shaw”. Parece que V.S. Naipaul teria encontrado um livro por ele dedicado a Paul Theroux, seu amigo fraterno transformado desde então em inimigo íntimo. Já George Bernard Shaw viu num sebo um livro que dedicara certa vez a alguém, comprou-o e dedicou-o novamente — a primeira dedicatória: “Para …, com afeto, G.B.S”; a segunda: “Para …, com renovado afeto, G.B.S.”.
Se essas histórias são realmente verdadeiras, não sei, mas um passeio por sebos em Goiânia mostra amizades e amores traídos à venda e, o que talvez seja pior, expostos à permanente curiosidade de quem nem mesmo pretende comprar aqueles livros. Recebi de amigos algumas pérolas com dedicatórias, como “Marcelo, se já tiver este livro, devolva-o a mim”, ou outra, feita num exemplar de “Jaime Bunda, o Agente Secreto”, do angolano Pepetela, que o pudor, meu casto leitor, me impede de transcrever aqui. Se fosse eu o autor de tão elegantes linhas, não gostaria de vê-las tornadas públicas. Talvez a solução seja usar o clássico “Com amizade” e assinar apenas o primeiro nome, o que diluiria a possibilidade de reconhecimento.
Percebo que derivei pelo rumo das dedicatórias feitas por quem presenteia o livro, então voltemos à vaca fria das dedicatórias feitas pelos próprios escritores. Tenho as minhas preferidas. De imediato, lembro-me de “O Pequeno Príncipe”. Se o encanto do livro perdeu-se por conta das excessivas referências em concursos de miss, ao menos ainda podemos nos deliciar com a dedicatória de Antoine de Saint-Exupéry a Léon Werth. Primeiro, ele pede perdão às crianças “por dedicar este livro a uma pessoa grande”; depois, explica os seus motivos; por fim, ele se emenda: “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. (Mas poucas se lembram disso.) Corrijo, portanto, a dedicatória: a León Werth quando ele era pequeno”.
Muitas outras são as dedicatórias famosas na literatura mundial, desde a de Cervantes, que suplicou longamente ao Duque de Béjar, Marquês de Gibraleón, Conde de Benalcázar e de Bañares, Visconde de Puebla de Alcocer, Senhor das Vilas de Capilla, Curiel e Burgillo para que recebesse o seu “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha” sob sua proteção, até a de Baudelaire, que encerrou o poema-dedicatória de “As Flores do Mal” com esta quadra (na tradução de Ivan Junqueira): “É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção,/Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado./Tu conheces, leitor, o monstro delicado/— Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. Da pusilanimidade lamurienta à ofensa descarada, pode-se dizer. No Brasil, fiquemos com Machado, que fez Brás Cubas iniciar as “Memórias Póstumas” com uma mórbida — e hoje famosa — dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. O grande Harold Bloom, que considera Machado de Assis uma espécie de milagre, recusa-se a citar essa dedicatória em “Gênio” por achá-la “terrível demais”. Não me consta que o verme tenha reclamado.
Mas esses momentos de pura literatura na forma de dedicatória são exceções. Uma rápida olhada nos livros atulhados na imensa bibliopilha de livros não lidos em que se transformou meu apartamento parece mostrar que mesmo os grandes escritores são adeptos da simplicidade na hora de dedicar os livros que, com certeza, custaram a eles angustiosas horas de ponderações sobre le mot juste — há uma infindável coleção de dedicatórias reduzidas ao mínimo possível: “Para Ida” (Ralph Ellison, “O Homem Invisível”); “Para H.L.” (Philip Roth, “Nêmesis”); “A Phil Stone” (William Faulkner, “O Povoado”); “A Pilar” (José Saramago, “Todos os Nomes”). Às vezes pode ser divertido, mesmo nas mais sucintas dedicatórias, acompanhar as mutações de afeto, como no caso de Hemingway, que começou com “Este livro é para Hadley e para John Hadley Nicanor” (“O Sol Também se Levanta”), homenageando a primeira mulher e o filho, passou por “Este livro é para Martha Gellhorn” (“Por Quem os Sinos Dobram”), sua terceira mulher, e terminou com “A Mary, com amor” (“Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores”), a quarta e última esposa. Não sei se Vinicius de Moraes seguiu o mesmo exemplo, mas, se o fez, talvez não tenha escrito livros suficientes para todas as musas.
“Para Mercedes, por supuesto”: assim Gabriel García Márquez dedicou, para minha inveja, “O Amor nos Tempos do Cólera” a sua mulher, escancarando todo o seu amor com apenas duas palavrinhas — “por supuesto”. Na edição brasileira que tenho deste livro que há muito tempo acompanha os meus devaneios literários, meu pai escreveu a minha mãe: “Para você, o amor nos tempos do… amor” (romantismo que compensou dedicando “A Terrorista”, de Doris Lessing, com ironia — “Leia, mas não seja”. O conselho deve ter sido seguido, pois o casamento permaneceu firme). Já noutro exemplar, espanhol, um grande amigo me homenageou: “A mi hermano Marcelo Franco, ésta que es la más bonita novela escrita en Latinoamérica en la lengua de Cervantes”. Portanto, mantenho três edições do livro de García Márquez nas minhas estantes sempre atulhadas: uma toda anotada por mim e as duas com dedicatórias — vício de bibliômano.
Ler com atenção e colecionar dedicatórias é com certeza um dos sinais distintivos da bibliomania. Na verdade, uma das formas de reconhecer um bibliomaníaco é o fato de que lemos de fio a pavio qualquer livro: as orelhas, a dedicatória, as notas de rodapé, as referências bibliográficas e até o colofão. Holbrook Jackson, autor de uma preciosidade criminosamente ainda não traduzida no Brasil, “The Anatomy of Bibliomania”, reservou um capítulo inteiro de seu livro para discorrer sobre o prazer de colecionar livros com pedigree, aqueles que têm dedicatórias ou anotações de quem os possuiu. No meu caso, não sou exceção à regra: venho há anos comprando livros dedicados pelos próprios autores e consegui alguns itens dos quais me orgulho com exagero talvez doentio: Pedro Nava, Afonso Arinos, Erico Verissimo, Rubem Braga… Mas se esta faina de acumulação é estranha, Holbrook também nos lembra que a bibliomania causa menos males do que, diz ele, a “sanidade dos sãos”. Acho que procede (aliás, é curioso que a bibliomania seja vista com estranheza enquanto a cinefilia desfruta de status de atividade essencialmente intelectual. Mas não se animem os cinéfilos: a julgar pelos cadernos de cultura dos jornais, a leitura de quadrinhos já está quase ocupando o seu lugar).
Tenho fama de ser bom “dedicador” de livros. Amigos pedem-me conselhos quando se sentem embaraçados com a folha em branco e a necessidade de escrever nela algumas linhas para que o presente fique, por assim dizer, mais personalizado. Creio mesmo que esta minha pequena glória não seja imerecida e, para mantê-la, tenho minhas regras e truques. Revelo aqui apenas um: em desespero, grito por socorro — por exemplo, adaptei para uso próprio, muitas vezes, aquela dedicatória feita por meu pai, “Para você, o amor nos tempos do… amor”. Mas, para minha danação eterna, tendo à verborragia quando Cupido entra em cena. Há alguns anos, quando aquela que desorganizou o que estava organizado entrou em minha vida, passei a dar-lhe dezenas de livros, todos com longas e digressivas dedicatórias. Em troca, ganhava dela livros e presentes com cartões — quando havia algum cartão — com poucas linhas, geralmente algo direto do tipo “Para Marcelo” ou “Feliz aniversário”, e essa concisão, comparada com os meus cartapácios, me roubava noites de sono. Não gosto de pensar que meu caos interno tenha ficado preservado em dezenas de dedicatórias amontoadas em estantes alheias (há aí, percebo agora, uma sutil e freudiana forma de poder na relação entre um verborrágico e uma comedida). Contudo, noutras vezes acertei, ainda que também estivesse confuso: a uma mulher especial que meus transtornos não permitiram que fôssemos além, digamos, de uma espécie de modus vivendi sentimental, dei “Amor em Veneza”, de Andrea di Robilant, e, aproveitando o próprio título impresso na folha de rosto, escrevi: “Para B., AMOR EM VENEZA — e também em Goiânia”.
