O sabugo de milho vira foguete nas mãos do menino, mas o foguete vira sabugo nas mãos transespaciais de Deus.
Para Deus, tudo dos homens é a mesma simplicidade: a bola é de Paulo; Paulo corre atrás da bola; Eva Curie viu a ave; vovô Freud viu o ovo. Deus acha graça em nossos elementos.
Há doenças dispendiosas que se tratam anos a fio em hospitais suntuosos; há homens fortes que (só) carregam nos estádios o secreto câncer de viver; mas para Deus todas as doenças são dores de cabeça.
Para Deus, todos os homens são pobres: mendigos das esquinas de Wall Street, indigentes dos cartéis do aço, flagelados dos subterrâneos petrolíferos; mas Deus prefere os pobres sinceros, e os faz invisíveis.
Deus é o único hipnotizador: crescei e multiplicai-vos, e os homens inventam passagens sobre e sob o rio, semânticas, paixões assassinas; mas, a uma certa hora, ele nos convence de que estamos mortos; de mãos cruzadas e olhos estarrecidos, a gente acorda.
Deus é a moeda clandestina em um país estrangeiro: pobres de nós se confundimos a sua efígie de ouro de lei com perfil niquelado de César.
Para Deus, todos nós somos loucos metidos em camisas de onze varas: sobre os ombros do paciente, ele coteja os graus de certeza neurótica do analista.
O que seguras em tua mão é aquilo que te prende; o que possuis é aquilo que te priva; mas Deus diz: bebe a água sem bebê-la; anda por toda parte sem ir a parte alguma.
Na semente, Deus é árvore; na árvore, Deus é a semente.
Onde a palavra começa, a palavra acaba, e aí está Deus.
Para Deus, todos os homens levam nos bolsos objetos escondidos: selos antigos, uma esfera de aço, um anzol enferrujado, um canivete sem folha; por isso é preciso, de pena de nós mesmos, fazer força para não chorar. Pois todo menino enterra seu tesouro.
Deus é a luz, e assim a energia é a matéria multiplicada pelo quadrado da velocidade de Deus.
Deus dá nozes a quem tem dentes: ao funâmbulo, Deus estende a corda; o sofrimento, Deus dá a quem tem alma; a alegria, essa Deus a reservou para quem não tem nada.
Deus é o grande madrugador: ele estava de pé entre folhagens portentosas na úmida aurora do mundo; e ele andava em ti enquanto dormias.
Mas Deus é também o grande boêmio: ele passou por tua noite quando bebias teu penúltimo copo de vinho; talvez não o viste, mas todos os teus sentidos se alertaram, e bebeste um gole inquieto e enxugaste teus lábios com o dorso da mão e sentiste saudade de tua casa.
Deus é a chave de ouro do poema; mas as outras 13 chaves pendem de teu chaveiro; e os metais de tuas chaves abrem aposentos de frustração, onde não te encontras.
Deus é o guardião, a zaga, o meia-apoiador, o ponta-de-lança e o entendimento misterioso entre as linhas; o ferrolho não prevalecerá contra ele; por isso as multidões vibram com o seu virtuosismo.
Para ele, o homem primitivo será o último homem, e o primeiro homem foi o único sábio. Sendo o centro do círculo, todos os pontos que formam o tempo são equidistantes de Deus.
Paulo Mendes Campos
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