Os maus exemplos, dos quais tanto se queixam as pessoas sérias, não vêm da gente sem juízo da gente desequilibrada, como lhe chamam. Não. Os maus exemplos são espalhados precisamente pelas pessoas sérias. O que elas dizem, o que elas fazem, a gravidade das suas atitudes, a veemência das suas opiniões, tudo que constitui o modo e a razão de existir dos “homens de caráter”, das “senhoras impolutas’, tudo isso desperta a mania da contradição, muito espalhada entre os mortais. Se há vícios neste mundo, a culpa é dos que se manifestam contra eles. Se não escrevessem nos jornais coisas alarmantes sobre a cocaína, se a polícia não perseguisse os vendedores da poudre folle, pensam que a cidade estaria cheia, tal qual está, de cocainômanos?... Não estava. Eu, por exemplo, até aos vinte anos, não fumei. Mas, num inverno, adoeci da garganta e o médico a quem fui procurar, proibiu-me o fumo... Desandei a fumar, desde aí. E não tenho motivos de queixa... Também não me arrependo de pensar ao invés de numerosos moralistas... A moral comum parece-se muito com os provérbios... Ai de quem se fia nos provérbios...
A dor é útil! assegurou-me, há dias, um filósofo, que foi dentista e enriqueceu...
As mulheres feias acham sempre as modas exageradas...
O meu jardineiro teima em chamar os lírios de “copos-de-leite”. Tentei, várias vezes, revelar-lhe, incutir-lhe a verdade, a pequena verdade. Ele respondeu que toda a gente diz que é “copo-de-leite” o nome daquela flor. Aí está a razão por que não há lírios neste país...
Não convém contrariar ninguém...
Artista! Esta palavra é a que mais nobremente qualifica um homem. Artista! E logo todas as honras lhe são concedidas, e logo se cria em torno dele um ambiente de admiração e respeito. Entretanto, num certo meio, artista é sinônimo aproximado de inútil, quando não é de coisa pior... Ora, isso me entristece um pouco. Não pelos artistas. Mas, pelos que lhes julgam os trabalhos com uma espécie de superioridade sardônica, que é, em silêncio, a forma viva e visível de um relincho...
Os cretinos são insuportáveis às segundas-feiras...
A verdadeira capital do Brasil fica entre a Rua São José e a Rua do Ouvidor... E ali, à sombra dos palácios e das árvores, o agitado mostruário da população carioca. A política, a literatura; a elegância, a inteligência, a tolice, a riqueza, a miséria e outros substantivos mais ou menos femininos passam sobre aquelas pedras miúdas das três quadras fatais, todos os dias... Passam... Só ficam os guardas-civis ensinando a andar na mão...
Confia em ti. Mas, antes, trata de saber se podes. Se não puderes e confiares, ficas aborrecido para o resto da existência...
Só as pessoas que não gostam de nós sabem, na verdade, como somos. As outras andam sempre a descobrir defeitos que ainda não temos...
A felicidade assemelha-se a um bilhete de loteria, antes de andar a roda...
Quando uma mulher que tu conheces há muito tempo, sem outras intimidades, de repente, um dia, conversando contigo, endireita a tua gravata podes fazer dela o que quiseres...
Ainda se discute a propósito da utilidade dos críticos. Os escritores louvados são a favor. Os outros são contra. O público, felizmente, não se interessa pela discussão.
Parece-me que os críticos não deixam de ser úteis. A alguns, eu, por exemplo, devo a ampliação dos meus conhecimentos literários. Se eles não houvessem constatado a profunda influência exercida sobre mim por certos autores, com certeza eu nunca leria esses autores...
Já Jesus Cristo dizia, e a sociedade republicana provou: somos todos iguais. Agora, principalmente depois da guerra, com a integral democracia realizada, não há mais diferenças. A sem-cerimônia passou por cima da multidão uma plaina afiada e rápida... Somos todos semelhantes... Isto, por displicência sentimental, não deixa de ser bonito. Mas, para os encontros da vida quotidiana, é terrível.