Em “O Complexo de Portnoy”, de Philip Roth, estruturado como se fosse uma longa sessão de análise, apenas repeti a única frase que o psicanalista diz a Portnoy depois de mais de duzentos e cinquenta páginas de reclamações do seu paciente (talvez, imagino, como reconhecimento da minha própria tagarelice): “Para B.: agora a gente pode começar?”. Tenho o consolo de pensar que ela, daqui a muitos anos, possa dar de cara por acaso, numa tarde preguiçosa ou numa noite insone, com esses livros perdidos nas estantes e, lendo o que escrevi, sinta condescendência pela minha desorganização sentimental, ternura pelo pouco que tivemos e uma vaga decepção pelas promessas não cumpridas dessas dedicatórias.
(Sigo pela senda romântica e me traio revelando outro truque: para os namorados, os sonetos de amor de Camões nunca falham. Ninguém resistiria a estes versos, ainda que eventualmente transcritos sem menção ao autor: “Mas, conquanto não pode haver desgosto/Onde esperança falta, lá me esconde/Amor um mal, que mata e não se vê:/Que dias há que na alma me tem posto/Um não sei quê, que nasce não sei onde,/Vem não sei como, e dói não sei por quê”. Ou estes: “Porque é tamanha a bem-aventurança/O dar-vos quanto tenho e quanto posso/Que, quanto mais vos pago, mais vos devo”. Usem, mas não espalhem a ideia. Ou usem e digam que os versos são do Renato Russo.)
Há um clássico problema decorrente de dedicar livros: pode-se encontrá-los num sebo. Como agir? Bem, há o método “Naipaul” e o método “Shaw”. Parece que V.S. Naipaul teria encontrado um livro por ele dedicado a Paul Theroux, seu amigo fraterno transformado desde então em inimigo íntimo. Já George Bernard Shaw viu num sebo um livro que dedicara certa vez a alguém, comprou-o e dedicou-o novamente — a primeira dedicatória: “Para …, com afeto, G.B.S”; a segunda: “Para …, com renovado afeto, G.B.S.”.
Se essas histórias são realmente verdadeiras, não sei, mas um passeio por sebos em Goiânia mostra amizades e amores traídos à venda e, o que talvez seja pior, expostos à permanente curiosidade de quem nem mesmo pretende comprar aqueles livros. Recebi de amigos algumas pérolas com dedicatórias, como “Marcelo, se já tiver este livro, devolva-o a mim”, ou outra, feita num exemplar de “Jaime Bunda, o Agente Secreto”, do angolano Pepetela, que o pudor, meu casto leitor, me impede de transcrever aqui. Se fosse eu o autor de tão elegantes linhas, não gostaria de vê-las tornadas públicas. Talvez a solução seja usar o clássico “Com amizade” e assinar apenas o primeiro nome, o que diluiria a possibilidade de reconhecimento.
Percebo que derivei pelo rumo das dedicatórias feitas por quem presenteia o livro, então voltemos à vaca fria das dedicatórias feitas pelos próprios escritores. Tenho as minhas preferidas. De imediato, lembro-me de “O Pequeno Príncipe”. Se o encanto do livro perdeu-se por conta das excessivas referências em concursos de miss, ao menos ainda podemos nos deliciar com a dedicatória de Antoine de Saint-Exupéry a Léon Werth. Primeiro, ele pede perdão às crianças “por dedicar este livro a uma pessoa grande”; depois, explica os seus motivos; por fim, ele se emenda: “Todas as pessoas grandes foram um dia crianças. (Mas poucas se lembram disso.) Corrijo, portanto, a dedicatória: a León Werth quando ele era pequeno”.
Muitas outras são as dedicatórias famosas na literatura mundial, desde a de Cervantes, que suplicou longamente ao Duque de Béjar, Marquês de Gibraleón, Conde de Benalcázar e de Bañares, Visconde de Puebla de Alcocer, Senhor das Vilas de Capilla, Curiel e Burgillo para que recebesse o seu “O Engenhoso Fidalgo D. Quixote de La Mancha” sob sua proteção, até a de Baudelaire, que encerrou o poema-dedicatória de “As Flores do Mal” com esta quadra (na tradução de Ivan Junqueira): “É o Tédio! — O olhar esquivo à mínima emoção,/Com patíbulos sonha, ao cachimbo agarrado./Tu conheces, leitor, o monstro delicado/— Hipócrita leitor, meu igual, meu irmão!”. Da pusilanimidade lamurienta à ofensa descarada, pode-se dizer. No Brasil, fiquemos com Machado, que fez Brás Cubas iniciar as “Memórias Póstumas” com uma mórbida — e hoje famosa — dedicatória: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico com saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”. O grande Harold Bloom, que considera Machado de Assis uma espécie de milagre, recusa-se a citar essa dedicatória em “Gênio” por achá-la “terrível demais”. Não me consta que o verme tenha reclamado.
Mas esses momentos de pura literatura na forma de dedicatória são exceções. Uma rápida olhada nos livros atulhados na imensa bibliopilha de livros não lidos em que se transformou meu apartamento parece mostrar que mesmo os grandes escritores são adeptos da simplicidade na hora de dedicar os livros que, com certeza, custaram a eles angustiosas horas de ponderações sobre le mot juste — há uma infindável coleção de dedicatórias reduzidas ao mínimo possível: “Para Ida” (Ralph Ellison, “O Homem Invisível”); “Para H.L.” (Philip Roth, “Nêmesis”); “A Phil Stone” (William Faulkner, “O Povoado”); “A Pilar” (José Saramago, “Todos os Nomes”). Às vezes pode ser divertido, mesmo nas mais sucintas dedicatórias, acompanhar as mutações de afeto, como no caso de Hemingway, que começou com “Este livro é para Hadley e para John Hadley Nicanor” (“O Sol Também se Levanta”), homenageando a primeira mulher e o filho, passou por “Este livro é para Martha Gellhorn” (“Por Quem os Sinos Dobram”), sua terceira mulher, e terminou com “A Mary, com amor” (“Do Outro Lado do Rio, Entre as Árvores”), a quarta e última esposa. Não sei se Vinicius de Moraes seguiu o mesmo exemplo, mas, se o fez, talvez não tenha escrito livros suficientes para todas as musas.
sábado, fevereiro 24
Descoberta no futuro
Os grandes livros são raramente apreciados pelos seus contemporâneos. Só a mediocridade literária alcança de saída o grande público. A posteridade é que descobrirá, em regra, o que os contemporâneos não viramTristão de Athayde
Assim começa o livro...
Minha vida
Para Donizete Galvão
Agora tem um ano que mudamos para a nossa casa no Paraíso. Ela não está pronta ainda. Falta emboçar as paredes de fora e pintar as de dentro, mas, orgulhoso, meu pai fala que pelo menos não precisamos mais ter medo de ficar sem dinheiro no fim do mês para pagar o aluguel.
Uma correria danada durante a construção. Todos ajudaram. No dia de bater a laje, os colegas do meu irmão da Manufatora organizaram um mutirão. Parecia um caminho de formiga: lá embaixo, os que misturavam areia, cimento, pedra‑brita e água; lá em cima, os que espalhavam a massa sobre o madeirame; e, entre uns e outros, os baldes, transbordando, passavam de mão em mão até alcançar a escada. Eu mesmo, nesse dia, fiquei numa lufa‑lufa sem fim: montado na bicicleta Philips, freio contrapedal, pneu‑balão, que meu pai tinha comprado de segunda mão para mim, emendei várias viagens entre a Vila Teresa e o Paraíso, carregando sacos de pão com molho de tomate e garra
Aquilo lembrava mesmo um caminho de formigas, que, depois que o sol morre, eu e meu pai combatemos nos altos dos pastos. São cabeçudas, que arrancam sangue da gente, as enfezadas. Nosso bairro ainda não tem luz. A água tiramos de uma cisterna de vinte metros de fundura, com uma bomba Marumby. Todos nós revezamos para garantir o banho e para minha mãe cozinhar e lavar roupa para fora. Hoje são dez trouxas, mas já foram umas quinze por semana.
