Que mistério. O rapaz não conseguia imaginar um propósito para o objeto que suportava. Pensou em cheirá-lo, mas a porta do quintal estava aberta, entrava luz, havia muita vida lá fora. O rapaz tinha seis anos, fugiu-lhe a atenção, distraiu-se, mas não se desinteressou pelo livro, apenas deixou de o interrogar enquanto objeto em si, começou a questioná-lo de maneira muito mais abstrata, enquanto intenção, enquanto sombra de um ato. A mãe disse o nome do filho:
Ilídio.
O rapaz, Ilídio, estava nesse momento a tentar imaginar a vontade da mãe, o que pretendia ao entregar‑lhe aquele livro, que era grande de mais para as suas mãos, mas que não era demasiado pesado. A mãe voltou a dizer o nome do filho, Ilídio. E as cores da mãe voltaram a definir‑se diante dele.
Escuta.
Esta palavra simples, de sílabas simples, foi entendida pelo Ilídio de modo completo, estava a ouvi‑la antes de ser dita e continuou a ouvi‑la no silêncio que se lhe seguiu. Aquela voz a dizer aquela palavra fazia parte do Ilídio. Podia ouvi‑la na cabeça sempre que quisesse. Em certas noites, quando se agarrava à mãe, ao quente, sem ser capaz de dormir, ouvia pedaços da voz da mãe, rasgados, a passarem‑lhe pela cabeça como serpentinas. Numa dessas noites, ou em várias, é bem possível que tenha distinguido essa maneira de paz com que a mãe sempre lhe dizia: escuta. Havia tons de voz que a mãe só utilizava para certas palavras ou expressões, como quando se saturava e dizia: por favor, a esculpir cada consoante, com um grande silêncio entre por e favor, a soprar no fim; ou como quando dizia: ora, é só lérias e mais lérias e dava uma gargalhada; ou como quando dizia: tu queres é remolgaria e parodim, e parecia que estava a cantar. Não faltariam exemplos de palavras que conseguia lembrar na voz da mãe.
Nenhum comentário:
Postar um comentário