É costume afirmar-se que o Brasil tem poetas demais. E é um mau costume. Os poetas nunca são demais. Eles descansam dos aturdimentos quotidianos, dão a ingenuidade e dão o sorriso, tornando melhores quem os encontra, numa hora de fadiga, num instante de pesar. Irmãos daqueles que, outrora, sob o sol novo, na chama das alvoradas e no fumo dos ocasos, falavam de amor e de sabedoria, os poeta são, dentro do tempo, as vozes do silêncio, vozes que sobem, eternas, ensinando aos homens desencantados um desejo mais perfeito, uma bondade mais universal...
No outro tempo, quando os rapazes não davam mesmo para nada, os pais, que haviam tentado fazer deles homens notáveis, desesperavam-se diante de tanta incompreensão e resolviam mandá-los para o comércio.
Hoje, o jornalismo absorve todos esses rapazes. Lucrou o comércio, que se encheu de gente atilada. Os negócios, de uns anos para cá, segundo ouvi dizer, exigem inteligência e noção das coisas...
O bem supremo é o bom humor.. Demócrito tinha razão. Mas no tempo dele, o bom humor era fácil. O mundo andava no encanto de uma raça contente. A vida bela sorria em tudo, desde o céu, que não punha terrores nas ideias, até as fontes, onde a imagem de Narciso refletia. Hoje, a água das fontes é triste. Narciso morreu... E para além das nuvens, está o Deus da nossa infância, o Deus que castiga...
Uma das mais teimosas preocupações da Humanidade moderna é a fotografia em jornais e revistas: o retrato, espalhado, visto por muita gente, no bonde, nos cafés, dentro de casa... Mulheres, homens, velhos e crianças, todos querem aparecer... Há quem se mate para realizar, assim, o desejo da vida inteira... Inúmeras pessoas só casam para isso... Agora mesmo, acabo de ver, numa folha diária, o cliché de um cavalheiro, ferido pela amante, com cinco tiros ferozes. Deitado na maca da Assistência, ele já tem um dos olhos fechados pela morte; mas, com o outro, ainda vagamente aberto fixa, enternecido, um ponto no espaço, posando para o fotógrafo...
Pensar não é, decerto, um hábito dos nossos poetas. Se aquele príncipe da comédia de Shakespeare ressuscitasse no Brasil, ficaria contente por ter voltado à vida, ele que, na sua biblioteca, queria apenas livros bem encadernados e falando de amor... Mandaria fazer as encadernações na Europa, e os livros, achá-los-ia aos milhares aqui, sob o Cruzeiro do Sul... Raro será o livro brasileiro que não fale de amor...
Pierre Nozière, que é um disfarce amável de Anatole France, conta de certa criada, vinda para o seu serviço, do fundo ingênuo da Bretanha, com o mar nos olhos, um voo de gaivota preso nos cabelos e a puríssima simplicidade na alma. Como a rapariga nunca saíra, Pierre Nozière deu-lhe férias, um dia: que ela fosse visitar Paris... E ela foi. Voltou, à tarde, maravilhada. A grande capital não lhe parecera feia, mas tinha visto, numa quitanda, uns rabanetes sublimes...
Ignoro se essa criada de Pierre Nozière casou. Mas, sei que deixou uma enorme descendência...
Para as mulheres, pentear é um verbo importante, tão importante que o substantivo vindo dele faz parte das vitórias femininas... O penteado, na ofensiva da paixão, ficou sendo a grande arma irresistível. É o penteado que dá à fisionomia aquele não sei quê logo transformado pelos homens em sentimento, nas suas almas sempre abertas... A imagem que os homens guardam das mulheres é a imagem de um penteado...
O que aborrecia, nos versos das nossas poetisas de antes da guerra, era a masculinização dos seus sentimentos, a forma rija de que os vestiam, impecáveis... Versos de fraque... Agora, nas musas novas reveladas e nas que vão aparecendo, as mulheres andam bem presentes, e dizem da vida com aquela sabedoria ingênua e a mesma graça deliciosa que têm quando não escrevem.
Toda felicidade que faz falar é sempre vinda de uma grande tolice...
O meu maior prazer é mudar de opiniões. Mudando-as, evito tê-las. E assim consigo a maneira mais alegre de não envelhecer...
Eu gosto de adiar. Deixo sempre para amanhã o que posso fazer hoje. Enquanto não faço, ensaio. Enquanto ensaio, divirto os que estão ao meu lado. O grande público que espere...
Alvaro Moreyra. "A cidade mulher"
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