Eu sinto falta da Vila Teresa. Quando no ano passado o caminhão encostou para levar a mudança, corri para o quintalzinho, onde vivia em camaradagem com lesmas, grilos, paquinhas, minhocas e até um sapo‑boi, na estação das águas, e abri o berreiro. Ali passei os melhores anos da minha vida, brincando de bola no campinho, de pique, indo à escola… Eu tinha um gato, branquinho branquinho, de rabo assustado, chamado Ronrom. Ele veio preso dentro de um saco de estopa, porque falaram que não podia ver o caminho, senão voltava para a casa antiga. Durante o trajeto, preocupado se ele estava sentindo falta de ar deixei que pusesse a cabeça para fora. Bastou a gente chegar no Paraíso e ele sumiu. Passei vários dias andando de um lado para o outro, especulando sobre ele, mas nunca mais ouvimos o miado do Ronrom. Ainda hoje penso que, se não tivesse deixado ele olhar a paisagem…
Mas minha mãe disse que os gatos são assim mesmo, mal-agradecidos, e prometeu me dar um cachorro de presente de aniversário. Ele vai chamar Joli, um nome bonito que ouvi na praça Santa Rita, onde meu pai vende pipoca. Ele tem um carrinho verde e, de vez em quando, me deixa tomando conta para eu poder aprender a não ter medo de trabalho. Apareceu lá certa vez um adestrador com um pastor‑alemão e o bitelo só faltava falar, porque entender, ele entendia tudo. O homem mandava ele deitar, rolar, sentar, ficar paradinho feito estátua, buscar um pedaço de pau lá‑longe, e todos batiam palmas, encantados. Só quando pediu para tirar o chapéu do meu pai é que não gostei, porque ele levou um susto e quase caiu de costas e o povo morreu de rir (eu também, mas disfarcei). Esse pastor‑alemão é que chamava Joli.
Está sendo difícil adaptar aqui, porque antes a gente vivia num cortiço, mas com água encanada e luz elétrica, e a rua, calçada de paralelepípedo, era perto do Centro. Atravessávamos a ponte nova e já estávamos na praça Rui Barbosa, onde meu irmão e minha irmã rodavam no sábado à noite. Lá estão os dois cinemas da cidade, a padaria mais bonita, a maior lanchonete, os bancos e, para tristeza do meu pai, coitado, o melhor ponto para vender pipoca, ocupado pelo xará dele, seu Sebastião Lopes. A praça Santa Rita não oferece nada, só a missa da igreja Matriz e a fonte‑luminosa. Mas o lugar, escuro, por causa das árvores que escondem a iluminação dos postes, só acolhe quem não presta, como diz a minha mãe. Imagina então a freguesia do meu pai… Mas na Vila Teresa também havia inconvenientes. O correio de casas, muito perto do rio Pomba, ficava coberto pelas águas quando vinha a enchente.
A minha irmã detesta o Paraíso, porque é longe e feio. Na hora de trabalhar, ela tem que ir a pé até o Beira‑Rio para pegar um ônibus. Ela acorda antes do sol e desce a morraria xingando e lamentando o dia em que nasceu. Ela reclama da poeirama, na estiagem, e do barro, na época das chuvas. E vive ameaçando que um dia casa com alguém só para ir embora. Aí minha mãe fica brava, porque ela fala que quis sair da Vila Teresa para dar uma vida mais digna para os filhos, mas principalmente para minha irmã, onde já se viu criar uma menina no meio de marginais e mulheres‑da‑vida? Meu irmão entra na discussão e acusa minha irmã de ser metida, que ela tem um rei na barriga e que, em vez de louvar a família, cospe no prato que come. E meu pai, que não gosta de confusão, começa a assobiar, a cantar, sai de fininho, e só volta quando colocaram uma pedra sobre o assunto.
Agora, que estou terminando o primário, meu pai avisou que vai me inscrever no Senai, para eu poder aprender uma profissão.Ele quer que eu seja torneiro‑mecânico que nem meu irmão, e sonha em um dia a gente ir para São Paulo trabalhar nas fábricas de carro, que é onde está o futuro, ele diz. A minha mãe chora só de pensar nisso, porque por ela nós nunca vamos nos separar. Mas meu irmão já recebeu até proposta de emprego em Diadema, que, dizem, é longe. E minha irmã está namorando firme e deve casar mesmo, não demora muito. Eu fico triste, porque só vai restar eu e devo seguir também para fora. Mas eu não queria ser torneiro‑mecânico, queria mesmo era ser bancário do Banco do Brasil, que nem o marido da minha professora, dona Aurora.
sexta-feira, fevereiro 23
Onde há uma biblioteca...
Abre las puertas y entra. Entra en este espacio que aguarda por ti, en este ámbito donde cada palabra es un don que recibimos como regalo. Recorre todos los rincones de esta casa de la libertad, respira este aire que no sabe de fronteras, déjate llevar por la corriente de aromas que anuncia los tesoros de la biblioteca. Estamos en un lugar especial, sería imposible confundirlo. Desde el cielo debe de verse como un punto de luz brillando con la intensidad mayor, como un aleph que contiene la memoria y los sueños de la humanidad. Una luz, sí. Una luz que ilumina como un faro entre las tinieblas, con el rítmico latido de un corazón inmenso que expande ondas de libertad y de esperanza por el territorio que la circunda.Quizá podríamos seguir viviendo si nos faltara este aire que hace vibrar todas las células de nuestro cuerpo, quizá las personas continuaríamos con nuestra existencia rutinaria si no existiese la biblioteca, pero algún lugar decisivo quedaría vacío en nuestro corazón. Nos faltaría la energía que nos hace desear una vida mejor, una ciudadanía más libre, una sociedad más justa. Nos dolería no escuchar la voz de las personas que sufrieron la historia y la de las que la sufren ahora mismo; sería insoportable oír solo las palabras de los que pretenden dirigir y controlar nuestras vidas. Para que esto no suceda, abre las puertas y entra. Ábrelas siempre, todas las puertas, pues cada vez que lo haces te incorporas al río subterráneo que alimenta a la biblioteca, al torrente de libertad que la hace vivir y le da ánimos renovados.
Abre los libros y sumérgete en el agua de la vida que brota irreprimible desde sus páginas. Déjate arrastrar por el torbellino de voces, de lenguas, de olores, de paisajes. No olvides nunca la fascinación que experimentamos en los años de infancia, cuando se nos revela la dimensión mágica que tienen las palabras y descubrimos que las páginas de los libros pueden contener el mundo entero. Como las campesinas que se afanan en la rebusca de espigas entre los surcos después de la siega, también los escritores recogen las palabras una a una y elaboran con ellas el pan humilde de sus textos. De este modo hacen que lleguen hasta nosotros, siempre nuevas y siempre sorprendentes, pues los libros poseen la insólita capacidad de revivir y reinventarse en cada nueva lectura. Todas las personas necesitamos las historias, los sueños, las palabras, tal vez sea una característica inscrita en el ADN de la humanidad. Las necesitamos como el comer, como beber agua, claro que sí. Para entender el mundo y para entendernos a nosotros mismos, para soñar otros destinos, para celebrar los dones que la vida nos da. Sabemos que no podríamos vivir sin el aliento de la imaginación y de la creatividad, sin las palabras que expresan la variedad y la belleza de nuestros deseos y de nuestros sentimientos. Por todo eso, abramos los libros. Ellos contienen los sueños, las pasiones, los miedos, los amores, las risas. En sus páginas habita la inmensa variedad de sentimientos y experiencias de la humanidad, de las personas que viven ahora en cualquier lugar del mundo y de las que desaparecieron hace muchos años. Los libros: ríos de palabras que se nos ofrecen con generosidad para ayudarnos a aprender el o?cio de vivir, para cambiarnos la vida e implicarnos en la transformació n del mundo.
Donde háy una biblioteca hay una luz que atraviesa todos los muros, una luz que se hace más intensa cuando crecen las personas que la incorporan a sus vidas. Las mismas personas que, más tarde, al caminar por calles y plazas, llevarán con ellas el reaejo de esa luz, la semilla de ese mundo nuevo que algún día haremos crecer. Un mundo más solidario, más plural, más culto, más justo. Un mundo donde no se escuche la voz adormecedora de los poderosos, sino las palabras múltiples y diversas de todas las personas que habitamos esta casa común que es nuestro planeta.Agustín Fernández Paz
Antes e depois do Estado Islâmico: Voluntários reinauguram biblioteca da Universidade de Mossul
Antes em meio à poeira, à penumbra e aos destroços de guerra, os livros da Biblioteca Central da Universidade de Mossul que sobreviveram à ocupação de mais de dois anos do Estado Islâmico na cidade iraquiana voltaram a estar disponíveis para empréstimos. Nesta terça-feira (6), o historiador iraquiano Omar Muhammed, que criou o blog Mosul Eye e coordena um grupo de voluntários no projeto de recuperação da biblioteca, anunciou sua reabertura.
