sábado, março 9

Romance que Gabriel Márquez quis destruir em vida é lançado 10 anos após sua morte

É um romance curto, de 122 páginas, que acompanha Ana Magdalena Bach, uma mulher de meia-idade que está feliz no casamento de 27 anos — e não tem motivos para querer fugir da vida que construiu. Porém, todo mês de agosto ela viaja para visitar o túmulo da mãe em uma ilha, e por uma noite ela se torna uma pessoa diferente.

Na quarta-feira, a obra intitulada "Em agosto nos vemos" (Record) chegou às livrarias de todo o mundo.

Gabriel García Márquez trabalhou longa e intensamente neste romance, mas o processo foi interrompido pela deterioração de sua memória. Nos anos anteriores à sua morte, ele próprio o descartou.

“Este livro não funciona. Temos que destruí-lo”, ele disse.

Mas seus filhos Rodrigo e Gonzalo decidiram resgatá-lo do arquivo da Universidade do Texas, em Austin, e publicá-lo às vésperas do aniversário de dez anos da morte do escritor.


“Minha teoria é que quando ele disse que não funcionava, ele havia perdido a capacidade de julgá-lo. Não é tão polido quanto seus outros romances, mas também não é uma confusão incompreensível. Acho que foi ele quem não entendeu mais nada”, afirmou Rodrigo García à imprensa.

Cristóbal Pera, diretor editorial da Planeta USA, trabalhou com García Márquez ainda em vida na obra — e também foi o editor da versão final do livro. Pera conta os bastidores de Em agosto nos vemos, que muitos classificam como o acontecimento literário do ano.

Como você começou a trabalhar em Em agosto nos vemos, e como foi sua relação com García Márquez nesse processo?

Cristóbal Pera - Fui editor de García Márquez desde 2001, quando colaborei com a edição de suas memórias, Viver para Contar. Começou aí uma relação de editor-autor à distância, que mais tarde, quando fui ao México, em 2006, retomamos pessoalmente. Tive um relacionamento contínuo com ele na edição de Eu não vim fazer um discurso, livro que reúne todos os seus discursos e foi publicado em 2010.

E, finalmente, como menciono na nota do editor que consta do livro, a agente de García Márquez, Carmen Balcells, me pediu em 2010 para encorajá-lo a terminar seu romance Em agosto nos vemos, do qual eu não tinha notícias.

Então, quando voltei ao México, comentei isso com ele. Ele já havia terminado um primeiro rascunho em 2004.

Naquela época, 2010 e 2011, ele já estava começando a perder um pouco a memória, e não estava trabalhando realmente no romance. Mas estava dedicado a corrigir uma palavra, uma frase, para melhorá-lo, e aí brilhava a sua genialidade, nessas pequenas correções.

Pude ler três ou quatro capítulos do romance em voz alta com ele na minha frente, e adorei. Vi que o tema também era inédito para ele, com uma protagonista mulher, que não se havia visto em sua narrativa.

E ele continuou tomando notas em uma quinta versão, que tinha entre as versões que vinha fazendo, até que finalmente foi desistindo à medida que sua doença progredia.

O que aconteceu com o romance após a morte de García Márquez em 2014?.

Após sua morte, a família decidiu que não era o momento de publicar aquele romance, que ele também havia dito que não queria publicar em seus últimos anos de vida.

Todos os artigos de García Márquez, incluindo este manuscrito, foram enviados à Universidade do Texas, em Austin, para fazer parte do grande arquivo de García Márquez. Este romance não estava inicialmente disponível ao público, mas algumas pessoas puderam vê-lo.

Depois de saber que algumas pessoas haviam tido acesso ao manuscrito e haviam dito que era muito bom e que deveria ser publicado, os filhos de García Márquez finalmente decidiram não dar ouvidos ao pai e publicá-lo. E foi aí que me pediram para trabalhar na edição final do romance.

BBC News Mundo - Além de descartá-lo nos últimos anos, que relação García Márquez havia tido com este romance? Que visão ele tinha do livro?

'Este romance fazia parte de um projeto narrativo', afirma o editor de García Márquez

Em uma entrevista que concede em Madri, ao ler em público o primeiro capítulo deste romance, ele diz ao jornalista que está escrevendo uma série de romances curtos com o tema geral do amor na meia-idade. Do amor e outros demônios fazia parte disso.

Então, quando voltou para casa em 2002, depois de tratar um câncer em Los Angeles, ele retoma o manuscrito do que mais tarde se tornaria Memória de Minhas Putas Tristes, termina em um ano e publica o livro.

E depois ele dedica um ano inteiro a trabalhar no rascunho que já tinha de Em agosto nos vemos.

Ele envia um manuscrito para a agência Balcells, e essa é a quinta versão que ele abandona, abandona no sentido de deixar descansar, como disse à sua secretária Mónica Alonso. A secretária de García Márquez é fundamental. Era ela quem o ajudava e quem guardava os manuscritos.

