– Mas você, Zeca: é que nem faz ideia da vida. – A vida, Dona Luarmina? A vida é tão simples que ninguém a entende. É como dizia meu avô Celestiano sobre pensarmos Deus ou não Deus…
Além disso, pensar traz muita pedra e pouco caminho. Por isso eu, um reformado do mar o que me resta fazer? Dispensado de pescar, me dispenso de pensar. Aprendi nos muitos anos de pescaria: o tempo anda por ondas. A gente tem é que ficar levezinho e sempre apanha boleia numa dessas ondeações. – Não é verdade, Dona Luarmina? A senhora sabe essas línguas da nossa gente. Me diga, minha Dona: qual é a palavra para dizer futuro? Sim, como se diz futuro? Não se diz, na língua deste lugar de África. Sim, porque futuro é uma coisa que existindo nunca chega a haver. Então eu me suficiento do actual presente. E basta. – Só eu quero é ser um homem bom, Dona. – Você é mas é um aldrabom.
A gorda mulata não quer amolecer conversa. E tem razão, sendo minha vizinha desde há tanto. Ela chegou ao bairro depois da morte de meus pais, quando herdei a velha casa da família. Nessa altura, eu ainda pescava em longas viagens, semanas de ausência nos bancos de Sofala. Nem notava a existência de Luarmina. Também ela, logo que desembarcou, se internou na Missão, em estágio para freira. Ficou enclausurada nessas penumbras onde se murmura conversa com Deus. Só uns anos mais tarde ela saiu dessa reclusão. E se instalou na casa que os padres lhe destinaram, bem junto à minha morada. Luarmina costureirava, era seu sustento. Nos primeiros tempos, ela continuava sem se dar às vistas. Só as mulheres que entravam em seus domínios é que lhe davam conta. No resto, me chegavam apenas os perfumes de sua sombra. Um dia o padre Nunes me falou de Luarmina, seus brumosos passados. O pai era um grego, um desses pescadores que arrumou rede em costas de Moçambique, do lado de 1á da baía de S. Vicente. Já se antigamentara há muito. A mãe morreu pouco tempo depois. Dizem que de desgosto. Não devido da viuvez, mas por causa da beleza da filha. Ao que parece, Luarmina endoidava os homens graúdos que abutreavam em redor da casa. A senhora maldizia a perfeição de sua filha. Diz-se que, enlouquecida, certa noite intentou de golpear o rosto de Luarmina. Só para a esfeiar e, assim, afastar os candidatos.
Depois da morte da mãe, enviaram Luarmina para o lado de cá, para ela se amoldar na Missão, entregue a reza e crucifixo. Havia que arrumar a moça por fora, engomá-la por dentro. E foi assim que ela se dedicou a linhas, agulhas e dedais. Até se transferir para sua actual moradia, nos arredores de minha existência.
Só bem depois de me retirar das pescarias é que dei por mim a encostar desejos na vizinha. Comecei por cartas, mensagens à distância. À custa de minhas insistências namoradeiras Luarmina já aprendera as mil defesas. Ela sempre me desfazia os favores, negando-se. – Me deixa sossegada, Zeca. Não vê que eu já não desengomo lençol? – Que ideia, Dona vizinha? Quem lhe disse que eu tinha essa intenção? Todavia, ela tem razão. Minhas visitas são para lhe caçar um descuido na existência beliscar-lhe uma ternura. Só sonho sempre o mesmo: me embrulhar com ela, arrastado por essa grande onda que nos faz inexistir. Ela resiste, mas eu volto sempre ao lugar dela. – Dona Luarmina, o que é isso? Parece ficou mesmo freira. Um dia, quando o amor lhe chegar, você nem o vai reconhecer… – Deixe-me, Zeca. Eu sou velha, só preciso é um ombro.
Confirmando esse atestado de inutensílio, ela esfrega os joelhos como se fossem eles os culpados do seu cansaço. As pernas dela da maneira como incham, dificultam as vias do sangue. Lhe icebergam os pés, a gente toca e são blocos de gelo. E ela sempre se queixa. Um dia aproveitei para me oferecer: – Quer que lhe aqueça os pés? Arrepiando expectativa, ela até aceitou. Até eu fiquei assim, meio desfisgado, o coração atropelando o peito. – Me aquece, Zeca? – Sim, aqueço mas… pela parte de dentro.
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