No perfil oficial do blog no Twitter, ele publicou fotos de algumas salas da nova biblioteca. A original, em um imponente prédio no campus da universidade, foi invadida pelo Estado Islâmico em junho de 2014 e virou o quartel-general do “ministério da educação” dos jihadistas até janeiro de 2017, quando eles deixaram o local danificado.
Foto publicada em fevereiro de 2018 pelo historiador iraquiano Omar Muhammed, responsável pelo blog Mosul Eye, comemora a reabertura da biblioteca da Universidade de Mossul, em um novo edifício no campus (Foto: Divulgação/Mosul Eye)
Em entrevista ao G1, Muhammed explicou que a biblioteca foi reaberta fora do prédio original, que sofreu danos estruturais graves após a batalha pela retomada de Mossul. Durante meses, voluntários se arriscaram dentro do prédio para resgatar parte dos mais de 800 mil livros, manuscritos, periódicos e outras obras, incluindo raridades, dos escombros do edifício.
“A partir de agora ela está aberta todo dia, as pessoas podem entrar e especialmente pedir livros. É incrível. É um prédio pequeno, mas muito bom”, explicou ele.
O historiador diz que, por enquanto, podem emprestar obras para fora do prédio apenas os professores, pós-graduandos e pesquisadores da Universidade de Mossul.
O esforços de reabertura da biblioteca fazem parte do trabalho de reconstrução da universidade. Mas o historiador afirma que o trabalho principal de resgate, limpeza e reorganização dos livros se deve ao trabalho dos voluntários.
Muhammed coordena esse e outros projetos de longe: no fim de 2015, ele precisou fugir de Mossul, com medo de ser morto por causa do blog. Ele só revelou sua identidade em dezembro de 2017, seis meses depois de o exército do Iraque expulsar o Estado Islâmico da cidade, em uma dura batalha que durou nove meses e deixou a maior parte do lado oeste de Mossul completamente destruída.
Ao G1, o historiador, que atualmente vive na Europa, mas não divulga em que cidade por motivos de segurança, afirmou que o grupo de voluntários conseguiu cumprir o prazo, estabelecido por eles mesmos, de reabrir a biblioteca em fevereiro deste ano, pouco mais de um ano após a saída do EI.
Além de limpar a biblioteca e resgatar os livros que sobreviveram à batalha, o grupo também recebe doações de livros ao redor do mundo, em qualquer língua. Além dos cerca de 32 mil livros resgatados do prédio original, outros cerca de 50 mil chegaram de vários países.
“Durante a batalha pela retomada da cidade, o Estado Islâmico queimou e destruiu a biblioteca. Mas, felizmente, depois que a batalha acabou, conseguimos achar e resgatar livros”, afirmou ele.
A campanha internacional mobilizou pessoas de todas as partes do mundo, principalmente no Ocidente, explicou Muhammed. “Já recebemos mais ou menos 50 mil livros de muitos países, e estamos esperando por mais. Gostaria de agradecer a todos que fizeram isso acontecer, que pensaram na biblioteca, que nos apoiaram mesmo sem poder doar um livro.”
Depois de meses de trabalho de limpeza e remoção de milhares de livros para um novo prédio, iraquianos de Mossul comemoraram nesta terça-feira (6) a reinauguração da biblioteca.
Foto publicada em fevereiro de 2018 pelo historiador iraquiano Omar Muhammed, responsável pelo blog Mosul Eye, comemora a reabertura da biblioteca da Universidade de Mossul, em um novo edifício no campus (Foto: Divulgação/Mosul Eye)
Em entrevista ao G1, Muhammed explicou que a biblioteca foi reaberta fora do prédio original, que sofreu danos estruturais graves após a batalha pela retomada de Mossul. Durante meses, voluntários se arriscaram dentro do prédio para resgatar parte dos mais de 800 mil livros, manuscritos, periódicos e outras obras, incluindo raridades, dos escombros do edifício.
“A partir de agora ela está aberta todo dia, as pessoas podem entrar e especialmente pedir livros. É incrível. É um prédio pequeno, mas muito bom”, explicou ele.
O historiador diz que, por enquanto, podem emprestar obras para fora do prédio apenas os professores, pós-graduandos e pesquisadores da Universidade de Mossul.
O esforços de reabertura da biblioteca fazem parte do trabalho de reconstrução da universidade. Mas o historiador afirma que o trabalho principal de resgate, limpeza e reorganização dos livros se deve ao trabalho dos voluntários.
Muhammed coordena esse e outros projetos de longe: no fim de 2015, ele precisou fugir de Mossul, com medo de ser morto por causa do blog. Ele só revelou sua identidade em dezembro de 2017, seis meses depois de o exército do Iraque expulsar o Estado Islâmico da cidade, em uma dura batalha que durou nove meses e deixou a maior parte do lado oeste de Mossul completamente destruída.
Ao G1, o historiador, que atualmente vive na Europa, mas não divulga em que cidade por motivos de segurança, afirmou que o grupo de voluntários conseguiu cumprir o prazo, estabelecido por eles mesmos, de reabrir a biblioteca em fevereiro deste ano, pouco mais de um ano após a saída do EI.
Além de limpar a biblioteca e resgatar os livros que sobreviveram à batalha, o grupo também recebe doações de livros ao redor do mundo, em qualquer língua. Além dos cerca de 32 mil livros resgatados do prédio original, outros cerca de 50 mil chegaram de vários países.
“Durante a batalha pela retomada da cidade, o Estado Islâmico queimou e destruiu a biblioteca. Mas, felizmente, depois que a batalha acabou, conseguimos achar e resgatar livros”, afirmou ele.
A campanha internacional mobilizou pessoas de todas as partes do mundo, principalmente no Ocidente, explicou Muhammed. “Já recebemos mais ou menos 50 mil livros de muitos países, e estamos esperando por mais. Gostaria de agradecer a todos que fizeram isso acontecer, que pensaram na biblioteca, que nos apoiaram mesmo sem poder doar um livro.”
Depois de meses de trabalho de limpeza e remoção de milhares de livros para um novo prédio, iraquianos de Mossul comemoraram nesta terça-feira (6) a reinauguração da biblioteca.
Fonte:G1
quinta-feira, fevereiro 22
Catástrofe alemã
Nessa época do ano, com notícias de tiroteios em escolas norte-americanas, chuvas torrenciais no Sudeste e sobre o prosseguimento do golpe de estado brasileiro, fatos importantes e que muito dizem dos rumos das coisas infelizmente passam eclipsadas nos noticiários. Aqui no PublishNews, no entanto, a nota não passou despercebida: na Alemanha, país referência em mercado editorial, foram perdidos 600 mil compradores de livros só no primeiro semestre de 2017.
A notícia segue com as motivações e os números, e termina com a conclusão de que tudo se deu por conta de novos tipos de entretenimento, que por sua vez se somaram à redução no número de livrarias no país, algo que também vem ocorrendo em nações mundo afora.
Pergunto-me se as políticas alemãs à leitura são eficazes e obviamente fico muito curioso para conhecer as políticas públicas para o mercado editorial. Tirando isso, porém, se acende o sinal de alerta, e esta é a hora para se especular: 600 mil leitores num semestre? Quer dizer que o livro, o produto livro, perdeu leitores? Que está definhando a essa velocidade?
Não dá para ser catastrofista e abraçar o apocalipse sobre a leitura do livro e que estamos a assistir seu réquiem. Isso já ocorreu com o surgimento do e-book, porém passados alguns anos nada aconteceu, e até o livro reagiu, apesar das crises econômicas sempre tão presentes.
Penso que o melhor é entendermos as dinâmicas em torno da leitura, e nessa altura falo da leitura em qualquer ambiente, não mais em digital ou papel. Se as redes sociais roubaram nosso olhar para leituras cada vez mais curtas e convidativas à interação – numa espécie de frenesi publicacional em que todos viraram jornalistas e repórteres, as crianças inclusive –, a leitura tradicional, longa e medidativa, que nos convida a reflexões e aprofundamentos, ao que parece, caminha para um gueto de elite pensante.
