quinta-feira, março 22

Livro sublime

أَلَمْ نَشْرَح لَكَ صَدْرَك ﴾اللهم بعُمق هذه الآيه ،إشرح صدورنا وأرح قلوبنا ،وأزل همومنا يارب ،إنك على كل شيء قدير ..❤️
Na elegante tradução turca, devida ao brilhante Lami, dos Doze Perfumes da Amizade, de Djami — obra na qual o grande poeta persa expõe a história dos santos —, está escrito que no ateliê de Djahan Xá, soberano da Horda do Carneiro Negro, o famoso Sheik Ali, de Tabriz, havia ilustrado um magnífico exemplar de Khosrow e Shirin. Pelo que me disseram, nesse lendário manuscrito, ao qual o grande mestre dedicou onze anos da sua existência, Sheik Ali dava mostra de tanto engenho e arte, pintara tão esplêndidas imagens que, entre os grandes nomes da pintura antiga, somente Bihzad teria podido igualá-lo. Djahan Xá compreendeu, antes mesmo de a maravilhosa obra ser concluída, que logo iria possuir um livro sublime, único no mundo. Mas Djahan Xá vivia num temor e numa inveja perene do jovem soberano da Horda do Carneiro Branco, Hassan, o Alto, a quem tinha como seu arquiinimigo. E logo pressentiu que, se seu prestígio aumentaria imensamente depois que esse livro fosse terminado, sempre poderia ser realizada uma versão superior para Hassan do Carneiro Branco. Sendo um desses homens invejosos que estragam a sua felicidade martirizando-se com a idéia de que outro também pode vir a ser feliz, o Carneiro Negro Djahan Xá deu de cismar que, se o seu prodigioso miniaturista fizesse uma cópia do livro, ou até uma versão melhor, esta seria necessariamente para seu arquiinimigo, o Carneiro Branco Hassan, o Alto. Assim, para evitar que qualquer outro, além dele, possuísse aquela obra magnífica, Djahan Xá mataria o mestre miniaturista Sheik Ali, assim que ele concluísse a obra. Mas uma bela circassiana pertencente a seu harém, ouvindo seu bom coração, observou que bastava sacrificar a visão do mestre. Djahan Xá acatou essa boa idéia, que revelou a seus acólitos, e o boato logo chegou aos ouvidos de Sheik Ali. Mas este nem sequer cogitou de fugir para Tabriz, deixando o livro incompleto, como teria feito qualquer pintor medíocre. Tampouco recorreu ao subterfúgio de trabalhar mais lentamente em sua obra ou de enfear sua pintura, para evitar que ficasse perfeita e, com isso, escapar de ter os olhos furados. Ao contrário, passou a trabalhar com maior ardor, fé e concentração. Agora, na casa em que vivia recluso, começava a trabalhar bem cedinho, logo depois da prece matinal, e continuava a pintar noite adentro, à luz de vela, os mesmos cavalos, os mesmos ciprestes, os mesmos amantes, dragões e belos príncipes, até jorrarem lágrimas amargas dos seus olhos avermelhados. A maior parte do tempo, ele ficava dias a fio olhando para a mesma imagem pintada por um dos antigos grandes mestres de Herat e fazendo numa folha posta ao lado uma cópia exata dela, sem olhar para o papel. Quando por fim terminou a obra destinada a Djahan Xá, o Carneiro Negro, o velho pintor, como previsto, depois de ter sido coberto de elogios e de moedas de ouro, teve os dois olhos furados com uma comprida agulha usada para prender as plumas no turbante. Sheik Ali ainda sofria enormemente, quando partiu de Herat para se pôr a serviço do Carneiro Branco, Hassan, o Alto. “Estou cego, é verdade”, disse a este, “mas guardo na memória todas as maravilhas daquele manuscrito que iluminei nestes últimos onze anos, lembro-me de cada traço de cálamo, de cada pincelada que dei, e minha mão é capaz de reproduzi-los todos de cor. Grande Xá, posso ilustrar para o senhor o mais belo livro de todos os tempos. Meus olhos não se distrairão mais com as imundícies deste mundo e poderei pintar de memória todas as glórias de Alá em sua mais pura forma.” Hassan, o Alto, acreditou no grande mestre miniaturista, que realizou de memória para o Carneiro Branco, conforme se comprometera, o mais belo livro já feito. Todos sabem que foi a força espiritual proporcionada por este novo livro que permitiu a Hassan, o Alto, vencer o Carneiro Negro e matar seu rival, Djahan Xá, após a grande derrota que lhe infligiu na localidade de Mil Lagos. Essa obra-prima, entre tantas outras que Sheik Ali havia produzido para a biblioteca de Djahan Xá, passou a fazer parte das coleções do tesouro otomano quando o sempre triunfador Hassan, o Alto, foi derrotado na Batalha dos Pastos, pelo sultão Mehmet Cã, o Conquistador, descanse em paz. Os que sabem ver, verão e saberão.
Ohran Pamuk, "Meu Nome é Vermelho"

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