quarta-feira, outubro 5

Morte na primavera

Na tarde em que o menino enterrou no quintal seu gato atropelado, os passarinhos, talvez por ser o primeiro dia de primavera, pareciam cantar com mais entusiasmo do que nunca.


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Um haicai é o mais arisco dos seres poéticos.

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Quando o poeta ergueu a mão para o arco-íris, um fiozinho multicolorido emaranhou-se no seu dedo indicador.

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O poeta social quer somar ao seu tempo de aposentadoria a época em que, desconhecendo Engels e Marx, defendia os direitos das flores e dos passarinhos.

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Um soneto se emenda. Um sonetista, jamais. Tenha ele sessenta, setenta ou oitenta anos, sempre pode surpreender e, no meio da mais pacata das reuniões, sacar do bolso com a mão trêmula mais uma de suas enferrujadas armas de catorze tiros.

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É um poeta assim assim: nem muito bom nem muito ruim.

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Por trilhos retos ou tortos, nós havemos de chegar. Logo estaremos tão mortos quanto um morto deve estar.

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O lugar mais adequado para um sofá há de ser aquele em que ele melhor possa acolher a preguiça vespertina do gato da casa e do sol.

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Alguns poetas são ainda festejados por um soneto que escreveram muitos anos atrás. Outros são reverenciados por nunca terem escrito nenhum.

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Esta madrugada, acordei sacudindo-me todo, como fazem as aves antes de voar. Cheguei a pensar que conseguiria, mas logo a esperança se foi e voltei a ser um homem triste deitado no escuro.

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Um gato não tem donos. Tem amigos, se lhe agradarem e se o merecerem.

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Na autobiografia, o poeta sonetoso atribui sua métrica impecável à habilidade que ganharam seus dedos nos anos em que, para sustentar seus cisnes, trabalhou como caixa num banco.
Raul Drewnick

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