Nada havia de mais prestante em nós senão a infância. O mundo começava ali. Nosso campo encostava na beira do rio. Um menino Guató chegava de canoa e embicavano barranco. Teria remado desde cedo para vir ocupar a posição de golquíper no Porto de Dona Emília Futebol Clube. Nosso valoroso time. As cercas laterais do campo
eram de cansanção. Espinheiro fechado pra ninguém botar defeito. Guató já trazia do barranco duas pedras para servir de balizas. Os craques desciam da cidade como formigas. José de Camos, nosso beque de espera também tinha a incumbência de soprar as bexigas. Porque a nossa bola
era de bexiga, que às vezes caiam no rio e as piranhas devoravam. E se caísse no cansanção os espinhos furavam. Nosso campinho miúdo só permitia times de sete: O goleiro, um beque de espera, um beque de avanço e três na linha. Chambalé nosso técnico impunha regras: só pode mijar no rio e não pode jogar de botina. Sabastião era centroavante. Chutava no rumo certo. Sabia
as variações da bexiga no vento e botava no grau certo.
Quando alguém enfiava as unhas na pedra abria uma vaga.
Metade de nossos craques eram filhos de lavandeiras e
outra metade de pescadores. Na aba do campo a namorada
do Sabastião torcia: quebra esse saba, destina eles pras
piranhas. Mas Chambalé não deixava destinar. Quem destina
é Deusi – falava. No fim do jogo alguns iam bater bronha,
outros iam no mato jogar o mantimento e outros iam
pelotear passarinho. Guató pegava a canoa e remava até
a aldeia a mil metros dali. A cidade onde a gente morava
foi feita em cima de uma pedra branca enorme. E o rio
paraguaio, lá embaixo, corria com suas piranhas
e os seus camalotes.
Manoel de Barros, "Memórias Inventas – A segunda infância"
sexta-feira, outubro 28
Bebedor de vinho
Em seguida, tomei a Estrada da Morte, e gastei cerca de oito horas para chegar lá. E para minha surpresa durante toda a viagem não encontrei ninguém no caminho e isto me fez sentir medo. Quando cheguei à casa dela (Morte), ela não estava lá, estava em sua horta de inhame que ficava perto dali. Na varanda encontrei um pequeno tambor que toquei para a Morte em sinal de cumprimento. Entretanto ao ouvir o som do tambor ela (Morte) falou: “Este homem tocando tambor está vivo ou morto?” Respondi: “Eu ainda estou vivo e não sou um homem morto”.
Amos Tutuola, "O bebedor de vinho de palmeira"
Amos Tutuola, "O bebedor de vinho de palmeira"
Navegação nas Galápagos
A lua cheia ia descendo na alheta de boreste...
Não, assim não dá. Tenho de reprimir a minha vultosa cultura naval e explicar ao leitor ignaro que acontecia o seguinte: era noite de lua cheia; aliás, já era madrugada, coisa de 4 horas, pouco mais. Sendo assim, a lua já atravessara a maior parte do céu e agora descia lá atrás de nosso barco, um pouco à nossa direita. Se a lua estivesse baixando exatamente sobre nossa popa, isso queria dizer que estávamos navegando exatamente em direção a Leste. Certo? Mas não; ela descambava para trás e para a direita, isto é, nós navegávamos para Leste e também para o Sul.
Mais para Leste que para o Sul. Digamos: Leste-Sueste. Na roda dos ventos graduada de 0 a 360 graus, o rumo era mais ou menos 125. Acho que estou sendo bastante claro, a não ser para os leitores mineiros, goianos e outros mato-grossenses e homens de terra adentro, que, aliás, é melhor que não me leiam, pois comecei esta narrativa em pleno mar e irei até o fim sem pisar terra firme; sinto que os que chegaram até aqui já começam a se sentir mareados.
Aguentem-se. Quando eu era rapazola alguém me deu a ler O Tufão, de Conrad, em tradução brasileira. Achei formidável, embora não entendesse nenhuma daquelas manobras com enxárcias, bujarronas, mastaréus e paus de giba, joanetes e sobregatas, traquetes e gurupés. Eu não sabia o que queria dizer nada disso. Nem por isso senti menos os açoites do vento e o terror das vagas; não naufraguei porque eu já era um homenzinho — mas sofri muito. Nenhuma tempestade do cinema sonoro e colorido me impressionou tanto como aquela. Veja-se a força da literatura e o impacto violento das palavras, sobretudo as desconhecidas, sobre o espírito humano.
Mas navigare est necesse; voltemos ao nosso barco. Esclareço que estou falando da noite de 27 de fevereiro de 1983, domingo, ou melhor, da madrugada de 28, segunda-feira. O oceano é o Pacífico, a pouco mais de 90 graus de longitude Oeste de Greenwich; isto quer dizer uns 900km à esquerda do ponto mais esquerdo da América do Sul, para quem olha um mapa; quanto à latitude, é zero; estamos na altura da linha do Equador. Passamos esta linha do Sul para o Norte esta noite mesmo; e agora voltamos a cruzá-la em sentido contrário. É que demos a volta ao Cabo Wolf, ponta norte da ilha Isabela (ou Albemable), a maior de todas as Galápagos. Na cabina de comando, atrás do homem da roda do leme, eu via o céu e o mar, tudo azul e manso.
Na minha frente, um pouco à esquerda, uma estrela grande, avermelhada, e um planeta brilhante.
Ela era Antares, ele, Júpiter. Estão vendo como eu sei as coisas? (Na verdade quem os identificou para mim foi o imediato, um genovês. Eu conquistara sua simpatia mostrando-lhe que conhecia alguma coisa de seu dialeto, por exemplo: trabalho é laburo, moça bonita é una bela figlia e cinco é cinco mesmo, escrito e falado como em português, e não, como em italiano, cinque, que se pronuncia tchinque. Aliás o que me prejudica o estilo é esta cultura polimórfica, que me faz abrir parênteses a todo instante.) “Antares”, disse ele amavelmente, “é a Alfa de Escorpião.”
Coisa que eu já sabia, mas fiquei calado, pois é antipático mostrar que a gente sabe coisa demais. Referi-lhe uma crença, comum na Marinha brasileira e certamente em outras, que atribui a Antares influências maléficas. É uma estrela muito oferecida e fácil de trabalhar com ela, mas apesar disso, quando querem determinar, por exemplo, a posição do navio, muitos nautas preferem usar outras estrelas menores e mais difíceis. Eu sabia disso pelo comandante Renato Bayma Archer, que me assessora habitualmente em assuntos navais e outros. Lembro-me de que fiquei apreensivo ao conhecer essa fama de Antares, porque Érico Veríssimo, a quem muito prezava, acabava de publicar o romance Incidente em Antares. Calei-me e não passei a informação a ninguém, muito menos ao Érico, homem de coração fraco; ele ainda viveu quatro anos.
Agora o imediato me aponta algumas estrelas um pouco à nossa direita, na frente: “aquelas você conhece.” Era o Cruzeiro do Sul, já tombado, pertinho do horizonte, com as duas maiores estrelas do Centauro em cima dele. Aqui no Equador, o Cruzeiro, quando aparece, é num cantinho de céu estreito. É como se, aí no Rio, ele nascesse diante de minha varanda mais ou menos por cima da laje da Cagarra e já descesse na Filhote da Redonda. Comovi-me um pouco ao ver aquelas estrelas tão familiares, e até amigas, que tantas vezes miro depois do jantar, da minha rede. “Boa noite”, murmurei vagamente, e quase acrescentei: “este mundo é muito pequeno.”
Nem tanto. Lembrei-me de que se ali eram quatro horas da madrugada, no Rio já seriam sete da manhã, tudo inundado de sol de verão, a praça General Osório bufando de ônibus, já fazendo calor.
Eu disse que havia “na minha frente, um pouco à esquerda, uma estrela grande, avermelhada, e um planeta brilhante”. E mais adiante acrescentei que o Cruzeiro do Sul estava “um pouco à nossa direita”.
A linguagem certa seria localizar Antares e Júpiter na bochecha de bombordo e o Cruzeiro na bochecha de boreste. É assim que se diz. Mas eu escrevo para o leitor rude e terráqueo, que não pretendo confundir, mas ilustrar. Lendo-me, ele pode não entender muita coisa, mas sempre irá aprendendo alguma.
Isso de “bochecha” de navio é engraçado. Avisa-me porém, o antigo primeiro-tenente do 1º Grupo de Aviação de Caça na Itália, hoje Brigadeiro Luiz Felipe Perdigão Medeiros da Fonseca, oriundo da Marinha, que, em suas origens, muitos termos navais eram alusivos ao corpo humano; mais precisamente, ao corpo da mulher. Coisa de marinheiro, ávido e saudoso de carinho feminino. Tanto que em inglês o barco não se designa pelo neutro it, mas pelo carinhoso she.
Em matéria de sexo há uma dúvida no Brasil que só o Estado-Maior das Forças Armadas — digam: EMFA — poderá resolver um dia: hélice na Marinha é masculino e na Aeronáutica é feminino. Quem tem razão? Para nós, paisanos, o melhor é dizer humildemente: o hélice do navio, a hélice do avião. (Não criar caso com os homens de farda; eles sempre têm razão, de um lado e de outro; e se você brincar, mandam-lhe em cima a Lei de Segurança Nacional.) Isto me faz lembrar uma vez em que fui interrogado. Eu dei uma resposta muito boa ao coronel que me interrogava; o diabo é que agora não me lembro se respondi aquilo mesmo na hora ou se foi depois que atinei com a resposta, quando já era tarde. Sou desses sujeitos sem a chamada “presença de espírito”. Meu espírito às vezes só se faz presente horas, dias depois da ocasião. O caso é que o homem se mostrava indignado e também um tanto intrigado com um artigo meu, publicado meses antes: — O que é que você quer dizer com isto?
Expliquei-lhe que eu queria dizer aquilo mesmo que estava escrito. Eu vivo de escrever, sei escrever corretamente em português do Brasil, e tenho até “redação própria”, como dizia de Otto Lara Resende, com admiração, um contínuo seu da TV Globo, vendo-o bater à máquina sem olhar papel nenhum.
Entendo esse contínuo: trata-se do chamado “mistério da criação”. Vá você domingo à praça General Osório ver a tal feira hippie. Há ali quadros de muitos pintores, representando paisagens de céu, terra e mar, e figuras de toda espécie, de mulher nua até negro velho de cachimbo. As pessoas passam, olham rapidamente, vão andando. Mas vem um artista, arma um cavalete e começa a pintar ali mesmo um retrato ou qualquer outra coisa; e logo um monte de gente se forma atrás dele, fascinante. É o encanto da coisa in fieri.
É claro que não expliquei tudo isto ao oficial que me interrogava em um quartel de São Cristóvão. Apenas, se bem me lembro, disse que eu tinha muita prática de escrever e, por isso, sabia dizer por escrito o que eu queria dizer. Assim, respondi à sua pergunta: o que eu queria dizer ao escrever aquilo era exatamente o que ali estava escrito.
Ocorreu-me então uma resposta melhor. Foi na hora, ou depois que isto ocorreu? Não me lembro, sinceramente, e às vezes tenho a impressão de que a resposta me ocorreu na hora, mas eu achei que não ficava bem.
Pois ficava. Ele queria saber o que eu queria (ou quisera) dizer num artigo que escrevera, e eu me lembrei do aviso que existe no talão do jogo de bicho. Antigamente havia um carimbo em cada talão avisando: “Só vale o que está escrito.” Com o tempo isto foi reduzido a uma fórmula mais concisa: “Vale o escrito.” Com isto o bicheiro se livra de reclamações tipo “mas eu mandei você botar invertido na cabeça”. Tenha mandado isso ou não tenha, se não está escrito não vale.
“Vale o escrito.” Regra de ouro para infirmar alegações ingênuas ou capciosas de leitores de entrelinhas. “Vale o escrito.” É perfeito.
Também muito bonita foi uma resposta que eu (não) dei ao Paulo Bittencourt, que era diretor do Correio da Manhã, onde eu trabalhei, mas, no tempo dessa conversa, ainda não trabalhava. Eu ajustava com ele o preço de umas reportagens que ia fazer no exterior para vários jornais, e a certa altura, a propósito não me lembro de que, ele disse que então preferia usar a prata da casa! Mais adiante, na conversa, ele falou outra vez na prata da casa. Só muitos dias depois me ocorreu que eu lhe devia ter dito na hora: “Então está tudo muito bem, Paulo, eu desisto, mesmo porque eu não sou prata da casa de ninguém.”