Em seus últimos anos, quando sua memória falhava, e ele não reconhecia muitas coisas, mencionou diversas vezes que não queria publicar o romance, que não estava pronto, etc.

Mas, enfim, como dizem os filhos na apresentação do livro, o romance não estava polido, mas estava finalizado, os leitores vão ver. Não precisei acrescentar nenhuma palavra, é claro. Não preciso nem dizer que não acrescentei nada.

Que detalhes você pode contar sobre o processo de edição do livro? Que desafios você encontrou?

O maior desafio foi o respeito absoluto pela obra de García Márquez. É uma tarefa de imensa responsabilidade.

Felizmente tive a oportunidade de trabalhar bastante lado a lado com ele, então conhecia muito bem sua obra, já havia trabalhado com ele em correções, sabia como ele trabalhava, e isso me ajudou.

O mais importante foi ler o manuscrito completo e ver que a história estava ali completa, acabada. Não havia nada a fazer ali para terminar, nem era preciso acrescentar uma frase ou um final, estava tudo lá.

Fiz o trabalho de editor com o manuscrito que estava em documento de Word, e a quinta versão que ele deixou impressa com muitas anotações feitas a mão nas margens, com alterações, com algo. É aí em que baseio a edição para chegar ao texto final.

Bastava seguir as pistas que ele deixou para tomar a decisão de, por exemplo, deletar uma frase que estava riscada.

E depois, o que tive que fazer foram algumas mudanças que surgiram a partir da verificação de dados, como nomes de autores mencionados, o trabalho normal de um editor, e algumas questões de coerência do próprio texto.

O que você quer dizer com questões de coerência?

Há alguns exemplos que menciono na nota do editor. No romance, a protagonista termina o último capítulo com 50 anos — então, fazendo as contas, no primeiro capítulo ela tem 46 anos.

A questão é que, no primeiro capítulo, ele descreve a protagonista como uma mulher que está perto da terceira idade, e ele mesmo marca essa frase e coloca nela um ponto de interrogação. Obviamente, era de uma versão inicial, e ele percebe que, claro, uma mulher de 46 anos não chega perto do que entendemos por terceira idade.

Ali, como editor, simplesmente interpretando aquela marcação, retiro essa referência à terceira idade, e o leitor não se confunde, porque ela é uma mulher de 46 anos.

Outro exemplo é que a protagonista conhece um homem no primeiro capítulo, e no último capítulo, anos depois, ela o reencontra em uma rua de uma cidade litorânea, e a princípio não o reconhece porque ele estava de bigode, e ele não usava (bigode) quando o conheceu. E, no primeiro capítulo, o homem aparece de bigode.

São questões puramente de coerência narrativa que ele teria visto em uma revisão final. Assim, a menção ao bigode teve que ser retirada daquele primeiro capítulo para que a referência final fizesse sentido.

As minhas intervenções foram essas: seguir todas as suas marcações e simplesmente controlar a coerência narrativa das idades, da cronologia, dos nomes, etc., etc.

O que este livro representa na literatura de García Márquez, e o que revela sobre o final de sua carreira?

Os leitores que vão julgar Em agosto nos vemos. Acredito que este romance encerra toda a sua narrativa com chave de ouro. E acho que no fundo ele estava ciente disso.

É um romance com uma protagonista mulher, nunca havia tido uma em seus romances. E as mulheres são muito importantes em seus romances, desde Cem Anos de Solidão, e em todas as suas histórias, mas nunca tiveram um papel de protagonista como o de Ana Magdalena Bach, que é uma mulher que decide explorar sua sexualidade e sua liberdade.

Isso gera conflitos nela, mas ela continua nesse caminho, embora seja uma mulher que em teoria é feliz, e não teria razões objetivas para fazer isso.

Por isso, é um romance que seu próprio filho Rodrigo descreveu como feminista. Acho que este romance reorganiza toda a obra de García Márquez, e principalmente o papel da mulher nela, que depois deste romance deve ser reconsiderado. Acho que é por isso que é tão importante.

Depois, no seu estilo, na forma como é contado, se passa em um lugar e em uma época não identificados, provavelmente nos anos 1980 ou 1990, na costa da Colômbia, em uma ilha, mas não se sabe realmente. Ele não quer deixar marcas rígidas de onde é, o que é uma novidade.

É então uma obra que faz jus às demais...

Sem dúvida. Mas o que eu digo não vale nada, porque os leitores a partir de agora vão poder julgar.

Só posso voltar ao momento em que li pela primeira vez vários capítulos do romance em voz alta junto a ele. Naquele momento, o que pensei foi: Espero que um dia todos os leitores de García Márquez possam desfrutar da obra-prima que tive o privilégio de ler pela primeira vez.

Santiago Vanegas

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