E pronto
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Susa Monteiro |
Eu não tenho computador, não tenho telemóvel, não tenho cartão de crédito, não tenho carro, resumindo: sou todo meu. Estou aqui sentado nesta cadeira a escrever esta crónica, cheio de vontade de voltar para o livro que ainda não parou de me trazer problemas. Do ponto de vista técnico é muito difícil, o material não cessa de crescer, estou mais ou menos a meio da primeira versão o que significa que, trabalhando as minhas doze horas diárias habituais, talvez a acabe lá para o fim do ano se nada especial acontecer na minha vida que me impeça de rabiscar. Não sei porque me meti neste livro, quer dizer sei mais ou menos: foi ele que se meteu em mim. Tinha acabado o livro anterior, estava à espera, vazio, e apareceu este primeiro depressa, depois devagar, depois depressa outra vez quando os vários elementos principiaram a juntar-se, depois devagar de novo à medida que ia crescendo. Tem vinte e cinco capítulos, acabei a primeira versão do décimo segundo hoje, queria começar a ocupar-me do décimo terceiro mas tenho de fazer estes textinhos para a revista. É horrível passar para um ritmo completamente diferente, dizer coisas levezinhas a fim de distrair as pessoas e o livro à espera, furioso comigo. Tenho sempre medo de não conseguir acabá-lo, precisa de tantas correções. É uma coisa estranha, um livro: quando tudo está a correr bem anda sozinho e de repente pumba, pára e lá fico eu à espera que ele decida continuar. Quando menos espero engrena de novo. Às vezes pergunto-me de onde é que isto vem e ignoro a resposta. Vem de um sítio qualquer, muito escondido, lá no fundo, uma espécie de cave confusa onde as palavras se organizam apesar de mim. Acho que o livro está lá todo à espera do momento de se realizar sozinho. Quer dizer não é bem assim: umas vezes organiza-se por si, outras necessita que eu seja criada para todo o serviço. Mas é fascinante vê-lo crescer, modificar-se, estruturar-se, é fascinante fazê-lo crescer, modificá-lo, estruturá-lo. Que me lembre escrevi o primeiro romance aos sete ou oito anos. Tinha quatro páginas e custou-me como o diabo. Claro que o queimei na figueira da casa dos meus pais onde queimava tudo. Os meus pais sabiam o que eu andava a fazer mas nunca me perguntaram fosse o que fosse. Enquanto eu escrevia o João estudava. Também nunca me perguntou nem eu lhe disse. Para quê? Era tão óbvio para mim que me faltava imenso caminho mas a certeza que ia ser o melhor dava-me força. Apesar de ser humilde, porque só se pode escrever sendo humilde, não tinha qualquer dúvida acerca disso. E era horrivelmente consciente das minhas múltiplas imperfeições. E depois, quando me levavam de férias com os meus irmãos, enchia um saco de livros para aprender. Fazia exercícios: escrevia à maneira deste, à maneira daquele, lia imensos romances maus, com os quais se aprende melhor que com os romances bons porque nesses não se vêem os pregos do reverso do cenário, o que há, como dizia Pascoaes, da aparição no seio da aparência. E continuava a queimar tudo, não revoltado, não zangado, porque era óbvio para mim que aquele era o caminho e que tinha de ser paciente e continuar a mamar. Não conhecia ninguém que escrevesse, nada sabia de literatura, estava completamente só. É terrível isto, durante um livro está-se completamente só. Quando me perguntavam o que queria ser não respondia porque não queria ser, já era. Só me faltava ser mas já era. E depois ia aprendendo com todos até que, aos dezassete ou dezoito anos, tive um encontro decisivo ao ler Antoine Blondin, escritor francês hoje praticamente esquecido, não é verdade, hoje esquecido, e que abriu, dentro de mim, uma porta que eu sabia que tinha. Nem sequer éramos parecidos no que ele fazia e eu tentava fazer, mas sendo tão diferente dele Antoine Blondin foi o meu encontro decisivo. Não sei bem em quê: talvez na luta pela liberdade interior. Num dos seus livros, falando da mãe, Blondin conta que ela costumava dizer: não tenho fé mas tenho tanta esperança. Esta frase foi muito importante para mim. Tanta esperança. E uma frase de Bernanos que nunca mais esqueço, e os três grandes poemas de Cendrars. Armado deste material as coisas foram-se tornando, a pouco e pouco, menos penosas. E depois a guerra. E depois a vinda da guerra. E depois, finalmente, a Memória de Elefante que nunca li nem deixava que traduzissem. O Christian Bourgois lá me convenceu e então olhei algumas páginas em francês. Para um primeiro livro achei-o do caraças mas já nada tinha a ver com o que eu fazia então. No entanto gosto dele sobretudo porque me recorda quanto me vi à brochinha para o compor, numa época da minha vida em que sofria muito por razões que não vêm ao caso nem vou maçar o leitor com isso.
O Zé Cardoso Pires dizia-me: é preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer. Mas gostaria que o leitor tivesse prazer com menos sofrimento da minha parte. Escrever é também isso: prazer e alegria e a minha ingénua vaidade de então, eu que não estava preparado para o sucesso nem sabia o que fazer com ele. Ainda não sei muito bem. Lembro-me sempre de Mozart depois de tocar na corte francesa, aos cinco anos. Toda a gente aplaudiu muito no fim e ele foi a correr para o colo da rainha, por acaso Maria Antonieta, saltou-lhe para os joelhos e pediu-lhe
– Gosta de mim.
E pronto, acho que estou no fim da crónica. Espero não os ter aborrecido muito. Agora vou até lá dentro sentar-me na sala a olhar para nada. Como dizem os parvos muito obrigado por este bocadinho. FimAntónio Lobo Antunes
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