terça-feira, março 27
Assim começa o livro...
Ao pegar da pena para, em completos ócio e retiro — gozando de boa saúde, aliás, embora também cansado, muito cansado (de modo que provavelmente só poderei avançar por pequenas etapas e fazendo muitas pausas para descansar), ao me preparar, enfim, para confiar minhas confissões a este paciente papel, na caligrafia limpa e agradável que me é peculiar, sou tomado por um receio fugaz de, com meus conhecimentos e minha instrução, não estar à altura de um empreendimento intelectual dessa natureza. Como, porém, tudo o que tenho a relatar se constitui de minhas experiências, erros e paixões mais pessoais e imediatos e, portanto, estou em pleno domínio de minha matéria, tais dúvidas não poderiam se referir senão ao meu tato e ao decoro com que me expresso, e quanto a isso, segundo me parece, os estudos regulares e concluídos a contento são menos decisivos que o talento natural e um bom berço. Este último não me faltou, pois procedo de uma casa burguesa distinta, embora licenciosa; ao longo de vários meses minha irmã Olympia e eu estivemos sob os cuidados de uma senhorita de Vevey, que, contudo, teve de bater em retirada quando se estabeleceu uma relação de rivalidade feminina entre ela e minha mãe — tendo meu pai por objeto —; meu padrinho Schimmelpreester, ao qual me ligavam os laços de uma intimidade profunda, era um artista muito apreciado, a quem todos na cidade chamavam de “senhor professor”, embora oficialmente ele talvez não fizesse jus a este título tão belo e desejável; meu pai, por sua vez, embora gordo e fornido, tinha muito encanto pessoal, e sempre deu grande importância a um modo claro e bem cuidado de se expressar. Herdara da avó o sangue francês, ele mesmo passara um período de aprendizado na França e afirmava conhecer Paris como o bolso de seu colete. De bom grado — e com excelente pronúncia — utilizava em sua conversação locuções como c’est ça, épatant ou parfaitement; também dizia com frequência “isso me amusa demais!” e foi, até o fim de seus dias, um favorito das mulheres. Digo isso apenas à guisa de antecipação e fora da ordem cronológica. Quanto ao meu dom natural para a elegância da forma, desde sempre estive seguro de possuí-lo, como bem o demonstra toda a minha vida de fraudes, e creio também poder confiar nele sem restrições nesta minha estreia por escrito. De resto, estou decidido a proceder com a mais absoluta franqueza em meu relato e não temer nem a acusação de vaidade nem a de despudor. Pois que valor e sentido moral se poderiam atribuir a confissões redigidas sob outro princípio que não o da veracidade?
O Rheingau me trouxe ao mundo, aquela província privilegiada, amena e sem asperezas tanto pelas condições climáticas quanto pela constituição do solo, rica em cidades e vilarejos e com uma população alegre, sem dúvida uma das regiões mais aprazíveis de toda a superfície habitada da Terra. Aqui florescem, protegidas do rigor dos ventos pelas colinas do Rheingau e estiradas deleitosamente sob o sol sulino, aquelas povoações famosas, ao som de cujos nomes o coração de um bom bebedor sorri, tais como Rauenthal, Johannisberg, Rüdesheim, ou ainda a cidadezinha venerável na qual, poucos anos depois da gloriosa fundação do império alemão, eu vi a luz do dia. Localizada um pouco a oeste do cotovelo que o Reno descreve nas proximidades de Mainz, famosa pela sua produção de vinho espumante, é um dos principais ancoradouros dos barcos que singram velozes as águas rio acima e rio abaixo, e conta cerca de quatro mil habitantes. A alegre Mainz, portanto, ficava bem próxima, e também os elegantes balneários do Taunus, tais como Wiesbaden, Homburg, Langenschwalbach e Schlangenbad, o último dos quais se podia alcançar após meia hora de viagem num trem de bitola estreita. Quantas vezes meus pais, minha irmã Olympia e eu não fizemos, na mais bela estação do ano, excursões de barco, de carro e de trem aos quatro cantos da região: pois de toda parte nos atraíam os encantos e as belezas criados pela natureza e pelo engenho humano. Ainda vejo meu pai num confortável traje de verão xadrez sentado conosco no jardim de alguma hospedaria — um pouco afastado da mesa, pois sua barriga o impedia de aproximar-se mais — a degustar com infinito prazer um prato de caranguejos e uma taça de vinho dourado. Muitas vezes meu padrinho Schimmelpreester nos acompanhava, observando com um olhar agudo o lugar e as pessoas através das lentes redondas de seus óculos de pintor, gravando em sua alma de artista o que havia ali de grande e de pequeno. Meu pobre pai era proprietário da firma Engelbert Krull, produtora do champanhe da marca Lorley Extra Cuvée, hoje extinta. Lá embaixo, junto ao Reno, não muito longe dos ancoradouros, ficavam suas adegas e, quando garoto, não foram poucas as vezes em que me esgueirei pelas frias abóbadas, trilhando meditativo os corredores pavimentados de pedras que conduziam a torto e a direito por entre as altas prateleiras, observando as fileiras de garrafas que repousavam meio inclinadas e empilhadas umas sobre as outras. “Aí estão vocês”, pensava comigo mesmo (embora, é claro, ainda não soubesse exprimir meus pensamentos em palavras tão precisas), “aí estão vocês, nesta penumbra subterrânea, e dentro de vocês se purifica e se prepara em silêncio o picante sumo dourado que irá vivificar as batidas de tantos corações, despertar um fulgor mais intenso em tantos olhos! Ainda estão nuas e desataviadas, mas um dia, suntuosamente adornadas, subirão à superfície do mundo a fim de disparar para o teto com um estampido insolente suas rolhas em festas, cerimônias de casamento e reuniões exclusivas, disseminando o êxtase, a despreocupação e o prazer entre os homens.” Assim falava o menino; e era verdade que a firma Engelbert Krull dava uma importância extraordinária pelo menos ao exterior de suas garrafas, àquela última vestimenta que os especialistas chamam de coiffure. As rolhas comprimidas eram firmadas com arame prateado e barbante dourado, e seladas com lacre púrpura, não faltando nem mesmo, pendente de um fio dourado, o requinte de um selo arredondado como os que se veem em bulas e antigos documentos oficiais; o pescoço das garrafas era luxuosamente revestido de papel-alumínio e sua barriga ostentava um rótulo com moldura de arabescos dourados criada com exclusividade para a firma por meu padrinho Schimmelpreester, na qual, além de vários brasões e estrelas, da rubrica de meu pai e da marca Lorley Extra Cuvée gravada a ouro, se podia ver uma figura de mulher vestida apenas com braceletes e colares, sentada de pernas cruzadas na ponta de um rochedo, os braços erguidos para pentear a cabeleira ondulada. A qualidade do vinho, entretanto, parecia não corresponder de todo a essa apresentação deslumbrante.
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