Bela resposta, e soberba! Paulo, que tinha muito de um gentil-homem, era capaz até de gostar. “Eu não sou prata da casa de ninguém!” Ou então assim: “Pois fique o senhor sabendo que eu não sou prata da casa de ninguém!” Famosa resposta! E pensar que não a dei...
Só agora percebo que comecei a falar das ilhas Galápagos, e me perdi. Vamos deixar isso para lá.
Rubem Braga, "Recado de Primavera"
Não, assim não dá. Tenho de reprimir a minha vultosa cultura naval e explicar ao leitor ignaro que acontecia o seguinte: era noite de lua cheia; aliás, já era madrugada, coisa de 4 horas, pouco mais. Sendo assim, a lua já atravessara a maior parte do céu e agora descia lá atrás de nosso barco, um pouco à nossa direita. Se a lua estivesse baixando exatamente sobre nossa popa, isso queria dizer que estávamos navegando exatamente em direção a Leste. Certo? Mas não; ela descambava para trás e para a direita, isto é, nós navegávamos para Leste e também para o Sul.
Mais para Leste que para o Sul. Digamos: Leste-Sueste. Na roda dos ventos graduada de 0 a 360 graus, o rumo era mais ou menos 125. Acho que estou sendo bastante claro, a não ser para os leitores mineiros, goianos e outros mato-grossenses e homens de terra adentro, que, aliás, é melhor que não me leiam, pois comecei esta narrativa em pleno mar e irei até o fim sem pisar terra firme; sinto que os que chegaram até aqui já começam a se sentir mareados.
Aguentem-se. Quando eu era rapazola alguém me deu a ler O Tufão, de Conrad, em tradução brasileira. Achei formidável, embora não entendesse nenhuma daquelas manobras com enxárcias, bujarronas, mastaréus e paus de giba, joanetes e sobregatas, traquetes e gurupés. Eu não sabia o que queria dizer nada disso. Nem por isso senti menos os açoites do vento e o terror das vagas; não naufraguei porque eu já era um homenzinho — mas sofri muito. Nenhuma tempestade do cinema sonoro e colorido me impressionou tanto como aquela. Veja-se a força da literatura e o impacto violento das palavras, sobretudo as desconhecidas, sobre o espírito humano.
Mas navigare est necesse; voltemos ao nosso barco. Esclareço que estou falando da noite de 27 de fevereiro de 1983, domingo, ou melhor, da madrugada de 28, segunda-feira. O oceano é o Pacífico, a pouco mais de 90 graus de longitude Oeste de Greenwich; isto quer dizer uns 900km à esquerda do ponto mais esquerdo da América do Sul, para quem olha um mapa; quanto à latitude, é zero; estamos na altura da linha do Equador. Passamos esta linha do Sul para o Norte esta noite mesmo; e agora voltamos a cruzá-la em sentido contrário. É que demos a volta ao Cabo Wolf, ponta norte da ilha Isabela (ou Albemable), a maior de todas as Galápagos. Na cabina de comando, atrás do homem da roda do leme, eu via o céu e o mar, tudo azul e manso.
Na minha frente, um pouco à esquerda, uma estrela grande, avermelhada, e um planeta brilhante.
Ela era Antares, ele, Júpiter. Estão vendo como eu sei as coisas? (Na verdade quem os identificou para mim foi o imediato, um genovês. Eu conquistara sua simpatia mostrando-lhe que conhecia alguma coisa de seu dialeto, por exemplo: trabalho é laburo, moça bonita é una bela figlia e cinco é cinco mesmo, escrito e falado como em português, e não, como em italiano, cinque, que se pronuncia tchinque. Aliás o que me prejudica o estilo é esta cultura polimórfica, que me faz abrir parênteses a todo instante.) “Antares”, disse ele amavelmente, “é a Alfa de Escorpião.”
Coisa que eu já sabia, mas fiquei calado, pois é antipático mostrar que a gente sabe coisa demais. Referi-lhe uma crença, comum na Marinha brasileira e certamente em outras, que atribui a Antares influências maléficas. É uma estrela muito oferecida e fácil de trabalhar com ela, mas apesar disso, quando querem determinar, por exemplo, a posição do navio, muitos nautas preferem usar outras estrelas menores e mais difíceis. Eu sabia disso pelo comandante Renato Bayma Archer, que me assessora habitualmente em assuntos navais e outros. Lembro-me de que fiquei apreensivo ao conhecer essa fama de Antares, porque Érico Veríssimo, a quem muito prezava, acabava de publicar o romance Incidente em Antares. Calei-me e não passei a informação a ninguém, muito menos ao Érico, homem de coração fraco; ele ainda viveu quatro anos.
Agora o imediato me aponta algumas estrelas um pouco à nossa direita, na frente: “aquelas você conhece.” Era o Cruzeiro do Sul, já tombado, pertinho do horizonte, com as duas maiores estrelas do Centauro em cima dele. Aqui no Equador, o Cruzeiro, quando aparece, é num cantinho de céu estreito. É como se, aí no Rio, ele nascesse diante de minha varanda mais ou menos por cima da laje da Cagarra e já descesse na Filhote da Redonda. Comovi-me um pouco ao ver aquelas estrelas tão familiares, e até amigas, que tantas vezes miro depois do jantar, da minha rede. “Boa noite”, murmurei vagamente, e quase acrescentei: “este mundo é muito pequeno.”
Nem tanto. Lembrei-me de que se ali eram quatro horas da madrugada, no Rio já seriam sete da manhã, tudo inundado de sol de verão, a praça General Osório bufando de ônibus, já fazendo calor.
Eu disse que havia “na minha frente, um pouco à esquerda, uma estrela grande, avermelhada, e um planeta brilhante”. E mais adiante acrescentei que o Cruzeiro do Sul estava “um pouco à nossa direita”.
A linguagem certa seria localizar Antares e Júpiter na bochecha de bombordo e o Cruzeiro na bochecha de boreste. É assim que se diz. Mas eu escrevo para o leitor rude e terráqueo, que não pretendo confundir, mas ilustrar. Lendo-me, ele pode não entender muita coisa, mas sempre irá aprendendo alguma.
Isso de “bochecha” de navio é engraçado. Avisa-me porém, o antigo primeiro-tenente do 1º Grupo de Aviação de Caça na Itália, hoje Brigadeiro Luiz Felipe Perdigão Medeiros da Fonseca, oriundo da Marinha, que, em suas origens, muitos termos navais eram alusivos ao corpo humano; mais precisamente, ao corpo da mulher. Coisa de marinheiro, ávido e saudoso de carinho feminino. Tanto que em inglês o barco não se designa pelo neutro it, mas pelo carinhoso she.
Em matéria de sexo há uma dúvida no Brasil que só o Estado-Maior das Forças Armadas — digam: EMFA — poderá resolver um dia: hélice na Marinha é masculino e na Aeronáutica é feminino. Quem tem razão? Para nós, paisanos, o melhor é dizer humildemente: o hélice do navio, a hélice do avião. (Não criar caso com os homens de farda; eles sempre têm razão, de um lado e de outro; e se você brincar, mandam-lhe em cima a Lei de Segurança Nacional.) Isto me faz lembrar uma vez em que fui interrogado. Eu dei uma resposta muito boa ao coronel que me interrogava; o diabo é que agora não me lembro se respondi aquilo mesmo na hora ou se foi depois que atinei com a resposta, quando já era tarde. Sou desses sujeitos sem a chamada “presença de espírito”. Meu espírito às vezes só se faz presente horas, dias depois da ocasião. O caso é que o homem se mostrava indignado e também um tanto intrigado com um artigo meu, publicado meses antes: — O que é que você quer dizer com isto?
Expliquei-lhe que eu queria dizer aquilo mesmo que estava escrito. Eu vivo de escrever, sei escrever corretamente em português do Brasil, e tenho até “redação própria”, como dizia de Otto Lara Resende, com admiração, um contínuo seu da TV Globo, vendo-o bater à máquina sem olhar papel nenhum.
Entendo esse contínuo: trata-se do chamado “mistério da criação”. Vá você domingo à praça General Osório ver a tal feira hippie. Há ali quadros de muitos pintores, representando paisagens de céu, terra e mar, e figuras de toda espécie, de mulher nua até negro velho de cachimbo. As pessoas passam, olham rapidamente, vão andando. Mas vem um artista, arma um cavalete e começa a pintar ali mesmo um retrato ou qualquer outra coisa; e logo um monte de gente se forma atrás dele, fascinante. É o encanto da coisa in fieri.
É claro que não expliquei tudo isto ao oficial que me interrogava em um quartel de São Cristóvão. Apenas, se bem me lembro, disse que eu tinha muita prática de escrever e, por isso, sabia dizer por escrito o que eu queria dizer. Assim, respondi à sua pergunta: o que eu queria dizer ao escrever aquilo era exatamente o que ali estava escrito.
Ocorreu-me então uma resposta melhor. Foi na hora, ou depois que isto ocorreu? Não me lembro, sinceramente, e às vezes tenho a impressão de que a resposta me ocorreu na hora, mas eu achei que não ficava bem.
Pois ficava. Ele queria saber o que eu queria (ou quisera) dizer num artigo que escrevera, e eu me lembrei do aviso que existe no talão do jogo de bicho. Antigamente havia um carimbo em cada talão avisando: “Só vale o que está escrito.” Com o tempo isto foi reduzido a uma fórmula mais concisa: “Vale o escrito.” Com isto o bicheiro se livra de reclamações tipo “mas eu mandei você botar invertido na cabeça”. Tenha mandado isso ou não tenha, se não está escrito não vale.
“Vale o escrito.” Regra de ouro para infirmar alegações ingênuas ou capciosas de leitores de entrelinhas. “Vale o escrito.” É perfeito.
Também muito bonita foi uma resposta que eu (não) dei ao Paulo Bittencourt, que era diretor do Correio da Manhã, onde eu trabalhei, mas, no tempo dessa conversa, ainda não trabalhava. Eu ajustava com ele o preço de umas reportagens que ia fazer no exterior para vários jornais, e a certa altura, a propósito não me lembro de que, ele disse que então preferia usar a prata da casa! Mais adiante, na conversa, ele falou outra vez na prata da casa. Só muitos dias depois me ocorreu que eu lhe devia ter dito na hora: “Então está tudo muito bem, Paulo, eu desisto, mesmo porque eu não sou prata da casa de ninguém.”
Bela resposta, e soberba! Paulo, que tinha muito de um gentil-homem, era capaz até de gostar. “Eu não sou prata da casa de ninguém!” Ou então assim: “Pois fique o senhor sabendo que eu não sou prata da casa de ninguém!” Famosa resposta! E pensar que não a dei...
Só agora percebo que comecei a falar das ilhas Galápagos, e me perdi. Vamos deixar isso para lá.
Rubem Braga, "Recado de Primavera"
quarta-feira, outubro 26
O avião da Bela Adormecida
Era bela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. “Esta é a mulher mais bela que vi na vida”, pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.
Eram nove da manhã. Estava nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto, porém, a vida continuava em primavera.
Eu estava na fila atrás de uma anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista. “Claro que sim”, respondeu. “Os impossíveis são os outros.”
Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento eu preferia: fumante ou não-fumante.
- Dá na mesma - disse categórico -, desde que não seja ao lado das onze malas.
Ela agradeceu com um sorriso comercial sem afastar a vista da tela fosforescente.
- Escolha um número - me disse. - Três, quatro ou sete.
- Quatro.
Seu sorriso teve um fulgor triunfal.
- Nos quinze anos em que estou aqui - disse -, é o primeiro que não escolhe o sete.
Marcou no cartão de embarque o número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos os voos estavam adiados.
- Até quando?
- Só Deus sabe - disse com seu sorriso.
O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano.
Enganou-se: foi a maior do século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que escapei para respirar.
Lá fora encontrei um espetáculo assustador.
Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não pude evitar a ideia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar.
Na hora do almoço havíamos assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber. As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho. Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de papelão, e com o pensamento na bela.
O voo para Nova York, previsto para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes experientes. “Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar”, pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela não percebeu.
Instalou-se como se fosse morar ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão. Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante o voo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental.
Quando levaram a água, ela abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento. Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir, deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas eternas e os doze minutos de sobra que o voo de Nova York durou.