Será isso, então? Será que a leitura qualificada ficará restrita às masmorras intelectuais e cultas? Será que a queima dos livros de Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, estava predizendo o que ocorre? E que nos restará somente a memória de párias sociais por esperança?
Mas vamos por outro lado. Lado que entende que por trás da comunicação e da leitura há nada mais do que seres humanos, e seres humanos que, embora se rendam temporariamente à pura necessidade da sobrevivência, sabem que ler bem é essencial para enfrentar e mudar o mundo com o que de melhor o homem já produziu: a tecnologia e o conhecimento.
Não tenho receita, mas se a Alemanha tem algo tão escabroso, é pacífico que um esforço consciente precisa ser empreendido para qualificar esses leitores perdidos, ou entender para onde estão indo e tentar alcança-los, por mais que o mercado, como o dos games, não goste.
Posto está é que a leitura ganhou múltiplas e inúmeras possibilidades, e que o mercado mais apressado e agressivo, como daqueles que vivem dos minutos digitais alheios, está ganhando a batalha. É preciso, portanto, reagir, e reagir como editores, como livreiros, bibliotecários, escritores, professores e como líderes pensantes.
Os últimos anos de Machado de Assis
Em 2016, Silviano Santiago, romancista, contista, ensaísta literário e Doutor em Letras pela Sorbone, escreveu um belo livro, Machado pela Cia. das Letras, sobre os cinco últimos anos de Machado de Assis, nosso escritor maior e fundador da Academia Brasileira de Letras. Uma prosa poética como também uma cuidadosa pesquisa sobre o quinto volume da correspondência de Machado.
O que chama atenção em seu escrito, além de outros aspectos biográficos do Bruxo do Cosme Velho, é a relação já escrita por outros autores europeus (Maxime du Camp, Jean-Paul Sartre, Thomas Mann e Carlos de Laet) que existe entre enfermidade, doença, angústia e criação literária e artística. Como exemplo, aqui no Brasil, encontramos na pessoa do Aleijadinho, Machado de Assis e Mário de Alencar, filho do nosso José de Alencar.
Não se escreve uma obra artística e literária sem conviver profundamente com dores da existência humana, onde cada autor, movido por essas angustiantes perspectivas de morte e consciência da sua finitude, sublima de maneira criativa, e fala não só de si mesmo, através dos seus personagens mas dos aspectos íntimos da alma humana.
A criatividade parece surgir desde a infância, da condição precária do ser humano, sua angústia frente a possibilidade de abandono além do destino inexorável de ser mortal, finito, limitado. Os escritores em sua maioria extraem da percepção mais aguda dessas dores humanas e são capazes de descrever estados psíquicos de uma maneira muito profunda.
A melancolia, a tristeza da condição patológica, a vivência concreta de mortalidade, todos esses fatores ficam muito claro na escrita de Silviano Santiago: “A vivência da alma em recolhimento, leitura e reflexão se reproduz— para ele – numa perfeita cena de família, em tudo por tudo igual à que se encontra representada à exaustão e realisticamente na pintura pequeno-burguesa europeia e nacional do século XIX.”
Já no começo de seu livro, Santiago lembra o impacto que causou ao escritor católico Paul Claudel o ditado popular que diz: “Deus escreve direito por linhas tortas”. Logo escreve Silviano: “O escritor francês se regala com o achado carioca que vira chave mestra na sua visão teológica do mundo. Deus escreve direito por linhas tortas, humanas demasiadamente humanas. Claudel acreditaria que Deus escreve as vidas tortas de Aleijadinho, Gustave Flaubert, Machado de Assis e Mario de Alencar?”
Fica a pergunta, prezado leitor: as dores humanas são a base da criação literária, concorrendo desse modo para o ato civilizatório? Penso que sim. Convido-o a ler o livro de Silviano Santiago!
Carlos Fino
O que chama atenção em seu escrito, além de outros aspectos biográficos do Bruxo do Cosme Velho, é a relação já escrita por outros autores europeus (Maxime du Camp, Jean-Paul Sartre, Thomas Mann e Carlos de Laet) que existe entre enfermidade, doença, angústia e criação literária e artística. Como exemplo, aqui no Brasil, encontramos na pessoa do Aleijadinho, Machado de Assis e Mário de Alencar, filho do nosso José de Alencar.
A criatividade parece surgir desde a infância, da condição precária do ser humano, sua angústia frente a possibilidade de abandono além do destino inexorável de ser mortal, finito, limitado. Os escritores em sua maioria extraem da percepção mais aguda dessas dores humanas e são capazes de descrever estados psíquicos de uma maneira muito profunda.
A melancolia, a tristeza da condição patológica, a vivência concreta de mortalidade, todos esses fatores ficam muito claro na escrita de Silviano Santiago: “A vivência da alma em recolhimento, leitura e reflexão se reproduz— para ele – numa perfeita cena de família, em tudo por tudo igual à que se encontra representada à exaustão e realisticamente na pintura pequeno-burguesa europeia e nacional do século XIX.”
Já no começo de seu livro, Santiago lembra o impacto que causou ao escritor católico Paul Claudel o ditado popular que diz: “Deus escreve direito por linhas tortas”. Logo escreve Silviano: “O escritor francês se regala com o achado carioca que vira chave mestra na sua visão teológica do mundo. Deus escreve direito por linhas tortas, humanas demasiadamente humanas. Claudel acreditaria que Deus escreve as vidas tortas de Aleijadinho, Gustave Flaubert, Machado de Assis e Mario de Alencar?”
Fica a pergunta, prezado leitor: as dores humanas são a base da criação literária, concorrendo desse modo para o ato civilizatório? Penso que sim. Convido-o a ler o livro de Silviano Santiago!
Carlos Fino
quarta-feira, fevereiro 21
Açores
À tarde, pelas sete horas, temos outra ilha à vista, sob grossas nuvens amontoadas, tudo da mesma cor, nuvens e ilha. Ao largo um pôr do sol dramático enche o horizonte, doira os bordos dos cirros e irrompe pelos interstícios caindo em feixes sobre as águas. Assisto ao desenlace deste drama mudo e extraordinário, quando ao mesmo tempo o ar se incendeia cor de cobre e na vasta solidão de estanho correm jorros de oiro fundido imitaria na pele . Já no horizonte outra ilha se estende em biombo, baixa e enorme, toda da mesma cor . Mas o que me interessa, é a luz que mudou, é o céu que mudou, - a luz delicada dos Açores, o céu dos Açores carregado de humidade e forrado de nuvens que um pintor imitaria na tela com pequenos toques horizontais cor de chumbo, carregando-os e amontoando-os cada vez mais até à linha do horizonte. E é esta luz que me acompanha e nunca mais me larga, a mim que vivo de luz límpida, e que acordo todas as manhãs com o pensamento na luz...Ilumina S.Miguel (13 de Junho), coada pelo céu pardo, e Ponta Delgado estendia à beira da doca, com um grande monte violeta ao lado. Ilumina na madrugada de 15 a Terceira, ao pé dum pinheiral e duma fortaleza, e atabafa-me quase até ao fim da viagem -céu inalterável, névoa que se chama alforra, luz discreta em que as coisas perdem a importância e o relevo.
O dicionário
Era uma vez um tanoeiro, demagogo, chamado Bernardino, o qual em cosmografia professava a opinião de que este mundo é um imenso tonel de marmelada, e em política pedia o trono para a multidão. Com o fim de a pôr ali, pegou de um pau, concitou os ânimos e deitou abaixo o rei; mas, entrando no paço, vencedor e aclamado, viu que o trono só dava para uma pessoa, e cortou a dificuldade sentando-se em cima.
— Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.
O primeiro ato do novo rei foi abolir a tanoaria, indenizando os tanoeiros, prestes a derrubá-lo, com o título de Magníficos. O segundo foi declarar que, para maior lustre da pessoa e do cargo, passava a chamar-se, em vez de Bernardino, Bernardão. Particularmente encomendou uma genealogia a um grande doutor dessas matérias, que em pouco mais de uma hora o entroncou a um tal ou qual general romano do século IV, Bernardus Tanoarius; — nome que deu lugar à controvérsia, que ainda dura, querendo uns que o rei Bernardão tivesse sido tanoeiro, e outros que isto não passe de uma confusão deplorável com o nome do fundador da família. Já vimos que esta segunda opinião é a única verdadeira.
Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, — comparação que o lisonjeou muito, — o segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.
Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.
Concorreram ao certâmen, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.
Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.
Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:
— Nós, Alfa e Ômega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.
Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.
— Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.
Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:
— Em mim, bradou ele, podeis ver a multidão coroada. Eu sou vós, vós sois eu.
Como era calvo desde verdes anos, decretou Bernardão que todos os seus súditos fossem igualmente calvos, ou por natureza ou por navalha, e fundou esse ato em uma razão de ordem política, a saber, que a unidade moral do Estado pedia a conformidade exterior das cabeças. Outro ato em que revelou igual sabedoria, foi o que ordenou que todos os sapatos do pé esquerdo tivessem um pequeno talho no lugar correspondente ao dedo mínimo, dando assim aos seus súditos o ensejo de se parecerem com ele, que padecia de um calo. O uso dos óculos em todo o reino não se explica de outro modo, senão por uma oftalmia que afligiu a Bernardão, logo no segundo ano do reinado. A doença levou-lhe um olho, e foi aqui que se revelou a vocação poética de Bernardão, porque, tendo-lhe dito um dos seus dois ministros, chamado Alfa, que a perda de um olho o fazia igual a Aníbal, — comparação que o lisonjeou muito, — o segundo ministro, Ômega, deu um passo adiante, e achou-o superior a Homero, que perdera ambos os olhos. Esta cortesia foi uma revelação; e como isto prende com o casamento, vamos ao casamento.
Tratava-se, em verdade, de assegurar a dinastia dos Tanoarius. Não faltavam noivas ao novo rei, mas nenhuma lhe agradou tanto como a moça Estrelada, bela, rica e ilustre. Esta senhora, que cultivava a música e a poesia, era requestada por alguns cavalheiros, e mostrava-se fiel à dinastia decaída. Bernardão ofereceu-lhe as coisas mais suntuosas e raras, e, por outro lado, a família bradava-lhe que uma coroa na cabeça valia mais que uma saudade no coração; que não fizesse a desgraça dos seus, quando o ilustre Bernardão lhe acenasse com o principado; que os tronos não andavam a rodo, e mais isto, e mais aquilo. Estrelada, porém, resistia à sedução.
Não resistiu muito tempo, mas também não cedeu tudo. Como entre os seus candidatos preferia secretamente um poeta, declarou que estava pronta a casar, mas seria com quem lhe fizesse o melhor madrigal, em concurso. Bernardão aceitou a cláusula, louco de amor e confiado em si: tinha mais um olho que Homero, e fizera a unidade dos pés e das cabeças.
Concorreram ao certâmen, que foi anônimo e secreto, vinte pessoas. Um dos madrigais foi julgado superior aos outros todos; era justamente o do poeta amado. Bernardão anulou por um decreto o concurso, e mandou abrir outro; mas então, por uma inspiração de insigne maquiavelismo, ordenou que não se empregassem palavras que tivessem menos de trezentos anos de idade. Nenhum dos concorrentes estudara os clássicos: era o meio provável de os vencer.
Não venceu ainda assim porque o poeta amado leu à pressa o que pôde, e o seu madrigal foi outra vez o melhor. Bernardão anulou esse segundo concurso; e, vendo que no madrigal vencedor as locuções antigas davam singular graça aos versos, decretou que só se empregassem as modernas e particularmente as da moda. Terceiro concurso, e terceira vitória do poeta amado.
Bernardão, furioso, abriu-se com os dois ministros, pedindo-lhes um remédio pronto e enérgico, porque, se não ganhasse a mão de Estrelada, mandaria cortar trezentas mil cabeças. Os dois, tendo consultado algum tempo, voltaram com este alvitre:
— Nós, Alfa e Ômega, estamos designados pelos nossos nomes para as coisas que respeitam à linguagem. A nossa idéia é que Vossa Sublimidade mande recolher todos os dicionários e nos encarregue de compor um vocabulário novo que lhe dará a vitória.
Bernardão assim fez, e os dois meteram-se em casa durante três meses, findos os quais depositaram nas augustas mãos a obra acabada, um livro a que chamaram Dicionário de Babel, porque era realmente a confusão das letras. Nenhuma locução se parecia com a do idioma falado; as consoantes trepavam nas consoantes, as vogais diluíam-se nas vogais, palavras de duas sílabas tinham agora sete e oito, e vice-versa, tudo trocado, misturado, nenhuma energia, nenhuma graça, uma língua de cacos e trapos.
— Obrigue Vossa Sublimidade esta língua por um decreto, e está tudo feito.
Bernardão concedeu um abraço e uma pensão a ambos, decretou o vocabulário, e declarou que ia fazer-se o concurso definitivo para obter a mão da bela Estrelada. A confusão passou do dicionário aos espíritos; toda a gente andava atônita. Os farsolas cumprimentavam-se na rua pela novas locuções: diziam, por exemplo, em vez de: Bom dia, como passou? — Pflerrgpxx, rouph, aa? A própria dama, temendo que o poeta amado perdesse afinal a campanha, propôs-lhe que fugissem; ele, porém, respondeu que ia ver primeiro se podia fazer alguma coisa. Deram noventa dias para o novo concurso e recolheram-se vinte madrigais. O melhor deles, apesar da língua bárbara, foi o do poeta amado. Bernardão, alucinado, mandou cortar as mãos aos dois ministros e foi a única vingança. Estrelada era tão admiravelmente bela, que ele não se atreveu a magoá-la, e cedeu.
Desgostoso, encerrou-se oito dias na biblioteca, lendo, passeando ou meditando. Parece que a última coisa que leu foi uma sátira do poeta Garção, e especialmente estes versos, que pareciam feitos de encomenda:
O raro Apeles,
Rubens e Rafael, inimitáveis
Não se fizeram pela cor das tintas;
A mistura elegante os fez eternos.
Machado de Assis
terça-feira, fevereiro 20
O jegue cego
Na Serra de Ibiapaba, numa das encostas mais altas, encontrei um jegue. Estava voltado para o lado leste e me pareceu que descortinava o panorama. Mas quando me aproximei, percebi que era cego!
Perguntei-lhe o que fazia nas encostas daquela serra. Ele me respondeu que sempre tivera vontade de ficar ali, parado, descortinando o panorama árido. Mas o homem não permitia que ele abandonasse o trabalho e se dirigisse àquele sítio. Só houve um meio de o homem deixá-lo ir: era tornando-se inútil. E ele se tornou cego e ali estava.
— Mas você não pode ver o panorama— eu lhe disse.
— Não tem importância— ele respondeu—, eu posso imaginá-lo.
Oswaldo França Jr.
Metade das escolas não possui bibliotecas
No dia 31 de janeiro, o Ministério da Educação (MEC) lançou o Censo Escolar 2017, que apontou as principais deficiências de infraestrutura das escolas brasileiras. O dado com relação às bibliotecas preocupa. Pouco mais de metade das instituições de ensino (54,3%) possui biblioteca ou sala de leitura voltada para os alunos.
Outros problemas também são visíveis ao se analisar a pesquisa. Apenas 41,6% das escolas possuem sistema de esgoto e outras 52,3% utilizam fossa como sua principal fonte de descarte de resíduos. Em 10% das instituições não há sequer água, energia ou rede de esgoto. Também faltam parques, berçários e banheiros adequados às faixas etárias atendidas.
Com relação ao acesso à tecnologia, menos da metade das escolas (46,8%) possui laboratório ou sala de informática. Apesar disso, 65,6% possuem conexão com a internet, sendo 53,5% dos acessos via banda larga.
Garantir padrões mínimos de qualidade de ensino é, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, dever do Estado. Em entrevista à Agência Brasil, a ministra substituta da Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, disse que 23% do orçamento da União são destinados à educação, porém ainda há problemas a serem contornados. “A infraestrutura das escolas é muito desigual, isso já está revelado por todos os estudos do Inep, e não obrigatoriamente está relacionada a recursos. Há municípios que recebem o mesmo montante de recursos pelo Fundeb que outro município vizinho, e um funciona melhor e o outro não funciona tão bem do ponto de vista da infraestrutura das suas escolas.”
Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, tem um ponto de vista divergente da ministra. Para ele, os governos não têm dado prioridade ao financiamento do setor. “É claro que bibliotecas, acesso à internet e laboratórios de ciências são imprescindíveis à educação hoje, isso para não falar no básico do básico, que é a garantia de água e esgoto.”
Outros problemas também são visíveis ao se analisar a pesquisa. Apenas 41,6% das escolas possuem sistema de esgoto e outras 52,3% utilizam fossa como sua principal fonte de descarte de resíduos. Em 10% das instituições não há sequer água, energia ou rede de esgoto. Também faltam parques, berçários e banheiros adequados às faixas etárias atendidas.
Com relação ao acesso à tecnologia, menos da metade das escolas (46,8%) possui laboratório ou sala de informática. Apesar disso, 65,6% possuem conexão com a internet, sendo 53,5% dos acessos via banda larga.
Daniel Cara, coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, tem um ponto de vista divergente da ministra. Para ele, os governos não têm dado prioridade ao financiamento do setor. “É claro que bibliotecas, acesso à internet e laboratórios de ciências são imprescindíveis à educação hoje, isso para não falar no básico do básico, que é a garantia de água e esgoto.”
segunda-feira, fevereiro 19
Assim começa o livro...
Quando o senhor, também conhecido como deus, se apercebeu de que a adão e eva, perfeitos em tudo o que apresentavam à vista, não lhes saía uma palavra da boca nem emitiam ao menos um simples som primário que fosse, teve de ?car irritado consigo mesmo, uma vez que não havia mais ninguém no jardim do éden a quem pudesse responsabilizar pela gravíssima falta, quando os outros animais, produtos, todos eles, tal como os dois humanos, do faça-se divino, uns por meio de mugidos e rugidos, outros por roncos, chilreios, assobios e cacarejos, desfrutavam já de voz própria. Num acesso de ira, surpreendente em quem tudo poderia ter solucionado com outro rápido ?at, correu para o casal e, um após outro, sem contemplações, sem meias-medidas, en? ou-lhes a língua pela garganta abaixo. Dos escritos em que, ao longo dos tempos, vieram sendo consignados um pouco ao acaso os acontecimentos destas remotas épocas, quer de possível certi? cação canónica futura ou fruto de imaginações apócrifas e irremediavelmente heréticas, não se aclara a dúvida sobre que língua terá sido aquela, se o músculo ?exível e húmido que se mexe e remexe na cavidade bucal e às vezes fora dela, ou a fala, também chamada idioma, de que o senhor lamentavelmente se havia esquecido e que ignoramos qual fosse, uma vez que dela não ?cou o menor vestígio, nem ao menos um coração gravado na casca de uma árvore com uma legenda sentimental, qualquer coisa no género amo-te, eva. Como uma coisa, em princípio, não deveria ir sem a outra, é provável que um outro objectivo do violento empurrão dado pelo senhor às mudas línguas dos seus rebentos fosse pô-las em contacto com os mais profundos interiores do ser corporal, as chamadas incomodidades do ser, para que, no porvir, já com algum conhecimento de causa, pudessem falar da sua escura e labiríntica confusão a cuja janela, a boca, já começavam elas a assomar. Tudo pode ser. Evidentemente, por um escrúpulo de bom artí?ce que só lhe ?cava bem, além de compensar com a devida humildade a anterior negligência, o senhor quis comprovar que o seu erro havia sido corrigido, e assim perguntou a adão, Tu, como te chamas, e o homem respondeu, Sou adão, teu primogénito, senhor. Depois, o criador virou-se para a mulher, E tu, como te chamas tu, Sou eva, senhor, a primeira dama, respondeu ela desnecessariamente, uma vez que não havia outra. Deu-se o senhor por satisfeito, despediu-se com um paternal Até logo, e foi à sua vida. Então, pela primeira vez, adão disse para eva, Vamos para a cama.
Set, o ?lho terceiro da família, só virá ao mundo cento e trinta anos depois, não porque a gravidez materna precisasse de tanto tempo para rematar a fabricação de um novo descendente, mas porque as gónadas do pai e da mãe, os testículos e o útero respectivamente, haviam tardado mais de um século a amadurecer e a desenvolver su? ciente potência generativa. Há que dizer aos apressados que o ?at foi uma vez e nunca mais, que um homem e uma mulher não são máquinas de encher chouriços, as hormonas são coisa muito complicada, não se produzem assim do pé para a mão, não se encontram nas farmácias nem nos supermercados, há que dar tempo ao tempo. Antes de set tinham vindo ao mundo, com escassa diferença de tempo entre eles, primeiro caim edepois abel. O que não pode ser deixado sem imediata referência é o profundo aborrecimento que foram tantos anos sem vizinhos, sem distracções, sem uma criança gatinhando entre a cozinha e o salão, sem outras visitas que as do senhor, e mesmo essas pouquíssimas e breves, espaçadas por longos períodos de ausência, dez, quinze, vinte, cinquenta anos, imaginamos que pouco haverá faltado para que os solitários ocupantes do paraíso terrestre se vissem a si mesmos como uns pobres órfãos abandonados na ?oresta do universo, ainda que não tivessem sido capazes de explicar o que fosse isso de órfãos e abandonos. É verdade que dia sim, dia não, e este não com altíssima frequência também sim, adão dizia a eva, Vamos para a cama, mas a rotina conjugal, agravada, no caso destes dois, pela nula variedade nas posturas por falta de experiência, já então se demonstrou tão destrutiva como uma invasão de carunchos a roer a trave da casa. Por fora, salvo alguns pozinhos que vão escorrendo aqui e ali de minúsculos orifícios, o atentado mal se percebe, mas lá por dentro a procissão é outra, não tardará muito que venha por aí abaixo o que tão ?rme havia parecido. Em situações como esta, há quem defenda que o nascimento de um ?lho pode ter efeitos reanimadores, senão da libido, que é obra de químicas muito mais complexas que aprender a mudar uma fralda, ao menos dos sentimentos, o que, reconheça-se, já não é pequeno ganho. Quanto ao senhor e às suas esporádicas visitas, a primeira foi para ver se adão e eva haviam tido problemas com a instalação doméstica, a segunda para saber se tinham bene?ciado alguma coisa da experiência da vida campestre e a terceira para avisar que tão cedo não esperava voltar, pois tinha de fazer a ronda pelos outros paraísos existentes no espaço celeste. De facto, só viria a aparecer muito mais tarde, em data de que não ?cou registo, para expulsar o infeliz casal do jardim do éden pelo crime nefando de terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Este episódio, que deu origem à primeira de?nição de um até aí ignorado pecado original, nunca ?cou bem explicado. Em primeiro lugar, mesmo a inteligência mais rudimentar não teria qualquer di? culdade em compreender que estar informado sempre será preferívela desconhecer, mormente em matérias tão delicadas como são estas do bem e do mal, nas quais qualquer um se arrisca, sem dar por isso, a uma condenação eterna num inferno que então ainda estava por inventar. Em segundo lugar, brada aos céus a imprevidência do senhor, que se realmente não queria que lhe comessem do tal fruto, remédio fácil teria, bastaria não ter plantado a árvore, ou ir pô-la noutro sítio, ou rodeá-la por uma cerca de arame farpado. E, em terceiro lugar, não foi por terem desobedecido à ordem de deus que adão e eva descobriram que estavam nus. Nuzinhos, em pelota estreme, já eles andavam quando iam para a cama, e se o senhor nunca havia reparado em tão evidente falta de pudor, a culpa era da sua cegueira de progenitor, a tal, pelos vistos incurável, que nos impede de ver que os nossos ?lhos, no ?m de contas, são tão bons ou tão maus como os demais.
