Se na infância e na adolescência eu me dividi e dispersei entre vários sonhos – ser motorista de ônibus, jogador de futebol, cantor -, um pouco depois eu já estava bem mais seguro do que pretendia ser. Eu queria ser Rubem Braga (foto). Toda semana suas crônicas na revista Manchete iam reforçando esse desejo. Como era possível escrever daquele jeito? Parecia haver um truque, devia haver, só podia. E havia: o truque da extrema simplicidade. Escrever simples, como sabe quem se mete a ser escritor, é a maior dificuldade, é o pulo do gato. Rubem dava semanalmente seus pulos na Manchete. Esses pulos motivaram pelo menos duas gerações de candidatos a cronista. Alguns chegaram perto do que Rubem fazia, o que já era algo de se saudar com foguetório. Ser um vice-Rubem era uma glória e tanto. Quando consegui um espaço para escrever crônicas no Estadão, na década de 1980, eu também tentei a alquimia. Os melhores textos que fiz eram aqueles que tinham uma semelhança, ainda que muitíssimo remota, com os dele. Seja como for, eu fui escrevendo, e ter sido colega de Rubem como cronista do jornal foi o meu Nobel. Ele mandava os textos do Rio, e a ansiedade com que eu os esperava (imaginem o alvoroço de ler um texto dele em primeira mão) está numa crônica (“É Rubem Braga, é Rubem Braga, olê, olê, olá...”) que publiquei no Estadão em 21 de agosto de 1990. É uma homenagem, claro, ou seria, se o texto fosse um bocadinho melhor. Reproduzi-la aqui eu acho que é um bom jeito de começar a colaborar com o Rubem. No ano seguinte foi lançado pelo jornal na Sala São Paulo o livro Crônicas do Estadão. Seria a oportunidade, enfim, de ver Rubem Braga. Infelizmente, ele já estava morto. Segue a transcrição da crônica:Toda sexta, nos confins da Redação, onde começam os domínios do 'Caderno2', eu me envolvo, com prazer e sem medo, em uma extravagante conspiração. Escrevo extravagante conspiração e imediatamente me vem a dúvida: será esta a expressão correta? Para definir toda a sorrateira atividade do preparador de textos Walmir Venturini – desde o momento em que, já roído de impaciência, percebe a saída das duas cobiçadas laudas da Diagramação até o instante em que, depois de interceptar o contínuo encarregado de levar o tesouro ao setor de Composição, consegue com subterfúgios uma cópia e, no canto mais longínquo da Redação, inicia a partilha com o poeta Moacir Amâncio, tão ávido quanto ele de boa literatura – talvez conspiração seja uma palavra forte demais. Mas extravagante é a palavra certa para exprimir a ingênua maquinação semanal dos dois, aos quais logo depois se junta outro (eu), para desfrutar, um pouco antes, o prazer que os leitores do Estado só terão nas primeiras horas da manhã do sábado.
Toda sexta, quando chego, os dois já avaliaram e reavaliaram linha a linha, palavra a palavra, letra a letra as duas preciosas folhas escamoteadas. Toda sexta eles me garantem que o texto está ainda melhor que na outra semana. E toda sexta eu concordo com eles. Porque toda semana, diante dos nossos olhos deslumbrados, o mago Rubem Braga renova o milagre de superar o insuperável Rubem Braga.
Lemos tanto e relemos tanto Rubem Braga que teríamos até descoberto o seu segredo, se o seu segredo não tivesse sido descoberto há muito tempo e não fosse, como sempre foi, desde as primeiras crônicas, uma dessas simplicidades cheias de charme e brilho que um escritor ou adquire com o nascimento ou só atinge com uma obstinada disciplina.
O charmoso brilho dessa simplicidade é que toda sexta nos move – o preparador de textos Walmir Venturini, o poeta Moacir Amâncio e o aprendiz de cronista Raul Drewnick – desde o instante em que as duas laudas saem da Diagramação até o momento em que, assaltado o contínuo e tirada a cópia, nos locupletamos no ponto mais remoto da Redação com o saboroso fruto do nosso saque.
Torcedores de Rubem Braga desde criancinhas e sócios fundadores do seu fã-clube no jornal, até agora só tivemos um motivo de preocupação, no meio de tantas vitórias: soubemos outro dia que uma editora está lançando uma parte quase desconhecida da obra de Machado de Assis – suas crônicas. Ainda não marcamos reunião para discutir o assunto, mas a minha opinião eu já posso antecipar: vou ler as crônicas do grande Machado. E vou ler sem nenhum receio. Porque empatar ele até pode, mas ganhar do nosso Rubem eu duvido que alguém consiga. Mesmo que seu nome seja Machado de Assis.
Raul Drewnick
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