Ao enviar-me mensalmente o seu "Abecedário do Leitor", o meu amigo Adolfo García Ortega ensina-me muitas coisas sobre livros e relembra-me outras tantas, algumas enterradas nos confins da memória. A última tinha que ver com um certo conto de Georges Perec chamado "A Viagem de Inverno" que li na saudosa Ficções, revista de contos dirigida por Luísa Costa Gomes que, infelizmente, deixou de ser publicada há muito. O enredo era fascinante: a história de um literato que encontra na casa de campo de uns amigos um livro de um escritor chamado Hugo Vernier, de quem nunca ouviu falar, e se sente imediatamente atraído pelas primeiras páginas; lê-o de ponta a ponta nessa noite, mas tudo aquilo lhe soa estranhamente familiar, chegando à conclusão de que o texto é uma espécie de soma de versos de poetas famosos, como Lautréamont, Verlaine, Rimbaud e muitos outros. Põe a hipótese de Vernier ser um impostor, mas, ao consultar a sua biografia no volume que tem em mãos, descobre que nasceu muito antes dos "seus" poetas… Será então Vernier um gênio desconhecido e plagiado por tantos grandes poetas que, por razões óbvias, nunca referiram o seu nome? O professor está obviamente interessado em saber mais, mas, quando se prepara para ir à biblioteca no dia seguinte, é levado de surpresa para um quartel (estamos em 1940) e só volta depois do fim da guerra (onde nunca esquece, porém, o assunto). Quando em 1945 tenta recuperar o livro – que não encontra em biblioteca nenhuma –, sabe que a casa dos amigos foi destruída pelos bombardeamentos… E, incapaz de cessar a investigação, acaba louco, internado num hospício. Embora a literatura seja sobretudo linguagem, como dizem alguns (e têm razão), quem consegue criar um enredo destes já tem a vida muito facilitada. Às vezes, os contos têm enredos bem melhores do que certos romances. E Perec consegue neste seu conto uma contenção que em certas ficções mais longas faz muita falta.
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