Ponto de ordem à mesa. Antes de prosseguirmos com esta instrutiva e de? nitiva história de caim a que, com nunca visto atrevimento, metemos ombros, talvez seja aconselhável, para que o leitor não se veja confundido por segunda vez com anacrónicos pesos e medidas, introduzir algum critério na cronologia dos acontecimentos. Assim faremos, pois, começando por esclarecer alguma maliciosa dúvida por aí levantada sobre se adão ainda seria competente para fazer um ?lho aos cento e trinta anos de idade. À primeira vista, não, se nos ativermos apenas aos índices de fertilidade dos tempos modernos, mas esses cento e trinta anos, naquela infância do mundo, pouco mais teriam representado que uma simples e vigorosa adolescência que até o mais precoce dos casanovas desejaria para si. Além disso, convém lembrar que adão viveu até aos novecentos e trinta anos, pouco lhe faltando, portanto, para morrer afogado no dilúvio universal, pois ?nou-se em dias da vida de lamec, o pai de noé, futuro construtor da arca. Logo, teve tempo e vagar para fazer os ?lhos que fez e muitos mais se estivesse para aí virado. Como já dissemos, o segundo, o que viria depois de caim, foi abel, um moço aloirado, de boa ?gura, que, depois de ter sido objecto das melhores provas de estima do senhor, acabou da pior forma. Ao terceiro, como também ?cou dito, chamaram-lhe set, mas esse não entrará na narrativa que vamos compondo passo a passo com melindres de historiador, por isso aqui o deixamos, só um nome e nada mais. Há quem a?rme que foi na cabeça dele que nasceu a ideia de criar uma religião, mas desses delicados assuntos já nos ocupámos avonde no passado, com recriminável ligeireza na opinião de alguns peritos, e em termos que muito provavelmente só virão a prejudicar-nos nas alegações do juízo ?nal quando, quer por excesso quer por defeito, todas as almas forem condenadas. Agora somente nos interessa a família de que o papá adão é cabeça, e que má cabeça foi ela, pois não vemos como chamar-lhe doutra maneira, já que bastou trazer-lhe a mulher o proibido fruto do conhecimento do bem e do mal para que o inconsequente primeiro dos patriarcas, depois de se fazer rogado, em verdade mais por comprazer consigo mesmo que por real convicção, se tivesse engasgado com ele, deixando-nos a nós, homens, para sempre marcados por esse irritante pedaço de maçã que não sobe nem desce. Também não falta quem diga que se adão não chegou a engolir de todo o fruto fatal foi porque o senhor lhes apareceu de repente a querer saber o que se tinha passado ali. Já agora, e antes que se nos esqueça de vez ou o prosseguimento do relato venha a tornar inadequada, por tardia, a referência, revelaremos a visita sigilosa, meio clandestina, que o senhor fez ao jardim do éden numa cálida noite de verão. Como de costume, adão e eva dormiam nus, um ao lado do outro, sem tocar-se, imagem edi?cante mas enganadora da mais perfeita das inocências. Não despertaram eles e o senhor não os despertou. O que ali o tinha levado fora o propósito de emendar uma imperfeição de fabrico que, ?nalmente o percebera, desfeava seriamente as suas criaturas, e que era, imagine-se, a falta de um umbigo. A superfície esbranquiçada da pele dos seus bebés, que o suave sol do paraíso não conseguira tostar, mostrava-se demasiado nua, demasiado oferecida, de certo modo obscena, se a palavra já existisse então. Sem detença, não fossem eles acordar, deus estendeu o braço e, levemente, premiu com a ponta do dedo indicador o ventre de adão, logo fez um rápido movimento de rotação e o umbigo apareceu. A mesma operação, praticada a seguir em eva, deu resultados similares, ainda que com a importante diferença de o umbigo dela ter saído bastante melhorado no que toca a desenho, contornos e delicadeza de pregas. Foi esta a última vez que o senhor olhou uma obra sua e achou que estava bem.
Cinquenta anos e um dia depois desta afortunada intervenção cirúrgica com a qual se iniciaria uma nova era na estética do corpo humano sob o lema consensual de que tudo nele é melhorável, deu-se a catástrofe. Anunciado por um estrondo de trovão, o senhor fez-se presente. Vinha trajado de maneira diferente da habitual, segundo aquilo que seria, talvez, a nova moda imperial do céu, com uma coroa tripla na cabeça e empunhando o ceptro como um cacete. Eu sou o senhor, gritou, eu sou aquele que é. O jardim do éden caiu em silêncio mortal, não se ouvia nem o zumbido de uma vespa, nem o ladrar de um cão, nem um pio de ave, nem um bramido de elefante. Apenas uma bandada de estorninhos que se havia acomodado numa oliveira frondosa que vinha dos tempos da fundação do jardim levantou voo num só impulso, e eram centenas, para não dizer milhares, que quase obscureceram o céu. Quem desobedeceu às minhas ordens, quem foi pelo fruto da minha árvore, perguntou deus, dirigindo directamente a adão um olhar coruscante, palavra desusada mas expressiva como as que mais o forem. Desesperado, o pobre homem tentou, sem resultado, tragar o bocado de maçã que o delatava, mas a voz não lhe saiu, nem para trás nem para diante. Responde, tornou a voz colérica do senhor, ao mesmo tempo que brandia ameaçadoramente o ceptro. Fazendo das tripas coração, consciente do feio que era pôr as culpas em outrem, adão disse, A mulher que tu me deste paraviver comigo é que me deu do fruto dessa árvore e eu comi. Revolveu-se o senhor contra a mulher e perguntou, Que ?zeste tu, desgraçada, e ela respondeu, A serpente enganou-me e eu comi, Falsa, mentirosa, não há serpentes no paraíso, Senhor, eu não disse que haja serpentes no paraíso, mas digo sim que tive um sonho em que me apareceu uma serpente, e ela disse-me, Com que então o senhor proibiu-vos de comerem do fruto de todas as árvores do jardim, e eu respondi que não era verdade, que só não podíamos comer do fruto da árvore que está no meio do paraíso e que morreríamos se tocássemos nele, As serpentes não falam, quando muito silvam, disse o senhor, A do meu sonho falou, E que mais disse ela, pode-se saber, perguntou o senhor, esforçando-se por imprimir às palavras um tom escarninho nada de acordo com a dignidade celestial da indumentária, A serpente disse que não teríamos que morrer, Ah, sim, a ironia do senhor era cada vez mais evidente, pelos vistos, essa serpente julga saber mais do que eu, Foi o que eu sonhei, senhor, que não querias que comêssemos do fruto porque abriríamos os olhos e ? caríamos a conhecer o mal e o bem como tu os conheces, senhor, E que ?zeste, mulher perdida, mulher leviana, quando despertaste de tão bonito sonho, Fui à árvore, comi do fruto e levei-o a adão, que comeu também, Ficou-me aqui, disse adão, tocando na garganta, Muito bem, disse o senhor, já que assim o quiseram, assim o vão ter, a partir de agora acabou-se-lhes a boa vida, tu, eva, não só sofrerás todos os incómodos da gravidez, incluindo os enjoos, como pariráscom dores, e não obstante sentirás atracção pelo teu homem, e ele mandará em ti, Pobre eva, começas mal, triste destino vai ser o teu, disse eva, Devias tê-lo pensado antes, e quanto à tua pessoa, adão, a terra ?cou amaldiçoada por tua causa, e será com grande sacrifício que dela conseguirás tirar alimento durante toda a tua vida, só produzirá espinhos e cardos, e tu terás de comer a erva que cresce no campo, só à custa de muitas bagas de suor conseguirás arranjar o necessário para comer, até que um dia te venhas a transformar de novo em terra, pois dela foste formado, na verdade, mísero adão, tu és pó e ao pó um dia tornarás. Dito isto, o senhor fez aparecer umas quantas peles de animais para tapar a nudez de adão e eva, os quais piscaram os olhos um ao outro em sinal de cumplicidade, pois desde o primeiro dia souberam que estavam nus e disso bem se haviam aproveitado. Disse então o senhor, Tendo conhecido o bem e o mal, o homem tornou-se semelhante a um deus, agora só me faltaria que fosses colher também do fruto da árvore da vida para dele comeres e viveres para sempre, não faltaria mais, dois deuses num universo, por isso te expulso a ti e a tua mulher deste jardim do éden, a cuja porta colocarei de guarda um querubim armado com uma espada de fogo, o qual não deixará entrar ninguém, e agora vão-se embora, saiam daqui, não vos quero ver nunca mais na minha frente. Carregando sobre os ombros as fedorentas peles, bamboleando-se sobre as pernas trôpegas, adão e eva pareciam dois orangotangos que pela primeira vez se tivessem posto de pé. Fora do jardim do éden a terra era árida, inóspita, o senhor não tinha exagerado quando ameaçou adão com espinhos e cardos. Tal como também havia dito, acabara-se a boa vida.
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