Foi uma viagem intensa. Sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada.
Fiz um jantar solitário, dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole, levantava a taça e brindava.
- À tua saúde, bela.
Terminado o jantar, apagaram as luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter mais de vinte anos, me consolei com a ideia de que não fosse a aliança de um casamento e sim de um namoro efêmero. “Saber que você dorme, certa, segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços atados”, pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o soneto magistral de Gerardo Diego. Em seguida estendi a poltrona na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam, porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude.
- Quem iria acreditar - me disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. - Eu, ancião japonês a estas alturas.
Acho que dormi várias horas, vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no campo de batalha.
No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade mesquinha de não os recolher.
Depois de desafogar-me dos excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique, ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria me alegrado.
Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento número quatro.
O sono da bela era invencível. Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de voo era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. “Que merda”, disse a mim mesmo, com um grande desprezo. “Por que não nasci Touro?”.
Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral. Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos, não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não.
Tirou a máscara, abriu os olhos radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de Nova York.
Eram nove da manhã. Estava nevando desde a noite anterior, e o trânsito era mais denso que de costume nas ruas da cidade, e mais lento ainda na estrada, e havia caminhões de carga alinhados nas margens, e automóveis fumegantes na neve. No saguão do aeroporto, porém, a vida continuava em primavera.
Eu estava na fila atrás de uma anciã holandesa que demorou quase uma hora discutindo o peso de suas onze malas. Começava a me aborrecer quando vi a aparição instantânea que me deixou sem respiração, e por isso não soube como terminou a polêmica, até que a funcionária me baixou das nuvens chamando minha atenção pela distração. À guisa de desculpa, perguntei se ela acreditava nos amores à primeira vista. “Claro que sim”, respondeu. “Os impossíveis são os outros.”
Continuou com os olhos fixos na tela do computador, e me perguntou que assento eu preferia: fumante ou não-fumante.
- Dá na mesma - disse categórico -, desde que não seja ao lado das onze malas.
Ela agradeceu com um sorriso comercial sem afastar a vista da tela fosforescente.
- Escolha um número - me disse. - Três, quatro ou sete.
- Quatro.
Seu sorriso teve um fulgor triunfal.
- Nos quinze anos em que estou aqui - disse -, é o primeiro que não escolhe o sete.
Marcou no cartão de embarque o número do assento e me entregou com o resto de meus papéis, olhando-me pela primeira vez com uns olhos cor de uva que me serviram de consolo enquanto via a bela de novo. Só então me avisou que o aeroporto acabava de ser fechado e todos os voos estavam adiados.
- Até quando?
- Só Deus sabe - disse com seu sorriso.
O rádio avisou esta manhã que será a maior nevada do ano.
Enganou-se: foi a maior do século. Mas na sala de espera da primeira classe a primavera era tão real que havia rosas vivas nos vasos e até a música enlatada parecia tão sublime e sedante como queriam seus criadores. De repente pensei que aquele era um refúgio adequado para a bela, e procurei-a nos outros salões, estremecido pela minha própria audácia. Mas na maioria eram homens da vida real que liam jornais em inglês enquanto suas mulheres pensavam em outros, contemplando os aviões mortos na neve através das janelas panorâmicas, contemplando as fábricas glaciais, as vastas plantações de Roissy devastadas pelos leões. Depois do meio-dia não havia um espaço disponível, e o calor tinha-se tornado tão insuportável que escapei para respirar.
Lá fora encontrei um espetáculo assustador.
Gente de todo tipo havia transbordado as salas de espera e estava acampada nos corredores sufocantes, e até nas escadas, estendida pelo chão com seus animais e suas crianças, e seus trastes de viagem. Pois também a comunicação com a cidade estava interrompida, e o palácio de plástico transparente parecia uma imensa cápsula espacial encalhada na tormenta. Não pude evitar a ideia de que também a bela deveria estar em algum lugar no meio daquelas hordas mansas, e essa fantasia me deu novos ânimos para esperar.
Na hora do almoço havíamos assumido nossa consciência de náufragos. As filas tornaram-se intermináveis diante dos sete restaurantes, as cafeterias, os bares abarrotados, e em menos de três horas tiveram de fechar tudo porque não havia nada para comer ou beber. As crianças, que por um momento pareciam ser todas as do mundo, puseram-se a chorar ao mesmo tempo, e começou a se erguer da multidão um cheiro de rebanho. Era o tempo dos instintos. A única coisa que consegui comer no meio daquela rapina foram os dois últimos copinhos de sorvete de creme numa lanchonete infantil. Tomei-os pouco a pouco no balcão, enquanto os garçons punham as cadeiras sobre as mesas na medida em que elas se desocupavam, olhando-me no espelho do fundo, com o último copinho de papelão e a última colherzinha de papelão, e com o pensamento na bela.
O voo para Nova York, previsto para as onze da manhã, saiu às oito da noite. Quando finalmente consegui embarcar, os passageiros da primeira classe já estavam em seus lugares, e uma aeromoça me conduziu ao meu. Perdi a respiração. Na poltrona vizinha, junto da janela, a bela estava tomando posse de seu espaço com o domínio dos viajantes experientes. “Se alguma vez eu escrever isto, ninguém vai acreditar”, pensei. E tentei de leve em minha meia língua um cumprimento indeciso que ela não percebeu.
Instalou-se como se fosse morar ali muitos anos, pondo cada coisa em seu lugar e em sua ordem, até que o local ficou tão bem-arrumado como a casa ideal, onde tudo estava ao alcance da mão. Enquanto fazia isso, o comissário trouxe-nos o champanha de boas-vindas. Peguei uma taça para oferecer a ela, mas me arrependi a tempo. Pois quis apenas um copo d'água, e pediu ao comissário, primeiro num francês inacessível e depois num inglês um pouco mais fácil, que não a despertasse por nenhum motivo durante o voo. Sua voz grave e morna arrastava uma tristeza oriental.
Quando levaram a água, ela abriu sobre os joelhos uma caixinha de toucador com esquinas de cobre, como os baús das avós, e tirou duas pastilhas douradas de um estojinho onde levava outras de cores diversas. Fazia tudo de um modo metódico e parcimonioso, como se não houvesse nada que não estivesse previsto para ela desde seu nascimento. Por último baixou a cortina da janela, estendeu a poltrona ao máximo, cobriu-se com a manta até a cintura sem tirar os sapatos, pôs a máscara de dormir, deitou-se de lado na poltrona, de costas para mim, e dormiu sem uma única pausa, sem um suspiro, sem uma mudança mínima de posição, durante as oito horas eternas e os doze minutos de sobra que o voo de Nova York durou.
Foi uma viagem intensa. Sempre acreditei que não há nada mais belo na natureza que uma mulher bela, de maneira que foi impossível para mim escapar um só instante do feitiço daquela criatura de fábula que dormia ao meu lado. O comissário havia desaparecido assim que decolamos, e foi substituído por uma aeromoça cartesiana que tentou despertar a bela para dar-lhe o estojo de maquiagem e os auriculares para a música. Repeti a advertência que a bela havia feito ao comissário, mas a aeromoça insistiu para ouvir de sua própria voz que tampouco queria jantar. Foi preciso que o comissário confirmasse, e ainda assim a aeromoça me repreendeu porque a bela não havia colocado no pescoço o cartãozinho com a ordem de não ser despertada.
Fiz um jantar solitário, dizendo-me em silêncio tudo que teria dito a ela, se estivesse acordada. Seu sono era tão estável que em certo momento tive a inquietude que aquelas pastilhas não fossem para dormir e sim para morrer. Antes de cada gole, levantava a taça e brindava.
- À tua saúde, bela.
Terminado o jantar, apagaram as luzes, mostraram um filme para ninguém, e nós dois ficamos sozinhos na penumbra do mundo. A maior tormenta do século havia passado, e a noite do Atlântico era imensa e límpida, e o avião parecia imóvel entre as estrelas. Então contemplei-a palmo a palmo durante várias horas, e o único sinal de vida que pude perceber foram as sombras dos sonhos que passavam por sua fronte como as nuvens na água. Tinha no pescoço uma corrente tão fina que era quase invisível sobre sua pele de ouro, as orelhas perfeitas sem os furinhos para brincos, as unhas rosadas da boa saúde e um anel liso na mão esquerda. Como não parecia ter mais de vinte anos, me consolei com a ideia de que não fosse a aliança de um casamento e sim de um namoro efêmero. “Saber que você dorme, certa, segura, leito fiel de abandono, linha pura, tão perto de meus braços atados”, pensei, repetindo na crista de espuma de champanha o soneto magistral de Gerardo Diego. Em seguida estendi a poltrona na altura da sua, e ficamos deitados mais próximos que numa cama de casal. O clima de sua respiração era o mesmo da voz, e sua pele exalava um hálito tênue que só podia ser o próprio cheiro de sua beleza. Eu achava incrível: na primavera anterior havia lido um bonito romance de Yasumari Kawabata sobre os anciões burgueses de Kyoto que pagavam somas enormes para passar a noite contemplando as moças mais bonitas da cidade, nuas e narcotizadas, enquanto eles agonizavam de amor na mesma cama. Não podiam despertá-las, nem tocá-las, e nem tentavam, porque a essência do prazer era vê-las dormir. Naquela noite, velando o sono da bela, não apenas entendi aquele refinamento senil, como o vivi na plenitude.
- Quem iria acreditar - me disse, com o amor-próprio exacerbado pelo champanha. - Eu, ancião japonês a estas alturas.
Acho que dormi várias horas, vencido pelo champanha e os clarões mudos do filme, e despertei com a cabeça aos cacos. Fui ao banheiro. Dois lugares atrás do meu, jazia a anciã das onze maletas esparramada mal-acomodada na poltrona. Parecia um morto esquecido no campo de batalha.
No chão, no meio do corredor, estavam seus óculos de leitura com o colar de contas coloridas, e por um instante desfrutei da felicidade mesquinha de não os recolher.
Depois de desafogar-me dos excessos de champanha me surpreendi no espelho, indigno e feio, e me assombrei por serem tão terríveis os estragos do amor. De repente o avião foi a pique, ajeitou-se como pôde, e prosseguiu voando a galope. A ordem de voltar ao assento acendeu. Saí em disparada, com a ilusão de que somente as turbulências de Deus despertariam a bela, e que teria de se refugiar em meus braços fugindo do terror. Na pressa estive a ponto de pisar nos óculos da holandesa, e teria me alegrado.
Mas voltei sobre meus passos, os recolhi, os coloquei em seu regaço, agradecido de repente por ela não ter escolhido antes de mim o assento número quatro.
O sono da bela era invencível. Quando o avião se estabilizou, tive que resistir à tentação de sacudi-la com um pretexto qualquer, porque a única coisa que desejava naquela última hora de voo era vê-la acordada, mesmo que estivesse enfurecida, para que eu pudesse recobrar minha liberdade e talvez minha juventude. Mas não fui capaz. “Que merda”, disse a mim mesmo, com um grande desprezo. “Por que não nasci Touro?”.
Despertou sem ajuda no instante em que os anúncios de aterrissagem se acenderam, e estava tão bela e louçã como se tivesse dormido num roseiral. Só então percebi que os vizinhos de assento nos aviões, como os casais velhos, não se dizem bom-dia ao despertar. Ela também não.
Tirou a máscara, abriu os olhos radiantes, endireitou a poltrona, pôs a manta de lado, sacudiu as melenas que se penteavam sozinhas com seu próprio peso, tornou a pôr a caixinha nos joelhos, e fez uma maquiagem rápida e supérflua, o suficiente para não olhar para mim até que a porta foi aberta. Então pôs a jaqueta de lince, passou quase que por cima de mim com uma desculpa convencional em puro castelhano das Américas, e foi sem nem ao menos se despedir, sem ao menos me agradecer o muito que fiz por nossa noite feliz, e desapareceu até o sol de hoje na amazônia de Nova York.
Gabriel Garcia Márquez, "Doze contos peregrinos"
A prova dos passarinhos
O Professor viu com desgosto a rapariga aproximar-se empurrando aquele terrível carrinho. Na verdade, alguém da família do bebé – um homem por certo – havia aplicado uma espécie de traga-areia à frente das rodas, o que permitia que ela o fizesse deslizar com extrema facilidade mesmo nos locais ondulados. Sobre o assento do carrinho, um antigo modelo que deveria ter pertencido a um outro bebé agora já homem, a criança de tenra idade abanava a cabeça com os olhos fechados. Mãe e criança ainda exalavam um cheiro repelente a parto e amamentação. Ora ele que tinha posto os óculos de ver ao longe para contar os pássaros, sentindo aquele cheiro sanguíneo a carne tenra, era obrigado a parar. E sempre que parava, pensava para si – Nunca farás a prova.
