Depois voltou a cruzar‑se com ela, várias vezes nesse dia, no jardim municipal e no parque. Sempre sozinha, a mesma boina, o spitz branco atrás; ninguém sabia quem era, diziam simplesmente: a senhora do cãozinho.
"Sozinha aqui, sem marido nem amigos — congeminava Gúrov —, valia a pena conhecê‑la."
Gúrov não chegara aos quarenta anos, mas já tinha uma filha de doze e dois rapazes no liceu. Haviam‑no casado cedo, ainda no seu segundo ano da universidade, de maneira que a esposa, agora, parecia ter o dobro da idade dele.
Era uma mulher alta, de sobrancelhas escuras, muito direita, solene, ar importante e, como dizia ela de si, uma pensadora. Lia muito, nas cartas já não escrevia o «iáti»*, chamava ao marido Dimítri em vez de Dmítri, marido que, por sua vez, a achava de inteligência estreita, ideias curtas, deselegante como mulher, lhe tinha medo e não gostava de parar muito em casa. Enganava‑a havia muito tempo, e com frequência, talvez por isso pensasse quase sempre mal das mulheres, e, quando na sua presença se falava delas, caracterizava‑as por:
— Raça inferior!
Achava‑se com suficiente e amarga experiência para lhes chamar o que quisesse, mas nem dois dias podia passar sem a «raça inferior». Não se sentia bem na companhia dos homens, aborrecia‑se, era frio, pouco loquaz; mas na companhia das mulheres ficava logo à vontade, com elas sabia como se portar, como falar, até como se calar. Na sua aparência, no seu feitio, em toda a sua natureza havia alguma coisa que atraía, que ganhava a simpatia das mulheres, que as seduzia; Gúrov sabia‑o, e também uma força qualquer o puxava para elas.
A sua experiência vasta, e realmente amarga, ensinara‑lhe havia muito que qualquer intimidade, de início uma coisa agradável para variar na vida, uma aventura fascinante mas ligeira, entre as pessoas decentes, se transformava inevitavelmente em problema dos mais complicados, sobretudo entre os moscovitas indolentes e irresolutos, e se volvia, ao fim e ao cabo, em situação penosa. A cada novo encontro com uma mulher interessante, porém, toda a experiência como que se lhe varria da memória, e tinha outra vez vontade de viver, e era tudo tão fácil, tão divertido.
Estava então uma vez, pelo entardecer, a almoçar no jardim e viu que a senhora da boina se aproximava sem pressas, com a intenção de ocupar a mesa perto da sua. A expressão, o andar, a roupa, o penteado, tudo lhe dizia que a mulher era da boa sociedade, casada, em Ialta pela primeira vez, e que se aborrecia… Nas histórias sobre a pouca‑vergonha dos hábitos locais havia muita mentira, e Gúrov desprezava‑as, sabia que tais histórias eram inventadas por pessoas que se soubessem pecar também pecavam, mas quando a senhora se sentou à mesa ao lado, a uns três passos dele, vieram‑lhe à memória essas histórias de conquistas fáceis, de escapadelas para os montes, e a ideia sedutora de uma relação leve e passageira, a ideia de romance com a desconhecida de quem não sabia sequer o nome, dominou‑o repentinamente.
Chamou o spitz com um gesto afável e, quando o cãozinho se aproximou, pôs‑se a ameaçá‑lo com o dedo. O spitz rosnou. Gúrov voltou a brandir o dedo para o cão.
A senhora olhou para ele e baixou logo os olhos.
— Não morde — disse ela, e corou.
— Posso dar‑lhe um osso? — E, quando ela fez que sim com a cabeça, perguntou, simpático:
— Há muito que chegou a Ialta?
— Há cinco dias.
— Pois eu já me arrasto por cá vai para duas semanas.
Curto silêncio.
— O tempo corre depressa, e mesmo assim isto por aqui é tão aborrecido! — disse a senhora sem olhar para ele.
— Já é um chavão as pessoas dizerem que isto é aborrecido! Vivem num Beliov ou numa Jizdra quaisquer e não se aborrecem, mas mal chegam: «Ah, que seca! Ah, que poeirada!» Como se acabassem de chegar de Granada.
Ela riu‑se. Depois, cada qual começou a comer em silêncio, como dois desconhecidos; mas após o almoço saíram juntos, conversando num tom leve e brincado, de pessoas livres, bem‑dispostas, a quem era indiferente para onde fossem, do que falassem. Passeavam e comentavam que o mar tinha uma luminosidade estranha; que a água estava cor de lilás, tão suave e tão quente; e que a lua traçava uma faixa dourada sobre o mar. E também que, depois de um dia de tanto calor, o ar estava abafado. Gúrov contou‑lhe que era moscovita, fizera o curso de Letras, mas trabalhava num banco; que em tempos se preparara para cantar na ópera privada, mas desistira, que tinha duas casas próprias em Moscovo… E dela ficou a saber que crescera em Petersburgo, mas casara na cidade de S., onde se instalara havia dois anos, que ia ficar em Ialta mais um mês e que o marido talvez se lhe viesse juntar, porque também precisava de descansar. Não conseguiu foi explicar cabalmente em que serviço estava o marido — se na administração provincial, se na rural —, o que de resto lhe pareceu, a ela própria, engraçadíssimo. Gúrov ficou também a saber que se chamava Anna Serguéevna.
Depois, chegado ao quarto, pôs‑se a pensar nela, a pensar que no dia seguinte a voltaria, decerto, a encontrar. Tinha de ser. Quando já recolhia à cama, ocorreu‑lhe que não haveria assim tanto tempo que ela, como a filha dele, se sentava nos bancos do liceu, e lembrou‑se da timidez, do acanhamento com que ria e falava a um homem desconhecido: pelos vistos, fora a primeira vez na vida que, sozinha, se achara naquela situação de andarem atrás dela, de olharem para ela, de falarem com ela com uma única e secreta intenção que ela não podia deixar de adivinhar. Lembrou‑se do seu pescoço fino e frágil, dos seus olhos bonitos, cinzentos.
Anton Tchékhov , "A Senhora do cãozinho"
Nenhum comentário:
Postar um comentário