O professor Eurico dizia-me que haveria de publicar as suas ideias num artigo em Inglaterra. Precisava muito de deixar expressas algumas ideias que pudessem realmente interferir nos modelos aplicados no futuro. Não vai perder nada e também não ganhará. Terá apenas a satisfação de se expressar, como quem, exactamente, procura a participação, essa qualidade de se representar a si mesmo e contar. O professor sorria como com a expectativa de uma malandrice. Quando sabemos algo que desarruma os poderes instituídos, sentimo-nos malandros. A coragem de o denunciar traz essa satisfação irresistível perante a qual revivemos. Depois, o professor Eurico explicava-me que casara há sessenta anos e que namorara mais sete. Estava preocupado com a esposa. Se não soubesse da esposa, também já pouco importava saber das outras coisas todas. A sociedade, na verdade, faz-se dessas prioridades. O amor tem de estar sempre em primeiro lugar. Ele não dizia amor, dizia: se não souber da minha mulher vou embora, não sei como, mas vou para casa cuidar dela.
Na fisiatria do Hospital de Santo António as utopias para o mundo são todas atropeladas por estas realidades mais simples. A demora da visita, ou a ausência da visita certa, descompõe tudo. Volta-se ao início. Primeiro, há que salvar o coração, que parece sempre mais difícil do que salvar o mundo.
Entretanto, o professor Eurico teve alta e estará em casa servido de afectos. Fico, por isso, à espera da notícia da publicação do seu artigo, a ver se esta Europa bafienta se regenera. Aos poucos, com sonhos de bons homens, excelentes homens que, no acumulado do pensamento, procuram ensinar que valeria a pena termos feito tudo de outra forma. Afinal, reconhecermos o lugar de cada um é bem possível e não há modo de isto ser pacificamente viável se não for assim.
Quando chegar aos oitenta e seis anos e me levarem a curar um braço ou uma perna, quero ser corajoso o suficiente para me denunciar. Se estiver certo de saber melhor do que sempre fiz, quero sonhar com algo maior, ainda que necessariamente seja algo que se pensa para depois do meu tempo, para depois do meu testemunho. Como um pensamento que, profundamente generoso, deixámos à consideração de quem também está de boa fé.
valter hugo mãe
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