E no entanto, o Professor tinha-se dado ao trabalho, dois meses antes, de tomar assento num barulhento autocarro onde passavam filmes americanos, a fim de poder ele mesmo escolher um local sossegado onde pudesse executar essa prova. Durante a viagem, que afinal demoraria muito mais tempo do que constava do horário, tivera a oportunidade de perguntar a um homem, que pela fala lhe parecia ser da região para onde se dirigia, que praia lhe aconselhava para poder observar pássaros. O homem tinha a tez muito escura, e apesar de vestir um blusão em cujas costas se lia uma palavra em sueco, estava sulcado de infinitas rugas. “Fugiram todos” – havia dito o homem, apanhado pelo espírito de tragédia que em determinada altura da vida assalta certo tipo de pessoas. Mas o Professor acabara por encontrar um quarto tranquilo, diante duma pequena praia, onde lhe fora assegurado que ninguém o incomodaria, e donde poderia ver vários gêneros de pássaros em bandos, picando restos de peixe, assim que o verão chegasse.
“Em bandos?” – havia perguntado, sentindo que estava a ser servido por um bom instinto.
“Nuvens deles!”
Ora a palavra bando revestia-se de grande importância para o Professor. Afinal, ele procurava aquele lugar determinado, porque havia pensado que chegara a altura de fazer a prova. No inverno anterior, alguém – um aluno por certo – lhe enviara a cópia duma página de que só depois havia identificado a autoria e proveniência. Ocupava escassas doze linhas, e, apesar de não possuir uma boa memória, no mesmo dia ele havia-as aprendido de cor. Chamava-se Argumentum Ornithologicum e abria com uma frase cuja música não lhe saía daquela parte do pensamento, onde as ideias perdem o sentido, para se transformarem em impulso. Era uma divagação de Borges – “Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número?” – repetia desde então, de olhos fechados. Mas as linhas determinantes eram as que melhor dizia em voz alta – “Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, pois ninguém conhecerá ao certo a sua conta…” Ora o Professor queria ser capaz de contar um número inteiro de pássaros voando, para demonstrar o contrário do que sempre fizera por outros argumentos, tendo demonstrado até então, com imenso furor, que Deus não existia. Para mudar tão radicalmente de opinião, precisava de tempo, dum bom bando e de silêncio à sua volta, embora do silêncio imaginado sempre constasse o repetido barulho do mar. Já não era um homem novo. Poder erguer o dedo e contar um, dois, nove, dez, doze pássaros, um número determinado e finito deles, tinha-se transformado numa questão de princípio. Por isso, havia poupado arduamente durante três estações, e feito a viagem de ida e volta na bruta camioneta, exatamente para poder fazer a prova, durante uma tarde em que estivesse só na praia, com o Sol a inclinar-se no horizonte. O seu pensamento era fixo. Encontrar-se-ia de calças arregaçadas junto à água, um bando passaria no sentido do poente, e ele iria contar os animais um a um, entrando, desse modo simbólico, na ciência oculta dos números inteiros de Deus. O número seria definido. Esse iria ser o momento mais importante da sua vida. E na sua ideia, que tinha alguma coisa de obsessivo e amoroso como se aparentado com um beijo projetado no futuro, sempre estaria só com o seu pensamento, sem a presença de mais ninguém. Quando subisse na direção da casa onde alugara o quarto, o Professor contava então ser outro homem. E no entanto, passado quase um mês de estadia, ainda não fora possível atingir o seu fim.
Ali estava a areia, e ali o mar. Ali estava a tarde e os bandos de pássaros, que nem sabia se eram pombas, se gaivotas, se garças, se outra espécie qualquer. Aliás, os nomes não lhe interessavam. Mas, ao contrário do que lhe fora prometido pela criatura que lhe alugara a parte de casa, veraneantes que sobejavam de outras praias ocupavam a areia durante o dia, e muitos aí ficavam até ser noite. Além do mais, vinham carregados de objetos barulhentos, como se tivessem concentrado a mecânica e a tecnologia em seu redor com medo de se perderem num deserto qualquer que temiam atravessar. Tudo em seu redor piscava e rugia. E quando esse furor se escoava ao fim do dia pela ligeira encosta, por infelicidade, descia a rapariga com o bebé, deitado no carrinho traga-areia. A sua figura, cuja carne acabara de ser rasgada pela maternidade, interpondo-se entre ele e os pássaros, impedia-o de se concentrar. O bando passava, ele começava a contar Um, dois, três, quatro… mas quando atingia a quinta criatura, a figura da rapariga, empurrando a criança, intrometia-se desesperadamente. E aquele era o seu antepenúltimo dia. Pela centésima vez, um belo bando acabava de se lhe escapar. Ah! Se essa criatura pudesse adivinhar o mal que lhe causava! Para que ela voltasse para trás com aquele carrinho, o que não daria! – O Professor tomou-se de coragem, abandonou a cadeira de lona na areia e, num impulso, ditado sem dúvida pela determinação que a vontade sugere à beira da perda, começou a caminhar na direção da rapariga. Só vagamente tinha consciência de que a sua intromissão se assemelhava à dum estúpido. Começou por sorrir na direção do bebé. Apesar de tudo, era difícil falar – “Sabe, precisava que uma tarde a senhora não viesse aqui com o seu carrinho…”
Mas aí a rapariga colocou-se à frente do objeto. Os seus olhos ficaram com um brilho amarelo, olhando em frente, imóvel, como o das lobas.
“Pelo amor de Deus, não interprete errado!” – disse o Professor. “Trata-se dum problema muito pessoal. Precisava de ficar sozinho na praia, uma tarde só que fosse, e não consigo. Mal aquela gente parte, chega você. Sou um estudioso, queria contar os pássaros durante o voo…”
À medida que falava, ia levantando a voz, e a sensação vaga de que poderia parecer estúpido desvanecia-se. Por certo que uma mulher, que acabava de dar à luz, iria compreender que um homem pudesse desejar contar de forma precisa as unidades exatas dum bando de pássaros. Mas a rapariga, assustada, puxou de tal modo o carrinho na direção das casas que a criança se pôs a vagir. O coração do Professor contraiu-se de desgosto. “Espere, espere! Você nem imagina como eu seria capaz de a recompensar se amanhã você não viesse”. E procurando barrar-lhe o caminho – “Escureceu de todo, os bichos amalharam-se. Como posso contá-los em bando? Como posso?” – ainda disse. Mas agora ela já ia longe, empurrando o seu fardo rolante.
Naturalmente, o Professor foi assaltado nessa noite por uma longa insônia. Não que não pegasse no sono, porém, mal adormecia, os pássaros misturavam-se numa nuvem indistinta, empurrados pelo ruído dum carro. “Não conseguirei” – pensava, alagado em suor. Mas, no dia seguinte, quando a multidão de veraneantes começou a debandada com suas cestas e caixas de ruído, deixou-se invadir por um raio de esperança. “Talvez se tenha assustado e não venha hoje” – pensava. A rapariga, contudo, não deveria ser pessoa para se assustar por tão pouco. A fila começava agora a desviar-se da passadeira de tábua, exatamente porque o carrinho do bebé começava a descer. Aliás, de forma inesperada, a rapariga, cujos seios inchados deveriam estar cheios de leite, abandonou o trilho, abeirando-se da cadeira de lona onde o Professor se encontrava. Os seus olhos haviam perdido o amarelo do dia anterior.
“Há uma hipótese de eu não vir passear com o bebé, mas para isso teria de falar com o meu marido…”
O Professor era uma pessoa educada. Tinha-se levantado da cadeira, ficando a olhar, incrédulo, para o rosto da rapariga.
“Se eu fosse ao senhor, até ia já. Daqui a meia hora escurece outra vez, e nem eu subo nem você conta os pássaros. Se é isso que pretende fazer”.
“Sim, é isso mesmo. Trata-se duma contagem muito importante. Ah! Nem imagina como é importante!”
“Isso agora é consigo” – E retirando uma das mãos do guiador do carrinho que parecia jamais querer largar, indicou o pequeno tasco ao fundo, aberto no paredão, incitando-o a que o procurasse. Na verdade, o marido da rapariga parecia esperá-lo, em pé, atrás do balcão que servia a praia. A debandada vespertina de toda aquela gente nómada deixara o recinto deserto. Era um mocetão moreno, de bigode preto. Ao vê-lo, parou de mexer nas vasilhas e foi direito ao assunto.
“Ainda bem que veio. Disse-me a mulher que você pretende ficar sozinho na praia…” – E revolvendo uma gaveta, retirou lá de dentro um papel onde estava escrita uma palavra. O mocetão começou a ler com dificuldade o que lá estava escrito. “Você é então um ornitólogo?”
“Não sou, mas tanto faz” – respondeu o Professor, cheio de esperança.
“Pois se é ou não, é lá consigo. Tudo o que preciso saber é quanto dá para que a rapariga volte. A saúde do meu filho tem um preço. Quanto paga?”
“Quanto pede?”
“Eu diria que o equivalente a três noites de alojamento…”
O Professor começou a ver a tarde esvair-se.
“Três noites de alojamento para que a sua mulher, uma vez só, me deixe lá em baixo sozinho? Ainda se fosse o equivalente a uma noite, mas três… Olhe que três noites é um preço muito alto!” – disse o Professor, e percebendo que tudo o que pudesse acrescentar aumentaria a sensação de que estava a comportar-se como um homem louco, abandonou a tasca vazia onde a luz do crepúsculo entrava às tiras pela janela. Em baixo, a mulher em pós-puerpério empurrava afanosamente o carrinho junto à água. A atmosfera era clara, e no céu não havia um único pássaro. Quando houve, os seus gritos passaram longe e o bando fez uma curva invertida no ar, como um avião esparso numa manobra de fuga. Depois escureceu. “Não é desta vez que consigo contá-los. Talvez nunca. Talvez eu deva para sempre imaginar o número indefinido. Isto é, tenho pensado certo e tenho ensinado certo, pois Deus não existe. E se existe, é como se não existisse, porque não se deixa contar para não se mostrar finito. Mas um Deus infinito que foge da vista dos que o buscam confunde-se com a busca. Não existe” – assim pensava o Professor, subindo a ligeira rampa de areia, transpirado, com a cadeira e a toalha às costas. E durante um momento, hesitou. Na verdade, não seria um exagero procurar a circunstância ideal em que viesse a contar os pássaros? Pois porque haveria de existir Deus se o número contado fosse finito, e não ter existência se o número fosse infinito? O Argumentum Ornithologicum, escrito pelo poeta argentino, bem até que poderia conter um desafio, mas porque conteria um método? Porquê? Não se trataria apenas duma simples aporia destinada mais a encantar do que a convencer? O que ganharia o discernimento se, certo dia, sentado na praia, viesse a contar, um a um, vinte ou trinta pássaros? Suavemente, como quem embrulha a última franja dum desejo, o Professor deixou que caísse, sobre o telhado da casa onde se havia hospedado, a penúltima noite do verão.
Então, no último dia, desceu à praia e ficou a ver repetir-se o mesmo andamento, o mesmo ruído, o mesmo bulício que afugentava as aves de cujo número tinha desistido. “Uma causa estúpida” – pensou. “Enveredei por uma demonstração errada. Uma demonstração que não só me ficou muito cara, como ainda poderia ter ficado mais, se acaso me tivesse deixado levar pela ganância daquele lorpa da tasca. “Ao que chegamos!” – ia pensando, enquanto caía a última tarde, e a sua vista não se desprendia do caminho das tábuas. Fazia bem não se desprender – As rodas traga-areia traziam, mais uma vez, a criatura diminuta envolvida em panos, e atrás dela a rapariga que cheirava a sangue e a leite. Rolavam os três na direção da sua cadeira. Ao aproximar-se, a rapariga parecia penalizada. Os seus olhos estavam mais escuros e moviam-se agora duma outra forma. Também o carrinho. Já não o escondia, antes o expunha. E embora o bebé dormisse com os punhos junto das orelhas, parada, ela movia a pega como se o quisesse adormecer duas vezes. O bebé ia e vinha diante dos olhos do Professor. A rapariga tinha-se sentado na areia.
