Sarah Afonso |
A moradia e a casa pertenciam ao homem sem qualidades.
Ele estava postado atrás de uma janela, e através do filtro verde-pálido do ar do jardim contemplava a rua pardacenta; há dez minutos contava com o relógio os automóveis, carruagens, bondes e os rostos de transeuntes embaciados pela distância, que cobriam a retina com um rápido redemoinho; avaliava as velocidades, os ângulos, as forças vivas das massas que passavam, que atraíam o olhar com a rapidez de um raio, prendiam-no, soltavam-no e, durante um tempo para o qual não existe medida, forçavam a atenção a resistir-lhes, desprender-se, saltar para o que viesse em seguida e jogar-se atrás dele; em suma, depois de calcular mentalmente por um momento, ele meteu o relógio no bolso, rindo, e constatou que estivera fazendo uma tolice.
Se se pudessem medir esses saltos da atenção, a atividade dos músculos dos olhos, os movimentos pendulares da alma, e todos os esforços que um ser humano precisa executar para se manter em pé na torrente de uma rua, resultaria presumivelmente — fora isso que ele pensara, tentando, por uma brincadeira, calcular o impossível — uma grandeza comparada à qual a força de que Atlas necessita para sustentar o mundo é insignificante; e poder-se-ia avaliar que gigantesca façanha realiza hoje em dia uma pessoa que não faz coisa alguma.
Pois nesse momento o homem sem qualidades era uma dessas pessoas. E alguém que faz?
“Podem-se deduzir duas coisas”, disse ele para si mesmo.
A atividade muscular de um cidadão que segue calmamente seu caminho um dia inteiro é muito maior do que a de um atleta que sustenta uma vez ao dia um peso enorme; isso foi comprovado fisiologicamente, e é provável também que as pequenas atividades cotidianas, na sua soma social e nessa capacidade de serem somadas, ponham muito mais energia no mundo do que as ações heroicas; sim, o heroico parece minúsculo como um grão de areia colocado sobre uma montanha com extraordinária ilusão. Essa ideia lhe agradou.
Deve-se acrescentar, porém, que ela não lhe agradava por ele amar a vida burguesa; ao contrário, gostava apenas de contrariar suas inclinações, que outrora tinham sido diferentes. Talvez seja exatamente o pequeno-burguês quem prevê o começo de um heroísmo coletivo, de formigueiro, extraordinariamente novo. Vão chamá-lo de heroísmo racionalizado, e achar tudo muito bonito. Hoje em dia, quem pode saber?! Mas naquele tempo havia centenas de indagações irrespondidas desse tipo, da maior importância. Pairavam no ar, ardiam sob os pés. O tempo corria. Pessoas que ainda não viviam então não hão de querer acreditar, mas já então o tempo se movia com a rapidez de um camelo de montaria; isso não é de hoje. Apenas não se sabia para onde corria. Nem se podia distinguir direito o que estava em cima ou embaixo, o que ia para diante ou para trás.
“A gente pode fazer o que quiser”, disse o homem sem qualidades para si mesmo, dando de ombros, “que isso não tem a menor importância nesse emaranhado de forças!” Depois afastou-se, como uma pessoa que aprendeu a renunciar, quase mesmo como um enfermo que teme qualquer contato forte; e quando, atravessando o quarto de vestir anexo, passou por um punching ball ali pendurado, deu-lhe um soco rápido e forte, que não é propriamente comum em momentos de resignação ou estados de fraqueza.
Robert Musil, "O homem sem qualidades"
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