O meu pai tinha abandonado a minha mãe pouco depois de eu nascer, e cada vez que eu mencionava o seu nome , o que raramente fazia, a minha mãe e Aniela trocavam um olhar rápido e o assunto da conversa era sem demora desviado. Bem sabia eu, no entanto, por bocados de conversa surpreendidos uma vez ou outra, que havia no caso qualquer coisa de incómodo, de doloroso até e não tardei a compreender que era melhor evitar falar no assunto.
Eu sabia que o homem que me dera o seu nome tinha mulher, filhos e que viajava muito, ia à América, e encontrei-o algumas vezes. Tinha um aspecto agradável, grandes olhos bondosos e mãos muito cuidadas; comigo era sempre amável e tímido e quando me fitava, tristemente e creio que com certo censura, eu baixava os olhos e tinha, não sei porquê, a impressão de que lhe houvera pregado uma partida.
Só depois da sua morte ele entrou verdadeiramente na minha vida e duma maneira que nunca esquecerei. Sabia bem que fora morto durante a guerra numa câmara de gás, executado como judeu, com mulher e filhos, que já tinham, creio eu, quinze e dezasseis anos de idade. Mas foi somente em 1956 que soube um pormenor particularmente revoltante do seu fim trágico. Vindo da Bolívia, onde era adido comercial, dirigia-me nessa altura a Paris para receber o Prémio Goncourt por um romance que acabara de publicar, As Raízes do Céu. Entre as cartas que recebi por essa ocasião houve uma que me dava pormenores sobre a morte daquele que eu tão pouco conhecera.
Não tinha morrido na câmara de gás como me haviam dito. Morrera de medo a caminho do suplício , a alguns passos da entrada.
A pessoa que me escrevia tinha sido encarregada de receber à porta os condenados - não sei que nome lhe aplicar, nem qual o título oficial que lhe davam.
Na carta , sem dúvida para me ser agradável, dizia-me que o meu pai não chegara atá à câmara de gás e que tinha caído morto de pavor antes de entrar.
Fiquei durante muito tempo com a carta na mão; saí em seguida pela escada da NRF, apoiei-me no corrimão e ali fiquei, não sei por quanto tempo, com a farda talhada nos alfaiates de Londres, o meu título de adido comercial da França, a minha Cruz da Libertação, a roseta da Legião de Honra e o meu Prémio Goncourt.
Tive sorte : Albert Camus passou nesse momento e, vendo que me sentia indisposto, levou-me para o seu gabinete.
O homem que morrera daquela forma era um estrangeiro para mim, mas desde esse dia passou a ser meu pai e para sempre.
Continuei a recitar as fábulas de La Fontaine, os poemas de Déroulède e de Béranger e a ler uma obra intitulada Cenas edificantes da vida dos grandes homens, grosso volume de capa azul ornado duma gravura dourada representando o naufrágio de Paulo e Virgínia. A minha mãe adorava a história de Paulo e Virgínia, que ela achava particularmente exemplar. Relia-me muitas vezes a emocionante passagem em que Virgínia prefere morrer afogada a ter de se despir. A minha mãe fungava de satisfação sempre que acabava esta leitura. Eu escutava com atenção, mas era já cético a tal respeito. Convencia-me de que Paulo não tinha sabido encaminhar as coisas.
Para me ensinar a manter a minha categoria com dignidade fui também convidado a estudar um grosso volume intitulado Vidas dos franceses ilustres; a minha mãe lia-me alguns passos em voz alta e, depois de ter evocado um episódio admirável das vidas de Pasteur, Joana d'Arca e Rolando de Roncesvales, lançava-me um demorado olhar cheio de esperança e de ternura, com o livro nos joelhos. Só a vi revoltar-se uma vez, vindo à superfície a sua alma russa ante as correcções inesperadas que os autores faiam á História. Eles descreviam , nomeadamente, a batalha de Borodino como uma vitória francesa, e a minha mãe, depois de ter lido este parágrafo , ficou um momento perturbada e disse a seguir, fechando o volume , num tom escandalizado:
- Não é verdade. Borondino foi uma grande vitória russa. É preciso não exagerar.
Romain Gary, "A Promessa"
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