– “Desistiu dos pássaros…” – disse ela. “Bem vejo que desistiu. E pensar que, por mim, o senhor ficava sozinho com eles! Mas está lá em casa o meu marido. Que desculpa haveria de lhe dar?” – Ela olhava para trás. A porta do tasco metido no paredão encontrava-se aberta. A rapariga deveria estar cansada, porque não se movia. Tinha escondido as pernas debaixo da saia, e de vez em quando o seu olhar roçava de novo o amarelo. Ao Professor chegava aquele cheiro a bebé que o estonteava e o levava para longe. Sobretudo, quando a rapariga o retirou da almofada e o colocou no colo. Ela desapertou o vestido e escondeu a face da criança na carne do seio. A última onda descia, a praia alongava-se. Subitamente, uns pássaros maiores que carriças e menores que gaivotas começaram a andar junto à onda, e ignorando a presença humana puseram-se a caminhar na sua direção. Na verdade, só o pulso do bebé, na ânsia de se alimentar, se movia. O Professor colocou os óculos de ver longe. Eram nove, os pássaros.
“Pássaros, Professor!” – disse a rapariga, soltando um grito.
Encandeados pela barra vermelha do sol-posto, colaram-se à areia e depois levantaram voo. As penas brancas luziam. Os pássaros desenharam várias voltas como se pescassem alguma coisa no ar. O Professor não poderia contá-los no voo se não os tivesse contado em terra. Mas porque os tinha contado, sabia finitamente quantos eram. “Um, dois, três, seis, sete, nove…” – contava o Professor, invadido por intensa alegria. “Pois finalmente contei nove…” – murmurou ele.
Murmurou várias vezes. A rapariga colocou a criança na almofada e começou a subir demasiado devagar o trilho de tábua. Mas ele não podia dizer-lhe adeus. Não tinha idade para comprimi-la contra si, sem lhe transmitir a fragilidade da sua prova.
E no entanto, o Professor tinha-se dado ao trabalho, dois meses antes, de tomar assento num barulhento autocarro onde passavam filmes americanos, a fim de poder ele mesmo escolher um local sossegado onde pudesse executar essa prova. Durante a viagem, que afinal demoraria muito mais tempo do que constava do horário, tivera a oportunidade de perguntar a um homem, que pela fala lhe parecia ser da região para onde se dirigia, que praia lhe aconselhava para poder observar pássaros. O homem tinha a tez muito escura, e apesar de vestir um blusão em cujas costas se lia uma palavra em sueco, estava sulcado de infinitas rugas. “Fugiram todos” – havia dito o homem, apanhado pelo espírito de tragédia que em determinada altura da vida assalta certo tipo de pessoas. Mas o Professor acabara por encontrar um quarto tranquilo, diante duma pequena praia, onde lhe fora assegurado que ninguém o incomodaria, e donde poderia ver vários gêneros de pássaros em bandos, picando restos de peixe, assim que o verão chegasse.
“Em bandos?” – havia perguntado, sentindo que estava a ser servido por um bom instinto.
“Nuvens deles!”
Ora a palavra bando revestia-se de grande importância para o Professor. Afinal, ele procurava aquele lugar determinado, porque havia pensado que chegara a altura de fazer a prova. No inverno anterior, alguém – um aluno por certo – lhe enviara a cópia duma página de que só depois havia identificado a autoria e proveniência. Ocupava escassas doze linhas, e, apesar de não possuir uma boa memória, no mesmo dia ele havia-as aprendido de cor. Chamava-se Argumentum Ornithologicum e abria com uma frase cuja música não lhe saía daquela parte do pensamento, onde as ideias perdem o sentido, para se transformarem em impulso. Era uma divagação de Borges – “Fecho os olhos e vejo um bando de pássaros. A visão dura um segundo ou talvez menos; não sei quantos pássaros vi. Era definido ou indefinido o seu número?” – repetia desde então, de olhos fechados. Mas as linhas determinantes eram as que melhor dizia em voz alta – “Se Deus existe, o número é definido, porque Deus sabe quantos pássaros vi. Se Deus não existe, o número é indefinido, pois ninguém conhecerá ao certo a sua conta…” Ora o Professor queria ser capaz de contar um número inteiro de pássaros voando, para demonstrar o contrário do que sempre fizera por outros argumentos, tendo demonstrado até então, com imenso furor, que Deus não existia. Para mudar tão radicalmente de opinião, precisava de tempo, dum bom bando e de silêncio à sua volta, embora do silêncio imaginado sempre constasse o repetido barulho do mar. Já não era um homem novo. Poder erguer o dedo e contar um, dois, nove, dez, doze pássaros, um número determinado e finito deles, tinha-se transformado numa questão de princípio. Por isso, havia poupado arduamente durante três estações, e feito a viagem de ida e volta na bruta camioneta, exatamente para poder fazer a prova, durante uma tarde em que estivesse só na praia, com o Sol a inclinar-se no horizonte. O seu pensamento era fixo. Encontrar-se-ia de calças arregaçadas junto à água, um bando passaria no sentido do poente, e ele iria contar os animais um a um, entrando, desse modo simbólico, na ciência oculta dos números inteiros de Deus. O número seria definido. Esse iria ser o momento mais importante da sua vida. E na sua ideia, que tinha alguma coisa de obsessivo e amoroso como se aparentado com um beijo projetado no futuro, sempre estaria só com o seu pensamento, sem a presença de mais ninguém. Quando subisse na direção da casa onde alugara o quarto, o Professor contava então ser outro homem. E no entanto, passado quase um mês de estadia, ainda não fora possível atingir o seu fim.
Ali estava a areia, e ali o mar. Ali estava a tarde e os bandos de pássaros, que nem sabia se eram pombas, se gaivotas, se garças, se outra espécie qualquer. Aliás, os nomes não lhe interessavam. Mas, ao contrário do que lhe fora prometido pela criatura que lhe alugara a parte de casa, veraneantes que sobejavam de outras praias ocupavam a areia durante o dia, e muitos aí ficavam até ser noite. Além do mais, vinham carregados de objetos barulhentos, como se tivessem concentrado a mecânica e a tecnologia em seu redor com medo de se perderem num deserto qualquer que temiam atravessar. Tudo em seu redor piscava e rugia. E quando esse furor se escoava ao fim do dia pela ligeira encosta, por infelicidade, descia a rapariga com o bebé, deitado no carrinho traga-areia. A sua figura, cuja carne acabara de ser rasgada pela maternidade, interpondo-se entre ele e os pássaros, impedia-o de se concentrar. O bando passava, ele começava a contar Um, dois, três, quatro… mas quando atingia a quinta criatura, a figura da rapariga, empurrando a criança, intrometia-se desesperadamente. E aquele era o seu antepenúltimo dia. Pela centésima vez, um belo bando acabava de se lhe escapar. Ah! Se essa criatura pudesse adivinhar o mal que lhe causava! Para que ela voltasse para trás com aquele carrinho, o que não daria! – O Professor tomou-se de coragem, abandonou a cadeira de lona na areia e, num impulso, ditado sem dúvida pela determinação que a vontade sugere à beira da perda, começou a caminhar na direção da rapariga. Só vagamente tinha consciência de que a sua intromissão se assemelhava à dum estúpido. Começou por sorrir na direção do bebé. Apesar de tudo, era difícil falar – “Sabe, precisava que uma tarde a senhora não viesse aqui com o seu carrinho…”
Mas aí a rapariga colocou-se à frente do objeto. Os seus olhos ficaram com um brilho amarelo, olhando em frente, imóvel, como o das lobas.
“Pelo amor de Deus, não interprete errado!” – disse o Professor. “Trata-se dum problema muito pessoal. Precisava de ficar sozinho na praia, uma tarde só que fosse, e não consigo. Mal aquela gente parte, chega você. Sou um estudioso, queria contar os pássaros durante o voo…”
À medida que falava, ia levantando a voz, e a sensação vaga de que poderia parecer estúpido desvanecia-se. Por certo que uma mulher, que acabava de dar à luz, iria compreender que um homem pudesse desejar contar de forma precisa as unidades exatas dum bando de pássaros. Mas a rapariga, assustada, puxou de tal modo o carrinho na direção das casas que a criança se pôs a vagir. O coração do Professor contraiu-se de desgosto. “Espere, espere! Você nem imagina como eu seria capaz de a recompensar se amanhã você não viesse”. E procurando barrar-lhe o caminho – “Escureceu de todo, os bichos amalharam-se. Como posso contá-los em bando? Como posso?” – ainda disse. Mas agora ela já ia longe, empurrando o seu fardo rolante.
Naturalmente, o Professor foi assaltado nessa noite por uma longa insônia. Não que não pegasse no sono, porém, mal adormecia, os pássaros misturavam-se numa nuvem indistinta, empurrados pelo ruído dum carro. “Não conseguirei” – pensava, alagado em suor. Mas, no dia seguinte, quando a multidão de veraneantes começou a debandada com suas cestas e caixas de ruído, deixou-se invadir por um raio de esperança. “Talvez se tenha assustado e não venha hoje” – pensava. A rapariga, contudo, não deveria ser pessoa para se assustar por tão pouco. A fila começava agora a desviar-se da passadeira de tábua, exatamente porque o carrinho do bebé começava a descer. Aliás, de forma inesperada, a rapariga, cujos seios inchados deveriam estar cheios de leite, abandonou o trilho, abeirando-se da cadeira de lona onde o Professor se encontrava. Os seus olhos haviam perdido o amarelo do dia anterior.
“Há uma hipótese de eu não vir passear com o bebé, mas para isso teria de falar com o meu marido…”
O Professor era uma pessoa educada. Tinha-se levantado da cadeira, ficando a olhar, incrédulo, para o rosto da rapariga.
“Se eu fosse ao senhor, até ia já. Daqui a meia hora escurece outra vez, e nem eu subo nem você conta os pássaros. Se é isso que pretende fazer”.
“Sim, é isso mesmo. Trata-se duma contagem muito importante. Ah! Nem imagina como é importante!”
“Isso agora é consigo” – E retirando uma das mãos do guiador do carrinho que parecia jamais querer largar, indicou o pequeno tasco ao fundo, aberto no paredão, incitando-o a que o procurasse. Na verdade, o marido da rapariga parecia esperá-lo, em pé, atrás do balcão que servia a praia. A debandada vespertina de toda aquela gente nómada deixara o recinto deserto. Era um mocetão moreno, de bigode preto. Ao vê-lo, parou de mexer nas vasilhas e foi direito ao assunto.
“Ainda bem que veio. Disse-me a mulher que você pretende ficar sozinho na praia…” – E revolvendo uma gaveta, retirou lá de dentro um papel onde estava escrita uma palavra. O mocetão começou a ler com dificuldade o que lá estava escrito. “Você é então um ornitólogo?”
“Não sou, mas tanto faz” – respondeu o Professor, cheio de esperança.
“Pois se é ou não, é lá consigo. Tudo o que preciso saber é quanto dá para que a rapariga volte. A saúde do meu filho tem um preço. Quanto paga?”
“Quanto pede?”
“Eu diria que o equivalente a três noites de alojamento…”
O Professor começou a ver a tarde esvair-se.
“Três noites de alojamento para que a sua mulher, uma vez só, me deixe lá em baixo sozinho? Ainda se fosse o equivalente a uma noite, mas três… Olhe que três noites é um preço muito alto!” – disse o Professor, e percebendo que tudo o que pudesse acrescentar aumentaria a sensação de que estava a comportar-se como um homem louco, abandonou a tasca vazia onde a luz do crepúsculo entrava às tiras pela janela. Em baixo, a mulher em pós-puerpério empurrava afanosamente o carrinho junto à água. A atmosfera era clara, e no céu não havia um único pássaro. Quando houve, os seus gritos passaram longe e o bando fez uma curva invertida no ar, como um avião esparso numa manobra de fuga. Depois escureceu. “Não é desta vez que consigo contá-los. Talvez nunca. Talvez eu deva para sempre imaginar o número indefinido. Isto é, tenho pensado certo e tenho ensinado certo, pois Deus não existe. E se existe, é como se não existisse, porque não se deixa contar para não se mostrar finito. Mas um Deus infinito que foge da vista dos que o buscam confunde-se com a busca. Não existe” – assim pensava o Professor, subindo a ligeira rampa de areia, transpirado, com a cadeira e a toalha às costas. E durante um momento, hesitou. Na verdade, não seria um exagero procurar a circunstância ideal em que viesse a contar os pássaros? Pois porque haveria de existir Deus se o número contado fosse finito, e não ter existência se o número fosse infinito? O Argumentum Ornithologicum, escrito pelo poeta argentino, bem até que poderia conter um desafio, mas porque conteria um método? Porquê? Não se trataria apenas duma simples aporia destinada mais a encantar do que a convencer? O que ganharia o discernimento se, certo dia, sentado na praia, viesse a contar, um a um, vinte ou trinta pássaros? Suavemente, como quem embrulha a última franja dum desejo, o Professor deixou que caísse, sobre o telhado da casa onde se havia hospedado, a penúltima noite do verão.
