Comove-me ver, no Museu Franz Kafka, muitas páginas da sua Carta ao Pai, que nunca enviou. Tinha uma letra arrevesada e saltitante, que, às vezes, pareciam desenhinhos de HQs. Essa enorme carta foi a primeira coisa que li dele, quando era adolescente. Eu me dava muito mal com meu pai, de quem tinha um medo pânico, e me senti totalmente identificado com esse texto desde as primeiras linhas, sobretudo quando Kafka acusa seu progenitor de tê-lo tornado inseguro, desconfiado de todos, de si mesmo e da sua própria vocação. Recordo com um calafrio aquela frase em que Kafka explica sua insegurança a ponto, diz, de não confiar em mais ninguém e mais nada, exceto o pedacinho de terra que seus pés pisam.
Há um texto maravilhoso escrito quando, recém-formado advogado, acaba de começar a trabalhar numa companhia de seguros (de oito a nove horas por dia, seis dias por semana), afirmando que esse trabalho matará sua vocação, porque como poderia chegar a ser um escritor alguém que dedica todo seu tempo a um estúpido afazer alimentício? Exceto os rentistas, todos os escritores do mundo se fizeram perguntas parecidas. Mas este fez o que a maioria deles não costuma fazer: escrever quase sem parar, em todos os momentos livres que tinha, e, embora tenha publicado muito pouco em vida, deixar uma obra que, incluídas suas cartas, é de longuíssimo fôlego.
Nada me parece mais triste que alguém que sentia intensamente essa vocação e que, como Kafka, foi capaz de escrever tantos livros jamais tenha sido reconhecido enquanto vivia, e só postumamente se notasse que foi um dos grandes escrivinhadores de todos os tempos (W.H. Auden o comparou a Dante, Shakespeare e Goethe e disse que ele, como aqueles, era a síntese e o emblema de sua época). As coisas que publicou em vida passaram praticamente despercebidas, e isso que entre elas figurava A Metamorfose. O pedido a seu amigo Max Brod para que queimasse seus inéditos revela que acreditava ter fracassado como escritor, embora talvez restasse alguma esperança, porque, do contrário, ele mesmo os teria queimado.
A propósito de Max Brod, um dos poucos contemporâneos que acreditavam no talento de Kafka, há agora, por motivo da aparição do livro Kafka’s Last Trial, de Benjamin Balint, uma ressurreição dos ataques que já lhe fizeram no passado, inclusive críticos e intelectuais tão respeitáveis como Walter Benjamin e Hannah Arendt. Que injustiça! O mundo deveria estar para sempre grato a Max Brod, por ter, em vez de acatado a decisão do amigo a quem estimava e admirava, salvado para os leitores do futuro uma das obras mais originais da literatura. Em sua biografia e em seus ensaios sobre Kafka, Brod pode ter exagerado a influência que o misticismo judaico exerceu sobre ele, e talvez tenha se equivocado ao deixar em seu testamento à senhora Esther Hoffe os inéditos que ainda restavam, razão pela qual o Estado judaico e a Alemanha passaram muitos anos litigando por aqueles textos (finamente foi Israel que ficou com eles), tema sobre o qual versa o por outro lado estrambótico livro de Benjamin Balint. Ninguém que desfrute verdadeiramente lendo Kafka deveria lê-lo. Os que o atacam teriam que estar conscientes de que nada do que dizem em suas análises sobre Kafka seria possível sem a decisão extraordinariamente sagaz de Max Brod de resgatar esta obra essencial.
Hermann Kafka, o destinatário da impressionante carta que seu filho nunca lhe enviou, era um judeu humilde, que não teve contato nenhum com a literatura. Dedicou-se ao comércio, abrindo lojinhas de armarinhos que tiveram certo êxito e elevaram os níveis de vida da família. Mas havia nele algum germe de excentricidade kafkiana, porque como é possível que passasse a vida mudando de apartamento, inclusive dentro de um mesmo quarteirão? Os guias dizem que se mudou doze vezes de residência, e que não menos mudanças experimentaram suas lojas. A família se considerava judia e falava alemão, como a maioria dos tchecos de então, e não era particularmente religiosa. Kafka tampouco o foi, pelo menos até que chegasse a Praga aquela companhia de teatro em iídiche que tanto o impressionou. O museu documenta muito bem os efeitos dessa experiência, o empenho com que se pôs a estudar hebraico (que nunca chegou a aprender), a ler livros sobre o hassidismo e outros movimentos místicos, assim como o belíssimo texto que escreveu sobre aqueles atores e atrizes que faziam teatro em iídiche, sobrevivendo com as miseráveis gorjetas que o público lhes atirava na rua ou nos cafés onde atuavam.
O museu também dá detalhes sobre as quatro namoradas que Kafka chegou a ter e sobre como eram complicadas suas relações sentimentais. Apaixonava-se, sem dúvida, e era um amante tenaz, monopolizador, e lhes propunha casamento. Mas, assim que aceitavam, recuava, aterrorizado por ter chegado tão longe. A insegurança o perseguia também no amor. Pelo menos três dessas namoradas sofreram com esses desplantes; com uma delas, Felicia Bauer, celebrou o noivado com uma festa, poucos dias antes de rompê-lo. Com a amizade era muito mais constante. Seu melhor amigo foi sem dúvida Max Brod, que, naqueles anos, já tinha um nome literário e havia publicado alguns livros. Foi um dos primeiros em perceber o gênio de Kafka e o estimulou sem trégua a escrever e a acreditar em si mesmo, algo que efetivamente ocorreu, pois Kafka, pelo menos quando escrevia, perdia a insegurança da qual sempre padeceu e se tornava um insólito e seguro fazedor de pessoas e histórias. Uma tuberculose galopante acabou com sua existência, no começo da maturidade. Hitler deu cabo do resto da família.
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