Nina levantava-me, e era bom o seu levantar, mas eu nunca lhe hei-de contar como numa noite de Inverno uma chuva inesperada, de mistura com trovões, na casa que lá deixei, entrou pelo buraco da instalação do telefone, se infiltrou ao longo da parede, acumulou-se a um canto da sala e foi desaguar na cesta das revistas. Não vou contar a ninguém, nem sequer a Nina, os desaires que são só meus. Não lhe vou contar como nessa cesta eu havia abandonado, por acaso, O Grande Atlas do Mundo, quando o seu lugar era sobre o tampo da escrivaninha. Só que os objectos são como os seres humanos, procuram o lugar da perdição quando têm de se perder. Ora, nessa noite de tempestade, a água da chuva, seguindo o seu caminho imparável, ao infiltrar-se até chegar ao canto da sala, foi transformando tudo o que era papel acumulado na cesta de verga numa massa informe, sem eu dar por nada. Quando dei pelo material ensopado era demasiado tarde. À chuva e à trovoada seguiu-se o bom tempo, e ali estava o desastre. O Grande Atlas ainda era reconhecível mas estava perdido. Com esperança de recuperá-lo, cheguei a colocá-lo ao sol, ainda lhe apliquei o secador e o ferro de engomar. De nada serviu. Despeguei folha a folha, mas elas tinham-se colado, e à medida que as separava, grandes manchas brancas iam ocupando o espaço onde antes havia a representação de oceanos, mares, continentes, países, páginas bem assinaladas por onde eu estudava o mundo à minha maneira.
Lídia Jorge, "Misericórdia"
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