Então, no último dia, desceu à praia e ficou a ver repetir-se o mesmo andamento, o mesmo ruído, o mesmo bulício que afugentava as aves de cujo número tinha desistido. “Uma causa estúpida” – pensou. “Enveredei por uma demonstração errada. Uma demonstração que não só me ficou muito cara, como ainda poderia ter ficado mais, se acaso me tivesse deixado levar pela ganância daquele lorpa da tasca. “Ao que chegamos!” – ia pensando, enquanto caía a última tarde, e a sua vista não se desprendia do caminho das tábuas. Fazia bem não se desprender – As rodas traga-areia traziam, mais uma vez, a criatura diminuta envolvida em panos, e atrás dela a rapariga que cheirava a sangue e a leite. Rolavam os três na direção da sua cadeira. Ao aproximar-se, a rapariga parecia penalizada. Os seus olhos estavam mais escuros e moviam-se agora duma outra forma. Também o carrinho. Já não o escondia, antes o expunha. E embora o bebé dormisse com os punhos junto das orelhas, parada, ela movia a pega como se o quisesse adormecer duas vezes. O bebé ia e vinha diante dos olhos do Professor. A rapariga tinha-se sentado na areia.
– “Desistiu dos pássaros…” – disse ela. “Bem vejo que desistiu. E pensar que, por mim, o senhor ficava sozinho com eles! Mas está lá em casa o meu marido. Que desculpa haveria de lhe dar?” – Ela olhava para trás. A porta do tasco metido no paredão encontrava-se aberta. A rapariga deveria estar cansada, porque não se movia. Tinha escondido as pernas debaixo da saia, e de vez em quando o seu olhar roçava de novo o amarelo. Ao Professor chegava aquele cheiro a bebé que o estonteava e o levava para longe. Sobretudo, quando a rapariga o retirou da almofada e o colocou no colo. Ela desapertou o vestido e escondeu a face da criança na carne do seio. A última onda descia, a praia alongava-se. Subitamente, uns pássaros maiores que carriças e menores que gaivotas começaram a andar junto à onda, e ignorando a presença humana puseram-se a caminhar na sua direção. Na verdade, só o pulso do bebé, na ânsia de se alimentar, se movia. O Professor colocou os óculos de ver longe. Eram nove, os pássaros.
“Pássaros, Professor!” – disse a rapariga, soltando um grito.
Encandeados pela barra vermelha do sol-posto, colaram-se à areia e depois levantaram voo. As penas brancas luziam. Os pássaros desenharam várias voltas como se pescassem alguma coisa no ar. O Professor não poderia contá-los no voo se não os tivesse contado em terra. Mas porque os tinha contado, sabia finitamente quantos eram. “Um, dois, três, seis, sete, nove…” – contava o Professor, invadido por intensa alegria. “Pois finalmente contei nove…” – murmurou ele.
Murmurou várias vezes. A rapariga colocou a criança na almofada e começou a subir demasiado devagar o trilho de tábua. Mas ele não podia dizer-lhe adeus. Não tinha idade para comprimi-la contra si, sem lhe transmitir a fragilidade da sua prova.
Lídia Jorge
terça-feira, outubro 25
A solidão
Disse-me um jornalista filantropo que a solidão é prejudicial ao homem. E, em apoio de sua tese, citou-me, como todos os incrédulos, palavras dos Pais da Igreja.
Eu sei que o Demônio gosta de frequentar os lugares áridos e que o Espírito do crime e da lubricidade inflama-se maravilhosamente na solidão. Mas, é possível que essa solidão só seja perigosa para as almas indolentes e extravagantes que a povoam com suas paixões e quimeras.
É certo que um tagarela, cujo supremo prazer consiste em falar do alto de uma cátedra ou de uma tribuna, estaria bastante arriscado a ficar louco furioso na ilha de Robinson. Não exijo do meu jornalista as corajosas virtudes de Crusoé, mas peço-lhe que não condene os amantes da solidão e do mistério.
Há, em nossas raças palradoras, indivíduos que aceitariam com menos repugnância o suplício supremo, se lhes fosse permitido fazer do alto do cadafalso uma arenga interminável, sem recear que os tambores de Santerre lhes cortasse intempestivamente a palavra.
Não os lastimo, porque percebo que suas efusões oratórias lhes proporcionam volúpias iguais àquelas que outros tiram do silêncio e do recolhimento. Mas os desprezo.
Desejo, sobretudo, que o meu maldito jornalista me deixe divertir-me à vontade.
— Então, — perguntou-me num tom fanhoso e muito apostólico, — jamais experimenta você a necessidade de partilhar suas alegrias? Sutil invejoso! Como sabe que desprezo as dele, vem insinuar-se nas minhas! Hediondo desmancha-prazeres! “A grande felicidade de não poder estar só!” — diz algures La Bruyère, como para envergonhar todos aqueles que procuram esquecer-se na multidão, decerto com receio de não poderem suportar a si mesmos.
Quase todas as nossas desgraças provêm de não termos sabido ficar em nosso quarto”, — diz outro sábio, Pascal, parece, evocando assim, na cela do recolhimento, todos os alucinados que buscam a felicidade no movimento e numa prostituição a que eu poderia chamar de fraternária, se quisesse falar a bela língua do meu século.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
Eu sei que o Demônio gosta de frequentar os lugares áridos e que o Espírito do crime e da lubricidade inflama-se maravilhosamente na solidão. Mas, é possível que essa solidão só seja perigosa para as almas indolentes e extravagantes que a povoam com suas paixões e quimeras.
É certo que um tagarela, cujo supremo prazer consiste em falar do alto de uma cátedra ou de uma tribuna, estaria bastante arriscado a ficar louco furioso na ilha de Robinson. Não exijo do meu jornalista as corajosas virtudes de Crusoé, mas peço-lhe que não condene os amantes da solidão e do mistério.
Há, em nossas raças palradoras, indivíduos que aceitariam com menos repugnância o suplício supremo, se lhes fosse permitido fazer do alto do cadafalso uma arenga interminável, sem recear que os tambores de Santerre lhes cortasse intempestivamente a palavra.
Não os lastimo, porque percebo que suas efusões oratórias lhes proporcionam volúpias iguais àquelas que outros tiram do silêncio e do recolhimento. Mas os desprezo.
Desejo, sobretudo, que o meu maldito jornalista me deixe divertir-me à vontade.
— Então, — perguntou-me num tom fanhoso e muito apostólico, — jamais experimenta você a necessidade de partilhar suas alegrias? Sutil invejoso! Como sabe que desprezo as dele, vem insinuar-se nas minhas! Hediondo desmancha-prazeres! “A grande felicidade de não poder estar só!” — diz algures La Bruyère, como para envergonhar todos aqueles que procuram esquecer-se na multidão, decerto com receio de não poderem suportar a si mesmos.
Quase todas as nossas desgraças provêm de não termos sabido ficar em nosso quarto”, — diz outro sábio, Pascal, parece, evocando assim, na cela do recolhimento, todos os alucinados que buscam a felicidade no movimento e numa prostituição a que eu poderia chamar de fraternária, se quisesse falar a bela língua do meu século.
Charles Baudelaire, "Pequenos poemas em prosa"
Morada do homem
Sarah Afonso |
A moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.
Ele estava postado atrás de uma janela, e através do filtro verde-pálido do ar do jardim contemplava a rua pardacenta; há dez minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que estivera fazendo uma tolice.
Se se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara, tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma.
Pois nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E alguém que faz?
“Podem-se deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.
A atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária ilusão. Essa ideia lhe agradou.
Deve-se acrescentar, porém, que ela não lhe agradava por ele amar a vida burguesa; ao contrário, gostava apenas de contrariar suas inclinações, que outrora tinham sido diferentes. Talvez seja exatamente o pequeno-burguês quem prevê o começo de um heroísmo coletivo, de formigueiro, extraordinariamente novo. Vão chamá-lo de heroísmo racionalizado, e achar tudo muito bonito. Hoje em dia, quem pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas de indagações irrespondidas desse tipo, da maior importância. Pairavam no ar, ardiam sob os pés. O tempo corria. Pessoas que ainda não viviam então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.
“A gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças!” Depois afastou-se, como uma pessoa que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que teme qualquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir anexo, passou por um punching ball ali pendurado, deu-lhe um soco rápido e forte, que não é propriamente comum em momentos de resignação ou estados de fraqueza.
Robert Musil, "O homem sem qualidades"
sexta-feira, outubro 21
O mascate libanês
O gringo Mansur desembarcou na estação do trem numa tarde de sol claro. Ao entrar na primeira rua de chão batido, depois de uma praça, sentiu no ar o odor denso de umas amêndoas secas que enchiam os armazéns de portas largas. Era o cheiro de resina do cacau. Encheu-lhe o peito o mesmo anseio dos que chegavam à região para realizar o sonho de ficar rico numa terra que oferecia a qualquer vivente muita benesse, graças à boa lavra das árvores dos frutos cor de ouro. Ele não chegava ali como outros com as mãos pobres. Trazia algum dinheiro, joias e uns caixotes contendo tecidos, tapetes, perfumes, sabonetes, talcos, carretéis de linha, tesouras, panelas, talheres, coisas miúdas e até vidrinhos com purgantes e óleo de rícino.
Hoje aqui perto, amanhã nas lonjuras, sem os pais, irmãos, amigos, doce amor da bela amada, tangendo os burros com a mercadoria nos baús grandes. Nessas idas e vindas, ia formando caminhos que ligavam os povoados aos fundos da mata.
Tecedor de sol e chuva, peito armazenado de solidões pela mata bruta. Respingava de suor no rosto, pulsando com o sangue dos ancestrais nas veias da madrugada. Picado por carrapato e mosquito, sedento, faminto, resmungando por trilhas e atalhos no mato grosso. Seda rara, tapete, broche, anel, perfume, linho, porcelana, revólver, rebenque, espora, lâmpada mágica. Tudo sacolejava nos baús que os burros levavam, já formando uma tropa pequena e nova.
Alimentava-se nas veredas com o sonho de se tornar um dia fazendeiro de vastas roças de cacau, nas horas de maior solidão ajoelhava-se. Inclinava o peito para frente várias vezes seguidas. Apoiando-se com as mãos no chão coberto de folhas secas, contrito, sob o silêncio imenso da mata trevosa, beijava o chão e emitia cânticos orantes:
Ilumina-me, Alá
Com o teu espírito,
Ilumina-me,
Ilumina-me,
Deixa-me sentir
Aqui no coração
Todo o teu calor,
Todo o teu amor
Para sempre,
Para sempre.
Ilumina-me, Alá,
Com o teu espírito,
Ilumina-me,
Ilumina-me,
Deixa-me sentir
Aqui na minha mente
O brilho bem forte
De todo o teu amor
Para sempre,
Para sempre.
Cyro de Mattos
De primeiro foi mascatear nos povoados, onde era aguardado com ansiedade e recebido com alegria por gente curiosa. Causava espanto aos tabaréus as novidades que trazia em mercadoria para ser vendida na porta das casas ou na pracinha pouco acostumada a visitas como aquela. Às vezes não se entendia o que ele falava naquela língua estranha, misturando as palavras e arranhando a voz, que saía engraçada. Ficava em cada povoado pouco tempo, resolvia penetrar a mata hostil, com a mercadoria nos baús em lombo de mula. Ia abrindo trilhas e atalhos, que serviam para interligar gente, que de tão distante na tapera e na roça de cereal plantada pelos fundos, na clareira aberta por machado e facão, não sabia um do outro.
Hoje aqui perto, amanhã nas lonjuras, sem os pais, irmãos, amigos, doce amor da bela amada, tangendo os burros com a mercadoria nos baús grandes. Nessas idas e vindas, ia formando caminhos que ligavam os povoados aos fundos da mata.
