domingo, maio 19

'Popol Vuh' é um livro para quem ama livros, tão rico quanto a Bíblia

No princípio dos tempos, os deuses criadores da Terra ficaram enfurecidos por não serem venerados pelos animais. Para essa tarefa, conceberam o homem. A primeira versão não vingou. Era de barro, molenga, esfarelou-se.

Surgiram então os humanos feitos de madeira. Quase deu certo. Acabaram mortos por bichos maltratados e utensílios mal utilizados, como moringas e pratos. Na terceira tentativa, os deuses fizeram o homem usando milho – e eis aí a nossa origem.

Quem não acredita deve conferir “Popol Vuh”, obra de autoria anônima que relata a criação do mundo na ótica dos índios Maias-Quiché da Guatemala. Pela sua riqueza, é um livro para quem ama livros. A um só tempo, nos brinda com história, mitologias, delírios, religiosidade, poesia, humor, filosofia, alegorias, morais, traduções...


Escrito no século XVI, enquanto os espanhóis disseminavam atrocidades para ocupar seu latifúndio no continente americano, “Popol Vuh” hoje é frequentemente considerado à altura de referências como “Gilgamesh”, “Odisseia” ou a Bíblia.

Tem a ver. Um trecho como este é puro Gênesis: “Tudo em silêncio, vazio também o ventre do céu (...) Que assim se faça: que o vazio se preencha”. Ou este: “Para a Terra nascer, disseram apenas: Terra!, e a terra surgiu no mesmo instante”.

A história desse livro de profecias e oráculo de reis é tão curiosa quanto seu conteúdo. Depois do genocídio promovido pelos colonizadores na América Latina, quichés sobreviventes foram catequizados e aprenderam a escrever em espanhol. Foi então que nasceu “Popol Vuh”. Escondido dos europeus invasores, o livro foi descoberto pelo frei dominicano Francisco Xíménez já no século XVIII. O texto original a que ele teve acesso desapareceu, mas sabe-se que estava escrito na língua nativa dos índios e, melhor, grafado em caracteres latinos. Foi a partir daí que o dominicano (e linguista) elaborou um documento bilíngue quiché-espanhol, que é a versão mais antiga do “Popol Vuh”.

Naturalmente, toda a aventura narrada em suas páginas nasceu em tempos longínquos, sobrevivendo graças à tradição oral e construindo a mitologia que cerca a cultura do seu povo – incluindo um jogo com bola que muito nos lembra o futebol...

Também conhecida como “Livro do conselho”, a narrativa mescla poesia e prosa, e chega até a ser bem-humorada, brincando com as palavras. Às vezes delirante, não é de se estranhar que seja obra legítima da literatura latino-americana. Jorge Luís Borges, por exemplo, era admirador de “PopolVuh”, que também é moralizante, manual de conduta para a vida, rejeitando ambição, vaidade e outros pecadilhos, e pregando o respeito à natureza e aos antepassados. O resto se ajeita.

No fim das contas, temos aqui um livro a ser lido e relido sem pressa. A propósito, vale muito mergulhar, antes da narrativa maia-quiché, nos textos que a antecedem (o aviso é pertinente porque muita gente não faz isso).

A introdução e as notas críticas assinadas pela tradutora Josely Vianna Baptista são um presente para quem gosta de tradução e suas investigações. Trabalho de mestre. Por sua vez, o pesquisador da USP Daniel Grecco Pacheco mostra a importância do livro neste momento crítico de perseguição a nações indígenas em toda a América Latina. Diga-se que os quiché ainda vivem na Guatemala, sendo Rigoberta Menchu, Nobel de Literatura de 1992, sua filha mais conhecida.

Já o diplomata e historiador guatemalteco Adrián Recinos conta toda a aventura em torno de “Popol Vuh”. Foi Recinos quem, na década de 1940, redescobriu o documento original do frei Ximénez, perdido em meio a outros manuscritos na Newberry Library, de Chicago. A partir daí, explica cada trecho do livro. Brilhante.

Nelson Vasconcelos

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