'A Livraria': sobre livros e solidões
No começo sinto preguiça para embarcar em A Livraria, o último filme de Isabel Coixet, já que, com exceção do lindo Cosas que Nunca te Dije, meu desencontro com seu cinema tem sido permanente. A frase que encabeça seu cartaz de divulgação (“Entre livros, ninguém pode se sentir sozinho”) é alentadora, mas também discutível. Mallarmé começa assim um poema: “A carne é triste, sim, e eu li todos os livros.” Conclusão desoladora e verdadeira em alguns casos trágicos. Existiram e existirão sensíveis devoradores de poesia e literatura que acabam se lançando ao vazio, puderam mais a solidão e a falta de saída que a inestimável ajuda e o prazer que os livros proporcionam. O primeiro encontro com esse cobiçado livro sempre será presidido pela magia, como descreve maravilhosamente ítalo Calvino no início de Se Um Viajante Numa Noite de Inverno. Este filme fala dessas sensações. E faz isso com linguagem, nuances, tom e capacidade de sugerir que me comovem e que em um par de sequências modelares protagonizadas pela dedicada livreira e um homem que blindou seu ancestral isolamento e sua sobrevivência graças às páginas impressas (nessa época nenhum amante dos livros poderiam nem iria querer imaginar essa coisa tão antinatural e gélida do e-book) conseguem fazer meus olhos se umedecerem.
Isabel Coixet adapta um romance de Penelope Fitzgerald (o sobrenome se impõe literariamente) que desconheço, mas desejo ler. Sua temática poderá parecer muito leve aos espíritos intensos. Eu acho que é muito rica. Narra o esforço de uma viúva para abrir uma livraria em uma pequena cidade da Inglaterra com nenhuma empatia pela necessidade ou paixão de ler. Para ela esse ato serve para suprir carência afetivas, para viver outras vidas, para sonhar junto ao mar com os personagens e os sentimentos que habitam os livros, esses objetos nos quais sempre acontecem coisas. Os poderosos da cidadezinha, predadores por trás de seus modos aristocráticos, declaram uma guerra surda a essa doce intrusa, convencida de que o que pretende vender pode representar prazer, conhecimento, aventura ou bálsamo para alguns moradores. Será ajudada em sua laboriosa missão por uma menina cheia de imaginação, inteligente, prática e sonhadora ao mesmo tempo, e manterá emocionante contato com um velho misantropo que está há 45 anos trancado em sua mansão, alguém que me faz pensar no arrebatador poema de Gil de Biedma: “Num povoado junto ao mar possuir uma casa e poucos bens e memória nenhuma. Não ler, não sofrer, não escrever, não pagar contas, e viver como um nobre arruinado entre as ruínas de minha inteligência". No entanto, meu herói lê, sim, e paga contas.
A livraria o levará a descobrir o soberbo Ray Bradbury e seu As Crônicas Marcianas. E a existência do misantropo anseia pela publicação de As Maçãs Douradas do Sol e O Vinho da Alegria. E o grande Nabokov desafiará a moral convencional com a perturbadora e extraordinária Lolita. E surgirão vínculos muito belos entre esses dois náufragos, que desejariam ter se conhecido em outra vida.
Coixet descreve tudo isso com uma delicadeza e um tom próximos da ourivesaria. Imagens, diálogos, silêncios, gestos pequenos e reveladores convivem em harmonia, abrigados em uma atmosfera magnética e veraz. Seu intimismo é contagiante. E a história que me contaram segue comigo durante o resto do dia. Supõe-se que acontecem poucas coisas, mas me tocou e reconheço em que fibras emocionais. Eu a levo dentro.Carlos Boyero
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