Tecedor de sol e chuva, peito armazenado de solidões pela mata bruta. Respingava de suor no rosto, pulsando com o sangue dos ancestrais nas veias da madrugada. Picado por carrapato e mosquito, sedento, faminto, resmungando por trilhas e atalhos no mato grosso. Seda rara, tapete, broche, anel, perfume, linho, porcelana, revólver, rebenque, espora, lâmpada mágica. Tudo sacolejava nos baús que os burros levavam, já formando uma tropa pequena e nova.
Alimentava-se nas veredas com o sonho de se tornar um dia fazendeiro de vastas roças de cacau, nas horas de maior solidão ajoelhava-se. Inclinava o peito para frente várias vezes seguidas. Apoiando-se com as mãos no chão coberto de folhas secas, contrito, sob o silêncio imenso da mata trevosa, beijava o chão e emitia cânticos orantes:
Ilumina-me, Alá
Com o teu espírito,
Ilumina-me,
Ilumina-me,
Deixa-me sentir
Aqui no coração
Todo o teu calor,
Todo o teu amor
Para sempre,
Para sempre.
Ilumina-me, Alá,
Com o teu espírito,
Ilumina-me,
Ilumina-me,
Deixa-me sentir
Aqui na minha mente
O brilho bem forte
De todo o teu amor
Para sempre,
Para sempre.
Cyro de Mattos
Elogio da morte
Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida.
A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.
É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.
Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.
É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.
A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro.
A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos. de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nós pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.
Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.
Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar..
São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.
Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.
Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.
A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.
Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas.
O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.
Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.
Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.
Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.
Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.
Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.
Ao vencedor, as batatas!
A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios.
É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento.
Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades.
É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.
A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro.
A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos. de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nós pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma idéia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco.
Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo.
Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar..
São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes idéias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade.
Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo.
Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos.
A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros.
Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas.
O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião .de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana.
Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes.
Os órgãos de publicidade por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar.
Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte.
Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus.
Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade.
Ao vencedor, as batatas!
Lima Barreto, "Marginália"
A doutrina perfeita
Muitas vezes as pessoas dirigem-se a mim, dizendo: «você, que é independente». Não sou assim; continuamente devo ceder a pequenas fórmulas sofisticadas que corrompem, que dão um sentido inverso à nossa orientação, que fazem com que a transparência do coração se turve. Continuamente a nossa insegurança, o egoísmo, o espírito legalista, a mesquinhez, a vaidade, toda a espécie de circunstâncias que tomam o partido da vida como desfrute à sensação se sobrepõem à luz interior. Só a fé é independente. Só ela está para além do bem e do mal.
Estar para além do bem e do mal aplica-se a Cristo. «Perdoa ao teu inimigo, oferece a outra face» - disse Ele. Não é um conselho para humilhados, não é um preceito para mártires. Nisso aparece Cristo mal interpretado, a ponto de o cristianismo ter sido considerado uma religião de escravos. Mas esquecemos que Cristo, como Homem, teve a experiência-limite, uma visão do inconsciente absoluto, o que quer dizer que a sua consciência foi saturada, para além do bem e do mal. Esse homem que perdoa ao seu inimigo não o faz por contrariedade do seu instinto, por reparação dos seus pecados; mas porque não pode proceder de outra maneira.
A sua natureza simplificou-se; nada o pode abalar, porque ele desesperou para sempre da sua controvérsia e, possivelmente, da sua humanidade. A agonia do Homem é isto - a sua conversão à luz interior. Qualquer doutrina que professe a luta, seja doutrina social ou religiosa, impõe-se facilmente às massas, porque a luta bloqueia a evolução profunda do homem, a qual é motivo da sua angústia. Um sábio, grande figura bíblica, disse: «A causa do temor não é outra coisa senão a renúncia aos auxílios que procedem da reflexão». Ligados todos por uma igual cadeia de trevas, os homens julgam superar os factos por meio duma acção violenta. Dispersam os seus fantasmas prodigiosos durante algum tempo, mas logo são surpreendidos por inesperados terrores. A melhoria das suas condições de trabalho, o direito ao lazer e à cultura, a protecção à saúde e à velhice, tudo isso foi uma necessidade imposta pelos factos, mas só actua como lei se for manifestado pela reflexão. A doutrina perfeita nem ofende a multidão nem se arroja a seus pés. Não é feita de belas palavras nem dum folclore de atitudes. A natureza combate pelos justos. Essa natureza é a fé.
Agustina Bessa-Luís, "Contemplação Carinhosa da Angústia"
Estar para além do bem e do mal aplica-se a Cristo. «Perdoa ao teu inimigo, oferece a outra face» - disse Ele. Não é um conselho para humilhados, não é um preceito para mártires. Nisso aparece Cristo mal interpretado, a ponto de o cristianismo ter sido considerado uma religião de escravos. Mas esquecemos que Cristo, como Homem, teve a experiência-limite, uma visão do inconsciente absoluto, o que quer dizer que a sua consciência foi saturada, para além do bem e do mal. Esse homem que perdoa ao seu inimigo não o faz por contrariedade do seu instinto, por reparação dos seus pecados; mas porque não pode proceder de outra maneira.
A sua natureza simplificou-se; nada o pode abalar, porque ele desesperou para sempre da sua controvérsia e, possivelmente, da sua humanidade. A agonia do Homem é isto - a sua conversão à luz interior. Qualquer doutrina que professe a luta, seja doutrina social ou religiosa, impõe-se facilmente às massas, porque a luta bloqueia a evolução profunda do homem, a qual é motivo da sua angústia. Um sábio, grande figura bíblica, disse: «A causa do temor não é outra coisa senão a renúncia aos auxílios que procedem da reflexão». Ligados todos por uma igual cadeia de trevas, os homens julgam superar os factos por meio duma acção violenta. Dispersam os seus fantasmas prodigiosos durante algum tempo, mas logo são surpreendidos por inesperados terrores. A melhoria das suas condições de trabalho, o direito ao lazer e à cultura, a protecção à saúde e à velhice, tudo isso foi uma necessidade imposta pelos factos, mas só actua como lei se for manifestado pela reflexão. A doutrina perfeita nem ofende a multidão nem se arroja a seus pés. Não é feita de belas palavras nem dum folclore de atitudes. A natureza combate pelos justos. Essa natureza é a fé.
Agustina Bessa-Luís, "Contemplação Carinhosa da Angústia"
quinta-feira, outubro 20
A vida humana
A vida humana não passa de um sonho. Mais de uma pessoa já pensou nisso. Pois essa impressão também me acompanha por toda a parte. Quando vejo os estreitos limites onde se acham encerradas as faculdades ativas e investigadoras do homem, e como todo o nosso trabalho visa apenas a satisfazer as nossas necessidades, as quais, por sua vez, não têm outro objetivo senão prolongar nossa mesquinha existência; quando verifico que o nosso espírito só pode encontrar tranquilidade, quanto a certos pontos das nossas pesquisas, por meio de uma resignação povoada de sonhos, como um presidiário que adornasse de figuras multicoloridas e luminosas perspectivas as paredes da sua cela… tudo isso, Wilhelm, me faz emudecer. Concentro-me e encontro um mundo em mim mesmo! Mas, também aí, é um mundo de pressentimentos e desejos obscuros e não de imagens nítidas e forças vivas. Tudo flutua vagamente nos meus sentidos, e assim, sorrindo e sonhando, prossigo na minha viagem através do mundo.
Johann Wolfgang von Goethe, " Werther"
Johann Wolfgang von Goethe, " Werther"
Carta aberta ao Times
Embora de pijama, vejo-me obrigado a representar a W. Exas. contra o abuso inominável de que vimos sendo vítimas, eu e outras pessoas igualmente respeitáveis, num campo de concentração dentre os muitos que devem existir por este mundo concentrado de hoje, e que não sei dizer se fica na Europa ou na Ásia ou mesmo na Polinésia, pois justamente este é o segredo maior que paira sobre as nossas cabeças, enquanto ainda as temos. Aqui todos falam todas as línguas, cada um a sua naturalmente, o que pode parecer estranhável é que nem sempre é o inglês quem fala o inglês, o francês quem fala o francês, o russo quem fala o russo, e assim por diante, sendo ao contrário comum que um embaixador da Abissínia, por exemplo, nunca tenha ouvido falar do abissínio em toda a sua vida, ou que um legado do Papa não saiba sequer dizer amen em latim, ou ainda que um descendente de Napoleão Bonaparte só conheça em francês os nomes das boates mais famosas, como Folies Bergère ou Mandarin e outras semelhantes. Eu mesmo, que sou iraniano, ou que pelo menos me sinto iraniano esta manhã, não sei dizer ao certo nem onde fica situado o Ira no mundo conturbado de hoje, embora já tenha viajado muito no passado, sobretudo em imaginação.
Mas o assunto desta, que coloco numa garrafa e jogo no cano de esgoto para que possa chegar até às mãos de W. Exas., não é geográfico nem linguístico, e sim estritamente moral e humano, como o foi o Sermão da Montanha por exemplo, para só citar um exemplo famoso. Trata-se apenas de despertar a consciência de VV. Exas. para o fato de, em pleno século XX, e ao que consta em pleno período de paz, ser permitido a um pequeno grupo de idiotas manter presos e por vezes mesmo amarrados alguns cidadãos de alta linhagem e de reputação acima de qualquer suspeita — só porque esses cidadãos, entre os quais estou eu naturalmente, não pactuam e não poderiam mesmo pactuar com suas ideias retrógradas e obsoletas, seja em matéria de religião como de política, de amor como de finanças ou de arte. Pois o que ocorre neste campo de concentração onde me encontro, como deve acontecer em todos os demais, é apenas isto e que me parece de um absurdo inominável: uma minoria armada até os dentes, inclusive com cadeiras elétricas, manda e desmanda sobre uma maioria de indivíduos realmente individuais e tenta impor-lhes à força a sua cartilha de primeiras letras, quando não o seu catecismo religioso dos tempos antediluvianos, que é a quanto chegam no melhor dos casos as ideias ou que outro nome tenha a intolerância desses senhores da terra e dos céus.
A comida aqui não é má, mesmo porque já faz parte do programa desses maníacos a preocupação de manterem quanto possível vivos os seus escravos brancos ou negros, amarelos ou vermelhos — sem o que teriam, por desfastio, que devorar-se entre si e declarar-se guerra quase que diariamente, o que não lhes seria de muito proveito. Mas se a comida não é intragável, a liberdade aqui é uma palavra que já não existe nem sequer nos dicionários e de que só ouvimos falar quando somos nós que a pronunciamos, em geral em voz baixa e para nós mesmos. E sem liberdade, hão de convir W. Exas. que este mundo, por melhor que seja, não passa de um pesadelo e de uma farsa de mau gosto — como há de achar no front o soldado com o seu fuzil e suas polainas, num dia azul de primavera.
Não temos sequer a liberdade de amar — já não digo uns aos outros, o que seria demais, mas a uma mulher de nossa predileção, ou mesmo a uma simples mulher pois as únicas mulheres que vemos ou são estrábicas ou não têm quaisquer atributos que as diferenciem dos homens donos do campo, tratando-nos ou como crianças ou como idiotas, no que aliás copiam um pouco as verdadeiras mulheres. E não havendo mulheres propriamente ditas, o cérebro emperra e os nervos sobem à flor da pele, dando azo a esse espetáculo triste e grotesco da masturbação coletiva, mesmo nos feriados e dias-santos. A única mulher que tem algo feminino, dentre as poucas que circulam pelas salas da nossa prisão, é a mulher do inquisidor-mor ou, se W. Exas. preferem, do chefe da guarda ou administrador do estabelecimento — mas essa mesmo tem um estrabismo bem pronunciado e é menos acessível do que a lua no céu ou o seu reflexo no fundo de um poço, dada a vigilância a que estamos continuamente submetidos. Há casos profundamente dolorosos, como o do Dr. Keither por exemplo, que se vê obrigado a masturbar-se como um menino de colégio só porque os nossos carrascos decidiram que não somos homens até o dia em que finalmente resolvamos voltar ao aprisco das ideias feitas e ao cadinho de seus sentimentos desumanizados e postiços. Eu, neste particular, vivo à custa de minhas boas recordações de todos os bordéis e salões de luxo que frequentei dos vinte aos trinta e cinco anos, na Europa, na Ásia, na Oceania, na América, na África, e sobretudo em sonho. Não que eu fuja à regra geral da masturbação; mas posso afirmar que sinto muito menos os aguilhões da carne do que, por exemplo, o legado pontifício ou seu casmurro secretário, para não falar de um estudante chamado Vinícius e que vive a recitar a Bíblia justamente naqueles trechos em que a Bíblia desperta a imaginação da juventude e favorece, de certo modo, as poluções noturnas.
Respeitosas saudações.
Campos de Carvalho, "A lua vem da Ásia"
Mas o assunto desta, que coloco numa garrafa e jogo no cano de esgoto para que possa chegar até às mãos de W. Exas., não é geográfico nem linguístico, e sim estritamente moral e humano, como o foi o Sermão da Montanha por exemplo, para só citar um exemplo famoso. Trata-se apenas de despertar a consciência de VV. Exas. para o fato de, em pleno século XX, e ao que consta em pleno período de paz, ser permitido a um pequeno grupo de idiotas manter presos e por vezes mesmo amarrados alguns cidadãos de alta linhagem e de reputação acima de qualquer suspeita — só porque esses cidadãos, entre os quais estou eu naturalmente, não pactuam e não poderiam mesmo pactuar com suas ideias retrógradas e obsoletas, seja em matéria de religião como de política, de amor como de finanças ou de arte. Pois o que ocorre neste campo de concentração onde me encontro, como deve acontecer em todos os demais, é apenas isto e que me parece de um absurdo inominável: uma minoria armada até os dentes, inclusive com cadeiras elétricas, manda e desmanda sobre uma maioria de indivíduos realmente individuais e tenta impor-lhes à força a sua cartilha de primeiras letras, quando não o seu catecismo religioso dos tempos antediluvianos, que é a quanto chegam no melhor dos casos as ideias ou que outro nome tenha a intolerância desses senhores da terra e dos céus.
A comida aqui não é má, mesmo porque já faz parte do programa desses maníacos a preocupação de manterem quanto possível vivos os seus escravos brancos ou negros, amarelos ou vermelhos — sem o que teriam, por desfastio, que devorar-se entre si e declarar-se guerra quase que diariamente, o que não lhes seria de muito proveito. Mas se a comida não é intragável, a liberdade aqui é uma palavra que já não existe nem sequer nos dicionários e de que só ouvimos falar quando somos nós que a pronunciamos, em geral em voz baixa e para nós mesmos. E sem liberdade, hão de convir W. Exas. que este mundo, por melhor que seja, não passa de um pesadelo e de uma farsa de mau gosto — como há de achar no front o soldado com o seu fuzil e suas polainas, num dia azul de primavera.
Não temos sequer a liberdade de amar — já não digo uns aos outros, o que seria demais, mas a uma mulher de nossa predileção, ou mesmo a uma simples mulher pois as únicas mulheres que vemos ou são estrábicas ou não têm quaisquer atributos que as diferenciem dos homens donos do campo, tratando-nos ou como crianças ou como idiotas, no que aliás copiam um pouco as verdadeiras mulheres. E não havendo mulheres propriamente ditas, o cérebro emperra e os nervos sobem à flor da pele, dando azo a esse espetáculo triste e grotesco da masturbação coletiva, mesmo nos feriados e dias-santos. A única mulher que tem algo feminino, dentre as poucas que circulam pelas salas da nossa prisão, é a mulher do inquisidor-mor ou, se W. Exas. preferem, do chefe da guarda ou administrador do estabelecimento — mas essa mesmo tem um estrabismo bem pronunciado e é menos acessível do que a lua no céu ou o seu reflexo no fundo de um poço, dada a vigilância a que estamos continuamente submetidos. Há casos profundamente dolorosos, como o do Dr. Keither por exemplo, que se vê obrigado a masturbar-se como um menino de colégio só porque os nossos carrascos decidiram que não somos homens até o dia em que finalmente resolvamos voltar ao aprisco das ideias feitas e ao cadinho de seus sentimentos desumanizados e postiços. Eu, neste particular, vivo à custa de minhas boas recordações de todos os bordéis e salões de luxo que frequentei dos vinte aos trinta e cinco anos, na Europa, na Ásia, na Oceania, na América, na África, e sobretudo em sonho. Não que eu fuja à regra geral da masturbação; mas posso afirmar que sinto muito menos os aguilhões da carne do que, por exemplo, o legado pontifício ou seu casmurro secretário, para não falar de um estudante chamado Vinícius e que vive a recitar a Bíblia justamente naqueles trechos em que a Bíblia desperta a imaginação da juventude e favorece, de certo modo, as poluções noturnas.
Mas tudo isso é muito trágico, eu bem sei, e o pijama não é o traje apropriado para considerações de tal transcendência, mesmo num mundo em que o absurdo é cada vez mais a regra geral, ou tende a sê-lo pelo menos. Em outra oportunidade (caso me arranjem uma outra garrafa) voltarei ainda ao mesmo assunto, que pode parecer monótono a W. Exas. mas que para nós é vital e direi mesmo único, já que a morte do espírito é mil vezes mais trágica do que a morte do corpo, e que o homem privado da sua liberdade de pensar e de amar vale menos do que a sua sombra num muro — a menos que se trate naturalmente de um muro junto ao qual ele esteja sendo fuzilado, com os olhos bem abertos e a cabeça erguida.
Respeitosas saudações.
Campos de Carvalho, "A lua vem da Ásia"
quarta-feira, outubro 19
Os sem-idade
Devia ter uns 70, 75 anos. Sentado no ponto de ônibus, mirava um ponto fixo à frente. Não sei se enxergava a rua, os carros que passavam, ou algo que não éramos capazes de ver: uma festa, um otimismo, uma brincadeira de criança. Porque sorria. Sei que, sem nenhuma razão, levantou-se, ergueu o pé no ar, deu um chute no espaço, um tiro de meta sem bola, e o sorriso virou riso. Não sei se tinha 70, 75 anos; naquele momento, teve 8: o menino falou por ele, agiu por ele. Por um momento. Um lapso de meninice. Piscou o olho, fechou o sorriso e olhou em volta, para ver se alguém tinha reparado.
Então, há momentos em que a gente escapa da idade que tem. Deixamos de ter o que a identidade nos define e viramos uns sem-idade. Como se todos os espelhos do mundo se desfizessem, os documentos virassem pó, pegamos no chão uma pedra, maravilhados com seu peso e formato. Nem é preciso que estejamos velhos e meio senis: já constatei olhares distantes de um homem numa reunião, a olhar pela janela a si mesmo escalando uma árvore que não havia na paisagem.
É possível reparar em jovens executivas pulando uma corda imaginária no elevador, enquanto fingem acompanhar a passagem dos andares. Mulheres feitas olhando por alguns segundos uma joia na vitrine como se vissem uma borboleta muito colorida na beira de um açude, só acordando com a pergunta do vendedor: “Procurando algo em especial?”. Em geral, respondem “obrigada, só estava olhando”, caindo em si, quando o que queriam mesmo dizer era: “Ah, eu queria levar essa borboleta no dedo para mostrar pra minha mãe”.
Um gesto impensado. Dois olhos faiscando por alguma bobagem. Um pulinho de poucos centímetros e muita ousadia. Um grito abafado de surpresa. Acompanhar por meio minuto o voo breve de uma galinha. Ficar triste por não reparar que anoiteceu. Evidências de que aí existiu por um átimo um sem-idade.
Eta vida poderosa que não sossega nem com as dores, os calos e os cabelos (os que sobraram) brancos.
Cássio Zanatta
Então, há momentos em que a gente escapa da idade que tem. Deixamos de ter o que a identidade nos define e viramos uns sem-idade. Como se todos os espelhos do mundo se desfizessem, os documentos virassem pó, pegamos no chão uma pedra, maravilhados com seu peso e formato. Nem é preciso que estejamos velhos e meio senis: já constatei olhares distantes de um homem numa reunião, a olhar pela janela a si mesmo escalando uma árvore que não havia na paisagem.
É possível reparar em jovens executivas pulando uma corda imaginária no elevador, enquanto fingem acompanhar a passagem dos andares. Mulheres feitas olhando por alguns segundos uma joia na vitrine como se vissem uma borboleta muito colorida na beira de um açude, só acordando com a pergunta do vendedor: “Procurando algo em especial?”. Em geral, respondem “obrigada, só estava olhando”, caindo em si, quando o que queriam mesmo dizer era: “Ah, eu queria levar essa borboleta no dedo para mostrar pra minha mãe”.
Como os anjos, os sem-idade não têm sexo nem juntas enferrujadas, nem preocupações com a Receita Federal. Desenvolvem uma certa aversão a pentear os cabelos. Fogem do seu tempo por qualquer bobagem, espantados como aquilo pôde ser armazenado na memória. Com que propósito? Em que canto? O que acendeu essa lembrança de uma viagem à Bahia em 1982? As brincadeiras com o amigo que chamava Tico e que sumiu na vida? De que hipnose é capaz uma simples bexiga amarela contida pelo limite de um teto?
Um ou outro já se pegou titubeando ao preencher um questionário qualquer, diante do vendedor ou oficial que queria saber: “Idade?” Pois, dependendo do momento – em especial naquele em que um cachorro meio descabelado atravessa a rua correndo –, a resposta será “12”. E a bengala cairá no chão, assustando o cachorro e todos em volta. “Digo, 53”.Um gesto impensado. Dois olhos faiscando por alguma bobagem. Um pulinho de poucos centímetros e muita ousadia. Um grito abafado de surpresa. Acompanhar por meio minuto o voo breve de uma galinha. Ficar triste por não reparar que anoiteceu. Evidências de que aí existiu por um átimo um sem-idade.
Eta vida poderosa que não sossega nem com as dores, os calos e os cabelos (os que sobraram) brancos.
Cássio Zanatta
O homem de cabeça de papelão
No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em ideias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!
Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
— Mas não quero ser nada disso.
— Então quer ser vagabundo?
— Quero trabalhar.
— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
— Eu não acho.
— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares…
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.
— É doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.
— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal…
— É da tua má cabeça, meu filho.
— Qual?
— A tua cabeça não regula.
— Quem sabe?
Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.
— Só caso se o senhor tomar juízo.
— Mas que chama você juízo?
— Ser como os mais.
— Então você gosta de mim?
— E por isso é que só caso depois.
Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma “relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão”. Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
— Traz algum relógio?
— Trago a minha cabeça.
— Ah! Desarranjada?
— Dizem-no, pelo menos.
— Em todo o caso, há tempo?
— Desde que nasci.
— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem…
Antenor atalhou:
— E o senhor fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça…
— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
— Regula?
— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo… Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos deixei aqui uma cabeça.
— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.
— Ah! fez Antenor.
— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim…
— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha cabeça?
— Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
— Faça o obséquio de embrulhá-la.
— Não a coloca?
— Não.
— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.
Antenor ficou seco.
— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.
E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.
O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em ideias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo, cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!
Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.
Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no um enfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.
Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.
Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetings como aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.
— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.
— Mas não quero ser nada disso.
— Então quer ser vagabundo?
— Quero trabalhar.
— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.
— Eu não acho.
— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.
Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!
Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:
— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares…
O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:
— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.
— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?
Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.
No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.
Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.
— É doido, mas bom.
Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.
— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal…
— É da tua má cabeça, meu filho.
— Qual?
— A tua cabeça não regula.
— Quem sabe?
Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.
— Só caso se o senhor tomar juízo.
— Mas que chama você juízo?
— Ser como os mais.
— Então você gosta de mim?
— E por isso é que só caso depois.
Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.
Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma “relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão”. Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.
— Traz algum relógio?
— Trago a minha cabeça.
— Ah! Desarranjada?
— Dizem-no, pelo menos.
— Em todo o caso, há tempo?
— Desde que nasci.
— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem…
Antenor atalhou:
— E o senhor fica com a minha cabeça?
— Se a deixar.
— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça…
— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.
— Regula?
— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.
Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.
Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.
Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.
— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo… Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!
Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.
— Há tempos deixei aqui uma cabeça.
— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.
— Ah! fez Antenor.
— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim…
— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.
— Mas a minha cabeça?
— Vou buscá-la.
Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.
— Consertou-a?
— Não.
— Então, desarranjo grande?
O homem recuou.
— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.
Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.
— Faça o obséquio de embrulhá-la.
— Não a coloca?
— Não.
— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.
Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.
— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.
— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.
Antenor ficou seco.
— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.
E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.
João do Rio
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